29 de junho de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«As pessoas afirmam que muitas explicações convencem menos do que só uma, mas a verdade é que há mais de uma razão para quase tudo. Dir-se-ia que se encontram sempre vantagens para prescindir da verdade.»
(Adolfo Bioy Casares)

Nem sempre a lápis (294)

Reconheceu o jardineiro da Junta de Freguesia do lado oposto, quando ia tomar o pequeno-almoço com os cães. Contornou a rotunda e baixou o vidro; apalavraram à beira do passeio a contratação para depois das cinco, quando sair. Desde as últimas análises dedica-se à saúde do quintal; viçosa a relva para receber um vaso aberto às versões do Vento. Sabia que tinha vindo ao Sul para morrer. E o que a literatura pudesse caucionar, vá lá, um bom começo – vir ao Sul para morrer –, cavava e estrumava os canteiros do Fim. Digamos que não gostaria de ser achado nas dunas, encontrado no regresso de levar o lixo, a tresandar no prédio.

Papiro do dia (234)

«Um cão ladrava algures muito longe. Foi então que o intérprete exibiu o seu único talento: sabia ladrar como um cão. Começou a ladrar com uma força desesperada. Quando parou puseram-se à escuta, e ouviram latidos de resposta. O intérprete ladrou outra vez. Avançaram devagar, parando frequentemente para ladrar e ouvirem o cão responder. Conseguiram assim orientar-se. Depois de meia hora de marcha em direcção a um cão de aldeia cujo ladrar se ouvia cada vez mais alto, encontraram finalmente abrigo para passar a noite.
Não se sabe o que aconteceu ao intérprete.
Nota: Será justo acrescentar que o diário de Gustave dá uma versão diferente da história? Concorda quanto ao estado do tempo; concorda com a data; concorda que o intérprete não sabia cozinhar (fazia sempre carneiro e ovos cozidos, o que levou Gustave a almoçar pão seco). No entanto, curiosamente, não menciona a leitura de Plutarco no campo de batalha. O cão do polícia (sem raça especificada na versão de Flaubert) não foi levado por uma corrente; afogou-se simplesmente na água profunda. Quanto ao intérprete que ladrava, Gustave limita-se a registar que quando ouviram o cão da aldeia à distância, mandou o polícia disparar a pistola para o ar. O cão ladrou em resposta; deste modo mais vulgar avançaram até ao abrigo.
Não se sabe o que aconteceu à verdade.»
[Julian Barnes, O Papagaio de Flaubert; trad. Ana Maria Amador, Quetzal, Julho 2010]

28 de junho de 2012

Pensem nisso




26 de junho de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«Era uma mulher bastante agradável. Em traços largos, podemos dizer que ela reivindicava o direito de se sentir profundamente insatisfeita e infeliz.»
(Robert Walser)

Nem sempre a lápis (293)

Papiro do dia (233)

«E assim me encontrava agora num quarto que um velho e amigável homem me cedera, e porque dispunha de todo o tempo livre imaginável, aproveitava para, por outro lado passear, deambular, vaguear e vadiar pela floresta, e por outro lado para escrever sobre estas deambulações um ou outro ensaio talvez bastante razoável.
Ia para a floresta, onde apanhava várias flores e pequenas plantas catitas que dispunha de modo atraente e promissor numa caixa, assim criando uma amostra em miniatura da Primavera. Sobre as flores depositava um bilhetinho aprumado em que havia escrito algumas meiguices declaradas, e enviava tudo para uma jovem actriz que fazia de Luísa na peça Intriga e Amor.
Para além deste, também estabeleci, e com aparente sucesso, uns quantos contactos, em particular, e pela primeira vez na minha vida, com uma revista literária.
Se estava em casa e escrevia com fervor, logo Frau Bandi entrava no meu quarto para ver o que eu fazia.
“O que está o senhor barão a escrever?”, perguntava ela em tom zombeteiro. Ao que, em tom semelhante, eu respondia: “Toda a espécie de disparates.»
[Robert Walser, Histórias de Amor; trad. Isabel Castro Silva, Relógio d’Água, Abril 2008;
topa-se]

25 de junho de 2012




23 de junho de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Não são raros os casos de amizades, íntimas e profundas, que se vêem destruídas pelas viagens e pela vontade de ver mundo.»
(Robert Walser)

Nem sempre a lápis (292)




A casa de ninguém
(versão é-buque enquanto não é livro)

1. O cavalheiro recuou dois passos para voltar a ver-se no reflexo da vitrina. Ajeitou ligeiramente a cabeça, satisfeito. Sentia-se favorecido por aquela posição. Nunca de perfil; sempre de viés, apenas visível a arcada da sobrancelha esquerda. Habituou-se a ver-se assim, captado nas fotos que se seguiram à infância. A partir daí, só concedia o lado direito para memória futura. Guardava, oculto, o outro lado do rosto. E a música assomava-lhe aos lábios, irrevogável.

2. Esta noite choveu e na lota, no mercado, na drogaria, na padaria, e também na farmácia, era voz corrente que o cavalheiro habitava a casa de ninguém que alguém lhe emprestara. Certezas, só a de que tomava o pequeno-almoço sempre na mesma esplanada, substituindo a saudação matinal pela afirmação, convicta, de que era o melhor pequeno-almoço dali e arredores.
«Da Europa», retribuía o empregado; resumindo, numa palavra, o nome do estabelecimento.
O cavalheiro recolhia o troco, recebido com o galão e a torrada, dava os bicos duros do papo-seco aos cães para roerem e demorava a laboriosa degustação, alheado. O currículo insistia em pedir-lhe um cigarrinho, depois.

3. A esplanada ficava a dois passos da casa de ninguém. Depois da seriedade dos Correios, seguindo por um passeio; depois de estabelecimentos diferenciados por gaiolas com canários e pintassilgos à porta, seguindo pelo passeio oposto. Comum aos dois, uma rotunda e uma ilha ecológica, superlotada. O recanto da esplanada fazia parte do loteamento e urbanização que foi empurrando a casa de ninguém para a praia, assoreando-a com uma via com quatro faixas de rodagem a ligar um arquipélago de rotundas. A recta rural entre vinhas – interceptada por uma curva de noventa graus (à má fila) que o cavalheiro conheceu na juventude – tinha-se afastado mais do dobro da distância da casa de ninguém até às escadas mais próximas da frente de mar.
Bem vistas as coisas do patamar, era a responsável pela identificação dos comércios: Doce Mar, Mar à Vista, Mar da Palha, entre outros que não ocorriam ao cavalheiro por dá cá aquela palha; digamos assim.

4. Chegados a este ponto do relato, é crucial revelar um pormenor: o cavalheiro acreditou no erro mais crasso que se possa imaginar. Acreditou na vida e, como se não bastasse, viveu-a.

5. O cavalheiro consultava as suas considerações e apanhava o voo das gaivotas, previamente anunciado pelos grasnidos. Levantava-se e percorria os diferentes acessos à praia com os cães, sugeridos pela comunicação das trelas. Só duas etapas se conservavam inalteráveis: a vista desafogada da Fortaleza e o regresso pausado pela rampa do Casino, de visita aos nomes.
Percorrida a imprevisível centena de metros – não só pela maré e pela época do ano – o cavalheiro chamava os cães pelo sexo e punha-lhes as trelas e ficava atrelado pelo pulso.
Subia as escadas pausadamente, disfarçava o cansaço, volteava a aproximação ao carro e tirava as trelas aos cães pelo sexo, abria a porta e eles pulavam, ligava a ignição e arrancava, contornava a rotunda na totalidade possível das regras de trânsito e era a certeza do fim da manhã na Europa; onde o cavalheiro ouviu dizer que choveu, essa tarde.

6. A casa de ninguém é o arquétipo da chegada do Turismo às praias familiares. (Ver caderneta predial.) É a primeira porta de um prédio com quatro andares, direito e esquerdo, no começo de uma rua que traçaram desafogada até à Escola Primária e termina, hesitante, num largo com diferentes sentidos.
A casa de ninguém fica no segundo andar, acima de quatro lanços e meio de escada suave, tendo em conta os degraus que a separam da entrada; a recepção muda. É composta por um hall, cozinha e casa de banho, um quarto de casal e outro com duas camas e um divã desdobrável, uma sala, uma varanda comum às duas anteriores divisões, a sala e o segundo quarto, implacavelmente voltadas a Norte. O chão é de parquet, as portas e as cercaduras e os rodapés envernizados, as janelas e portadas de madeira pintadas de branco. As paredes conservam uma aguada de verde mal diluído; realçam a ocupação africana que se pretende esquecida e colonizada pelo abandono dos herdeiros.
Não sendo dele (e porque não é sua) o cavalheiro elabora vários projectos para a reabilitação da casa de ninguém. É um arquitecto sentado num sofá. Hoje, derruba a parede e liga a sala ao quarto, substitui as duas portas por outras de correr, envidraçadas; amanhã, trata da cozinha e da dispensa e da varanda para o logradouro; ontem, ocupou-se com a casa de banho e o chão.
Só uma dúvida se mantém insolucionável: onde colocar a mesa de trabalho no novo espaço e, a havê-lo, como pendurar a sacola com livros nas maçanetas das portas de correr sem a sensação de se ter trancado por dentro.

7. O cavalheiro é um incondicional desta luz que dorme com os pés apontados para Sul. Adivinhou-a durante a viagem, vindo de um extremo para o outro, onde chegou à noite e iluminado pela memória dos nomes.
Ocupou diferentes lugares, antes de habitar a casa de ninguém. Viveu em cidades e vilas, viveu na Capital e no campo, viveu em várias praias. Encaixada a estocada da surpresa, instalava-se ou partia. O lugar existia, o faro era escasso. O cavalheiro era de uma reservada simpatia, enquanto coloquial. Consentia que o considerassem na reforma; metáfora a que recorria para iludir a solução final, escorraçado pelos dicionários.
O cavalheiro atravessava uma boa fase; envelhecia sem fazer perguntas para economizar respostas.

8. Com o tempo, o cavalheiro veio a saber o que se sabia: «Já o vi esta manhã a passear os cãezinhos». A baía e o mar aberto, depois dela, não abarcavam a familiaridade imposta pelo quotidiano e os seus hábitos; levar o cão à rua.
O cavalheiro admitia a estranheza da indumentária e da atitude; porém, dava-se o caso de viver no campo que ia ter à praia. O Verão não se via ao longe e o tempo comportava-se com uma instabilidade infantil. Sentiu-se ameaçado e disposto a trocar-lhes as voltas. Enlouquecer as bússolas, tresmalhar os cata-ventos, avariar os sextantes.
Era, em certa medida, uma forma de se manifestar profundamente magoado pelo abate das palmeiras.
E o cavalheiro desceu os novos degraus de fóiaite para a praia, com os cães pela trela. Esperavam-nos outros passeios pelo campo e ruelas, onde não eram conhecidos e os cães se aproximavam sem se cheirar o tipo de boas-vindas.

9. Foi assim como o cavalheiro descobriu a arte de andar à lenha, sem os cães; o coreto e um jardim de laranjeiras, acompanhado por eles. Ficava no centro da vila elevada ao incompreensível estatuto de cidade. Na pastelaria da avenida, um inconveniente friso de fotos antigas denunciava a existência de uma alameda de que o coreto era o único testemunho perdurável; acompanhado de perto por uma esplanada e guardado por um rafeiro anti-social.
Deixava o carro estacionado na avenida e demorava-se o tempo de tomar um garoto, a vigiar os avanços do tinhoso a rilhar os dentes à volta da mesa, a confrontar a ardósia com a toalha da tasca na esquina que determinava o rumo do passeio.
Há muitos anos que o cavalheiro deixara de almoçar, mas a cozinha era uma das suas fraquezas secretas; alimentava-se com os erros ortográficos das ementas, corrigidos com uma meia de leite e qualquer coisa; uma patanisca de bacalhau se tivesse ido à papelaria, a ver o resultado impresso numa mesa do mercado.

10. Entretanto, o cavalheiro interroga-se, com razão, se aproximando-se o relato do final, não é chegado o tempo de ser tratado como deve ser. Isto é, por Cavalheiro.

Papiro do dia (232)

«Foi então que ela lhe tocou no braço, como que sem querer e por acaso. Corou e pensou: “Ele sabe que o quero.” Também ele corou. Ela pensou então para si: “Excelente homem! Respeita-me. É um cavalheiro.” Aos seus olhos, ele era cada vez mais belo, e cada vez mais força, mais orgulho e delicadeza rodeavam a sua figura. Ela pensou: “Amo-o. É verdade que não devia amá-lo, pois sou casada. Mas amo-o ainda assim.” Com os olhos deu-lhe a entender que o amava, e ele era atento, arguto e inteligente o bastante para perceber o que ela queria dizer, o que ela sentia e o que ela desejava. E agora começava o romance. Se em vez de um autor, eu fosse uma autora, escrevia já a seguir e de um jacto dois volumes inteiros.»
[Robert Walser, Histórias de Amor; trad. Isabel Castro Silva, Relógio d’Água, Abril 2008;
pelo menos]

22 de junho de 2012

Before The Poison




20 de junho de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A história senta-se de novo numa pedra atrás dele e escuta com grande assombro. Entretanto, o autor aproveita o tempo para descansar.»
(Robert Walser)
[chocolate da vaquinha]

Nem sempre a lápis (291)


O cisne desliza pela tinta que o escreve; se fosse.

[momento Walser]

Papiro do dia (231)

«Deixa-me que te mostre, leitor amigo, um homem que, se não estou enganado, escrevia as cartas mais nobres e delicadas à sua mulher, no tempo em que ela era ainda a sua noiva, como se prestasse fervoroso culto à feminilidade. Mais tarde, porém, quando a formosa noiva e terna amiga era já sua esposa, reservou à boa mulher um trato bem diferente. Remeteu-a para o cantinho modesto do lar, que era também, de acordo com as opiniões correntes e tradicionais de qualquer homem honrado, o lugar devido da mulher. Enquanto se colocava a si próprio, bem como à sua grandeza e excelência, em todos os pedestais interiores e exteriores mais altos que encontrasse, concedia ainda a graça de subordinar a sua companheira de vida ao esplêndido papel de humilde serviçal, julgando assim dar prova inquestionável de ser um verdadeiro alemão – erro este, aliás, tão comum como as pedras da calçada.»


[Robert Walser, Histórias de Amor; trad. Isabel Castro Silva, Relógio d’Água, Abril 2008]

19 de junho de 2012

Da grande página aberta




17 de junho de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Havia vários anos que eu me hospedava no Montoya. Nunca falávamos muito tempo de cada vez. Era apenas o prazer de verificar o que o outro sentia.»
(Ernest Hemingway)

Nem sempre a lápis (290)

Na ausência de floresta – como conviria para encenar o texto – caminha-se pelo campo e pela baía, esturricados os cravos das dunas antes do tempo; como tantos outros, de nascimento precoce. O rio atravessa-se a vau, de acordo com a autorização do vaivém da maré, seguindo-se a meia distância entre a rebentação do Levante e o cordão dunar, desabitado pelo céu encoberto. A Lua baralhou as marés; oferece as pedras em sucessivos lances que poucos rematam, vistos da toalha. Os maçaricos, revoadas desses pequenos pássaros que catam à marujinha, afastam-se à distância. É natural que o regresso se faça pelo trilho da areia mais dura, seguindo-lhes a peugada. E à falta de floresta – a tal que poderia emprestar ao texto alguma ternura literária –, fiquemo-nos por uma ida à praia, digamos assim, para não melindrar a ociosidade.

Papiro do dia (230)

«A porteira, antes de ser porteira, vendera bebidas no campo das corridas de Paris. A vida dela era na pelouse, mas não perdia de vista a gente da pesage, e muito se orgulhava de me dizer quais das minhas visitas eram bem educadas, quais eram de boas famílias, quais eram sportsmen, palavra francesa pronunciada com o acento em men. O único inconveniente era que as pessoas que não cabiam em qualquer destas três categorias arriscavam-se a ouvir que não havia ninguém em casa de Barnes. Um dos meus amigos, um pintor de aspecto extremamente subalimentado, que, òbviamente, para Madame Duzinell não era bem educado, nem de boas famílias, nem sportsmen, chegou a escrever-me uma carta a pedir que lhe arranjasse um passe válido para a porteira, a fim de conseguir subir e ver-me, às vezes, à noite.»


[Ernest Hemingway, Fiesta; trad. Jorge de Sena, Livros RTP, Lisboa 1972;
vão de escada]

16 de junho de 2012

Bora lá, lanchar no Porto...

... e cear em Coimbra

15 de junho de 2012


«Desejamos-lhe a ele e a nós próprios uma longa vida cheia de trabalho, ou antes, a ele apenas e não a nós, que não somos daqueles que correm por gosto.»


14 de junho de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«É tremendamente fácil a gente fazer-se forte de dia,
mas de noite é outra coisa.»
(Ernest Hemingway)

Nem sempre a lápis (289)

O rádio, o transístor, estava dentro do estojo de pele preta ressequida, com furinhos para o altifalante e uma janela para o mostrador. Os botões que ligavam o volume e procuravam a sintonia rodavam de um dos lados; do outro, a entrada para os auriculares. Era pouco maior e pouco mais grosso do que um maço de cigarros. Encontrou-o na gaveta, onde continuavam brinquedos e peças de jogos e de brinquedos, do móvel preferido do filho. Enquanto o tamanho e a curiosidade permitiu, sentava-se dentro do armário a brincar e o pai ainda ponderou a necessidade de instalar uma lâmpada; uma gambiarra. Abriu uma gaveta com cassetes mudas, outra com álbuns de loja de revelação de fotografia e noutra encontrou o jogo, o Tomahawk, que procurava e viu o transístor com os auriculares perfeitamente enrolados e apertados por um elástico que se partiu, ao recordar. Verificou as pilhas, que substituiu e ligou o transístor; emitia num tempo que os ultrapassava.

Papiro do dia (229)

«A espécie de saudável presunção que era a sua ao regressar da América, no princípio da Primavera, fora-se. Nessa altura, tinha confiança no que fazia, apenas com íntimos anseios de aventura. Agora a segurança fora-se. De certo modo, sinto que não tenho apresentado Robert Cohn com nitidez. A razão é que, até ele se apaixonar por Brett, nunca o ouvi emitir um parecer que, fosse como fosse, o distinguisse das outras pessoas. Era agradável vê-lo jogar o ténis, tinha um belo corpo, que mantinha em boa forma; manejava bem as cartas do bridge, e havia nele uma curiosa espécie de caloirice. Se estava no meio de gente, nada de que ele dizia se notava. Usava o que é costume chamar na escola camisas de pólo, e talvez ainda se chamem assim, mas não era profissionalmente juvenil. Não creio que ele pensasse muito no que vestia. Exteriormente, havia sido formado em Princeton. Interiormente, fora moldado pelas duas mulheres que o tinham treinado. Quando se apaixonou por Brett, o seu ténis foi pelos ares. Era batido por pessoas que nunca tinham tido oportunidade de o bater. E ele portava-se muito correctamente.»
[Ernest Hemingway, Fiesta; trad. Jorge de Sena, Livros RTP, Lisboa 1972]

13 de junho de 2012

12 de junho de 2012


11 de junho de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Saiu do mundo dos factos para entrar no das ilusões, e acontece-me pensar que a ilusão é talvez a forma que as realidades mais secretas adquirem aos olhos do comum.»
(Marguerite Yourcenar)

Nem sempre a lápis (288)




10. Entretanto, o cavalheiro interroga-se, com razão, se aproximando-se o relato do final, não é chegado o tempo de ser tratado como deve ser. Isto é, por Cavalheiro.

Papiro do dia (228)

«Estava de pé, descalço na poeira, no calor e nas exalações do porto, debaixo do exíguo toldo de um cafezito onde alguns clientes, refastelados nas cadeiras, em vão esperavam proteger-se do sol. As suas velhas calças ruças mal lhe chegavam aos tornozelos, e aquele ossinho bicudo, a ponta do calcanhar, as compridas plantas dos pés, calosas e escoriadas, os dedos ágeis e tácteis pertenciam a essa raça de pés inteligentes, acostumados a todas as lides com o ar e o chão, endurecidos nas asperezas das pedras, que nos países mediterrânicos ainda deixam ao homem vestido um pouco do livre desafogo do homem nu. Pés ágeis, tão diferentes dos canhestros e pesados suportes encerrados nos sapatos do Norte… O azul desbotado da camisa condizia com os tons daquele céu esbatido pela luz do Verão; os ombros e as omoplatas rompiam pelos rasgões do pano como agrestes rochedos; as orelhas um tanto alongadas enquadravam-lhe obliquamente o crânio à maneira das asas de uma ânfora; viam-se ainda incontestáveis vestígios de beleza no seu rosto pálido e ausente, como estátua quebrada que aflorasse em solo ingrato.»
[Marguerite Yourcenar, A Salvação de Wang-Fô e outros contos orientais; trad. Gaëtan Martins de Oliveira, BIIS Outubro 2008;
acostumado a todas as lides]

9 de junho de 2012

Se pensam que compram acções,
aviso já que não têm cobertura

8 de junho de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Onde quer que se aviste uma barcaça dissimula-se um bom nadador, e só os peixes lhe descobrem o rasto entre duas águas.»
(Marguerite Yourcenar)

Nem sempre a lápis (287)




9. Foi assim como o cavalheiro descobriu a arte de andar à lenha, sem os cães; o coreto e um jardim de laranjeiras, acompanhado por eles. Ficava no centro da vila elevada ao incompreensível estatuto de cidade. Na pastelaria da avenida, um inconveniente friso de fotos antigas denunciava a existência de uma alameda de que o coreto era o único testemunho perdurável; acompanhado de perto por uma esplanada e guardado por um rafeiro anti-social.
Deixava o carro estacionado na avenida e demorava-se o tempo de tomar um garoto, a vigiar os avanços do tinhoso a rilhar os dentes à volta da mesa, a confrontar a ardósia com a toalha da tasca na esquina que determinava o rumo do passeio.
Há muitos anos que o cavalheiro deixara de almoçar, mas a cozinha era uma das suas fraquezas secretas. Alimentava-se com os erros ortográficos das ementas, corrigidos com uma meia de leite e qualquer coisa; uma patanisca de bacalhau se tivesse ido à papelaria, a ver o resultado impresso numa mesa do mercado.

Papiro do dia (227)

«- Vou morrer – disse a custo. – Não me queixo de uma sorte que partilho com as flores, com os insectos, com os astros. Num universo onde tudo passa como um sonho, seria censurável durar sempre. Não me queixo de que as coisas, os seres, os corações sejam perecíveis, porquanto parte da sua beleza é feita desse infortúnio. O que me aflige é que sejam únicos. Antigamente, a certeza de obter em cada instante da minha vida uma revelação que não mais se repetiria, constituía o que havia de mais luminoso nos meus prazeres secretos: agora, morro envergonhado como um privilegiado que tivesse assistido sozinho a uma festa sublime que apenas terá lugar uma vez.»


[Marguerite Yourcenar, A Salvação de Wang-Fô e outros contos orientais; trad. Gaëtan Martins de Oliveira, BIIS Outubro 2008]

7 de junho de 2012

6 de junho de 2012

5 de junho de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia


[num workshop da Net]

Às vezes, lá calha...

«O meu talento tem a ver com a imanência, com essa identidade, ardente ou gélida, que existe no cerne das coisas. O lirismo assenta-me melhor do que a crónica.»
(J. M. Coetzee)

Nem sempre a lápis (286)




8. Com o tempo, o cavalheiro veio a saber o que se sabia: «Já o vi esta manhã a passear os cãezinhos». A baía e o mar aberto, depois dela, não abarcavam a familiaridade imposta pelo quotidiano e os seus hábitos; levar o cão à rua.
O cavalheiro admitia a estranheza da indumentária e da atitude; porém, dava-se o caso de viver no campo que ia ter à praia. O Verão não se via ao longe e o tempo comportava-se com uma instabilidade infantil. Sentiu-se ameaçado e disposto a trocar-lhes as voltas. Enlouquecer as bússolas, tresmalhar os cata-ventos, avariar os sextantes.
Era, em certa medida, uma forma de se manifestar profundamente magoado pelo abate das palmeiras.
E o cavalheiro desceu os novos degraus de fóiaite para a praia, com os cães pela trela. Esperavam-nos outros passeios pelo campo e ruelas, onde não eram conhecidos e os cães se aproximavam sem se cheirar o tipo de boas-vindas.

Papiro do dia (226)

«As vozes falam comigo vindas de máquinas que voam nos céus. Falam em espanhol.
Não sei nada de espanhol. Contudo, a característica especial deste espanhol que me vem das máquinas voadoras é que o compreendo imediatamente. Não sei explicar melhor este fenómeno a não ser sugerir que, embora, aparentemente, as palavras soem a espanhol, pertencem, efectivamente, não a um espanhol local mas, sim, a um espanhol de significados puros, como o que podia ser imaginado por filósofos, e que me é transmitido através da língua espanhola, graças a mecanismos que não consigo detectar porque profundamente incrustados dentro de mim, é, portanto, significado puro. É o que eu acho, humildemente. As palavras são em espanhol, mas estão ligadas a significados universais. Se não acreditar nisto, então, tenho de acreditar que ou o meu testemunho não é credível, o que pode perturbar terceiros, mas não tem a ver nem com as minhas vozes nem comigo, as duas partes que interessam, já que parece que acreditamos uns nos outros; ou há, continuamente, uma intervenção miraculosa que vem em meu auxílio sob a forma de tradução, explicação essa que prefiro não aceitar a não ser que todas as outras falhem, pois prefiro o menos ultrajante ao mais ultrajante.»
[J. M. Coetzee, No Coração Desta Terra; trad. Maria João Delgado, cortesia da revista “Sábado”, 3€;
passarola]

3 de junho de 2012

2 de junho de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Aqui, no meio do nada, tanto posso atingir a grandeza do infinito como reduzir-me à dimensão de uma formiga. Há muitas coisas que me faltam, mas liberdade não.»
(J. M. Coetzee)

Nem sempre a lápis (285)




7. O cavalheiro é um incondicional desta luz que dorme com os pés apontados para Sul. Adivinhou-a durante a viagem, vindo de um extremo para o outro, onde chegou à noite e iluminado pela memória dos nomes.
Ocupou diferentes lugares, antes de habitar a casa de ninguém. Viveu em cidades e vilas, viveu na Capital e no campo, viveu em várias praias. Encaixada a estocada da surpresa, instalava-se ou partia. O lugar existia, o faro era escasso. O cavalheiro era de uma reservada simpatia, enquanto coloquial. Consentia que o considerassem na reforma; metáfora a que recorria para iludir a solução final, escorraçado pelos dicionários.
O cavalheiro atravessava uma boa fase; envelhecia sem fazer perguntas para economizar respostas.

Papiro do dia (225)

«A bala encontra-se confortavelmente escondida na câmara. E onde se esconderá a minha própria corrupção? Já que estou a pôr tudo em causa, retomo as coisas no sítio em que as deixei. Talvez o que me falte seja a vontade de enfrentar não o tédio dos tachos e das panelas e da mesma almofada todas as noites, mas uma história tão enfadonha que poderia muito bem ser uma história de silêncio. Falta-me coragem para me calar, para morrer e regressar ao silêncio de onde vim. A história que estou a fazer, ao carregar esta arma pesada não passa de um balbuciar espúrio e histérico. Serei assim tão medíocre que só me consiga exprimir por meio de balas? É com esse receio que saio dali – uma figura implausível: uma senhora com uma espingarda na noite estrelada.»
[J. M. Coetzee, No Coração Desta Terra; trad. Maria João Delgado, cortesia da revista “Sábado”, 3€;
da net]