31 de outubro de 2012
30 de outubro de 2012
29 de outubro de 2012
Às vezes, lá calha...
«Acabou por tirar um fósforo da caixa e começar a fazer riscos na areia. Suponhamos que aqui está a casa, disse ele (e sentiu que esse gesto era já, de certo modo, um compromisso).»
(Teolinda Gersão)
Nem sempre a lápis (330)
água tatuada
(1999)
Redes de seiva calcorreiam as octanas da tarde. Depois repousam nos subúrbios do desejo: ardósia dando à margem.
Faúlhas que nascessem – ainda que ataviadas pela Lua – só cruzariam emoções periféricas.
Papiro do dia (272)
«Tempo de partir, descalça, nas manhãs, o corpo inundado pelo sol, tempo de giestas, de gaivotas, de trevo, tojo, plantas bravas. Escalar as dunas, transpirar subindo, agarrada à vegetação rasteira, parar arquejante a meio, o mar de repente encoberto pelo chapéu largo de palha, zumbido de abelhas bravas em volta do seu rosto, chegar finalmente ao cimo arrastando o corpo pela areia, sentar-se na primeira pedra e ver o mar, atirar o chapéu para o lado e levantar a cabeça contra o vento, gritar ou cantar ou ficar calada, olhando o mar, deixar passar as horas sem dar conta, voltar finalmente a casa sobraçando um cesto de flores e camarinhas bravas, empurrar a porta e reencontrar Afonso – o candeeiro aceso sobre a secretária inglesa, um halo de luz sobre os livros abertos e as folhas de papel, um halo de luz sobre o seu rosto inclinado que ela não vê logo porque ele escreve de costas voltadas para a porta por onde ela acaba de entrar, só depois se volta e ela poisa ao acaso o cesto que acabará sempre por tombar e aproxima-se descalça, pisando a areia que se solta do seu corpo e as flores que se espalharam pelo chão. A desordem é subitamente uma forma de amor. Interromper Afonso como o mar entrando.»
[Teolinda Gersão, O silêncio; Sextante, Setembro 2007]
28 de outubro de 2012
27 de outubro de 2012
26 de outubro de 2012
Porque a Net fornece um novo dia
Às vezes, lá calha...
«Se alguém perguntasse, por exemplo: qual é mais longe, da sua casa para a minha, ou da minha para a sua? ninguém saberia calcular ao certo.»
(Teolinda Gersão)
Nem sempre a lápis (329)
água tatuada
(1999)
Os dedos partem a água, como a tatuagem inaugura a insónia. Só o vento sobrevive no fim das águias. Quanto mais a pele se entrega ao corpo, menos se desperta a parede cega.
Eu gostava de poder dormir junto ao ar. Mas já não sei como atravessar o sono – mastigar – ou arrepender-me de estar vivo.
Papiro do dia (271)
«Lídia imaginou um corpo deitado numa praia, ao lado de outro corpo. Eram um homem e uma mulher e falavam. E o que diziam, ou o que a mulher dizia, era a tentativa de um diálogo fundo, mais fundo do que o diálogo de amor que se trava, ao nível do corpo, entre uma mulher e um homem. Ela procurava uma forma de encontro, através das palavras, um encontro que era, antes do mais, consigo própria, e só depois com o homem que escutava. Ou era apenas um jogo de palavras? Hesitou de repente, sem ver claro. Em algum lugar, é verdade, a falsidade começava. Talvez porque a mulher imaginada pressentia que o homem estava parcialmente fora do diálogo e lhe resistia, como se ele representasse, de certo modo, um perigo, e se pudesse finalmente converter numa agressão contra ele próprio. Talvez por medo, sim (pensou), o homem recusasse participar e levar a sério o que a mulher contava, aceitava-o apenas como um passatempo, compreensível numa praia em que todas as horas eram iguais e vazias. Ele estabelecera, portanto, limites tácitos a todas as palavras, verificou, e, se a mulher que falava tentasse ultrapassá-los, ele obrigá-la-ia a retroceder e a alegar que estava mentindo.»
[Teolinda Gersão, O silêncio; Sextante, Setembro 2007;
25 de outubro de 2012
23 de outubro de 2012
22 de outubro de 2012
Às vezes, lá calha...
«Não é um escrito fácil. Entendo as informações que encontro nas fontes de que me sirvo, mas não tenho o conhecimento de fundo para as aproveitar. Receio que será muito fácil cometer um erro.»
(Lydia Davis)
Nem sempre a lápis (328)
água tatuada
(1999)
A pele dorme na água. Respira e o olhar dissolve a náusea – súplica riscada na pálpebra das pedras. Órfã. Apátrida no alvoroço dos cristais. Sonâmbula nos túneis do vento.
Quanto mais se desce a pele da água, maior é o estertor das mãos. Por dentro.
[fizeram-se aqui]
Papiro do dia (270)
«Durante toda a semana ouvira as pessoas dizerem que ia haver uma tempestade. Fui para a praia, quando da sua primeira fúria, para vê-la fustigar a água.
Agora a chuva está a cair sem parar, e as ruas, que estavam vazias no início da tempestade, estão de novo a encher-se de pessoas, e volta a haver um forte cheiro a peixe no ar. Estendi as roupas a secar nuns pregos nas vigas e colunas do meu quarto, de modo que é uma floresta de roupas húmidas balançando sob rajadas de vento que sopram da porta e das janelas.
O ensaio está agora a tomar forma. Tal como passa aqui, o tempo está a passar nas viagens do historiador francês. Descubro e descrevo o seu percurso por esta região, ele avança, eu progrido no ensaio, e os dias passam. Estou a começar a sentir que ele é mais meu companheiro, nesta sala, do que as pessoas vivas desta terra. Esta manhã, por exemplo, como, na minha imaginação, eu andara a viajar com ele desde madrugada, senti que não estava aqui nesta cidade à beira-mar, mas num húmido vale do rio, a assistir aos fogos-de-artifício. Para ele, era noite.»
[Lydia Davis, Contos Completos; trad. Miguel Serras Pereira e Manuel Resende, Relógio d’Água, Julho 2012;
Godard na praia]
Godard na praia]
21 de outubro de 2012
20 de outubro de 2012
19 de outubro de 2012
Às vezes, lá calha...
«O empregado perguntou-me: “Tem companhia?” Edith Piaf cantava em fundo. Eu disse “Tenho” e ele trouxe-me a cerveja.»
(Lydia Davis)
Nem sempre a lápis (327)
água tatuada
(1999)
Possessão arqueológica, soterrada sob um borrão de musgo. Os cardos encostam a cabeça na luz. Os barcos descem ao átrio da areia. O ferro dorme sob a raiz do medo.
Só a água vela a penúria de um horizonte de lama ardente e a cicatriz alastra ao vento.
Papiro do dia (269)
«Da praia, ao entardecer, olho para trás, para terra, e vejo campanários contra o céu, e, num telhado, algo que parece ser quatro estátuas brancas de mulheres de roupão e recortar-se contra o céu, como num cemitério, mas, depois, olhando com mais cuidado, vejo que são quatro guarda-sóis brancos fechados com uma bolas grandes no topo. Na água, os pequenos barcos apontam todos na mesma direcção, nos seus ancoradouros; só um, de repente, se move de forma independente, vagueando um pouco, girando.
À noite, a Igreja Universalista Unitária tem uma vela acesa no campanário, em memória dos que se perderam no mar.
À entrada do beco, do meu beco, aí onde desagua na rua, como a foz de um riacho, há a vida da rua, turbulenta, redemoinhante, correndo sem descanso para as primeiras horas da manhã.
De madrugada fui acordada por uma bulha no jardim do outro lado da minha porta. Era uma doninha presa numas sarças.»
[Lydia Davis, Contos Completos; trad. Miguel Serras Pereira e Manuel Resende, Relógio d’Água, Julho 2012;
octopussy]
octopussy]
18 de outubro de 2012
17 de outubro de 2012
16 de outubro de 2012
Às vezes, lá calha...
«A senhoria vende jóias antigas numa loja no prédio da rua. Chama ao meu quarto um apartamento, embora seja apenas uma divisória, como se a palavra quarto fosse alguma coisa ordinária.»
(Lydia Davis)
Nem sempre a lápis (326)
água tatuada
(1999)
Eu via a respiração tactear o horizonte. Nada manchava o espelho do teu olhar. Nada cicatriza o país de cócoras para o mar retroactivo.
É na levedura do rosto que a paixão ecoa e a água encosta a luz.
Papiro do dia (268)
«Estou a morar junto ao porto num pequeno quarto húmido azul e branco que cheira ligeiramente a gás do fogão. As únicas pessoas que vejo são um casal de idosos que moram encostados à povoação. Às vezes, têm visitantes da mesma idade, e então convidam-me para ir jantar ou tomar chá com eles.
Trabalho de manhã e ao início da tarde, e depois saio para ir buscar o correio. Quando vou às compras, compro, por exemplo, um apara-lápis, uma pasta, um pouco de papel e um postal. De outras vezes, poderei comprar fruta, biscoitos e um jornal.
Aproxima-se uma tempestade, e as gaivotas gritam pelas ruas. Vieram para terra fugir à tempestade. Há um forte cheiro a peixe no ar.
Para ir do meu quarto à praia, desço a estreita calçada entre dois prédios de madeira, o meu e o do motel ao lado. Os dois edifícios inclinam-se um para o outro acima de mim quando passo pelas janelas dos apartamentos do motel, à altura da cintura; a certas horas, as mulheres estão a trabalhar nas cozinhas, e há farrapos de conversas nas salas de estar. Essas pessoas parece que falam mais alto e, ao mesmo tempo, estão mais paradas porque estão de férias e ociosas.
Os diferentes grupos de pessoas aqui: os residentes permanentes, alguns dos quais são artistas ou, outros, lojistas; os turistas, que vêm aos casais e às famílias, e são geralmente grandes, jovens, saudáveis, bronzeados e educados, dos quais turistas, a maioria são americanos, mas alguns são quebequenses, e destes, alguns não falam inglês; pescadores portugueses, mas estes são mais difíceis de descobrir; alguns portugueses que não são pescadores, mas cujos pais ou avós eram pescadores; alguns pescadores que não são portugueses.»
[Lydia Davis, Contos Completos; trad. Miguel Serras Pereira e Manuel Resende, Relógio d’Água, Julho 2012]
14 de outubro de 2012
Bom dia, um autor desloca-se a Coimbra
para ouvir coisas destas
sitiado numa livraria
a propósito disto
[não se lê? calma...]
«Digamos assim: eu nunca fui a Tânger mas já fui a casa do Jorge e da Nico. Comi maravilhosamente bem e acho que até cheirava a “frutos secos e a polvo assado”. Sei de ciganos e distinguir ervilhas-de-estalo de hortênsias, embora me falhe a memória para granitos e gadanhas. Quanto a portos de pesca, sobretudo aqueles “sem indicação que lhe[s] denuncie o anonimato”, podem contar comigo. O vento Sueste conhece-me. Também li Paul Bowles, o que sempre ajuda.
“O livro do fim” é um livro escrito pelo Jorge Fallorca. Um título vale o que vale. Os poetas são uns grandes batoteiros e é por isso que Platão não gostava deles. Platão era um homem muito sério, um bolchevique, à procura da ordem do mundo. Ora o mundo, sabemo-lo hoje, é uma grandessíssima desordem, mesmo a ser um facto que Deus não joga aos dados: “esta casa desconhece a rectidão das esquadrias e não há uma única parede que se possa dizer plana”.
Quanto aos livros, valerão – ou não – tanto como um par de sandálias compradas na Medina. Experimentem calçar sapatos apertados e logo me dirão se não é terrível.
Numa frase: melhor que ser poeta, é ser poesia.
O que me dizes, Jorge?
Ana Cristina Leonardo»
13 de outubro de 2012
11 de outubro de 2012
10 de outubro de 2012
Às vezes, lá calha...
«O padre disse que a sua condição era a de uma santa, que isso fazia dela, não mais uma simples carne, mas uma capela de oração.»
(Andréa del Fuego)
Nem sempre a lápis (325)
água tatuada
(1999)
Como o olhar consome a demora, assim a mão devora o livro – a construção. Vigilância sitiada entre tábuas impressoras, desaguando num aquário de luz.
Ainda que acendam sombras, tudo quanto vejo é falso.
Papiro do dia (267)
«Júlia e Ludéria agradeceram o dia em que puseram os pés na Loja Maçónica. Desde então a vida era outra. Ludéria não conhecia patrão que fosse amigo, falasse as mesmas coisas, gostasse da mesma comida. Júlia estava inebriada, mostrava os dentes o dia inteiro. Messias tinha muito gosto das duas no balcão. Missa e balcão a vida delas. A freguesia se tornava fiel, Júlia dava ideias para os vestidos, Ludéria para as bainhas italianas nas calças de linho, pences nas saias longas. Júlia não gostava de botão, nem da palavra, quanto menos pegá-los nas mãos.
Ludéria sabia costura, mas não tinha mão. Ensinou à Júlia consertos, depois copiar roupa de olhadela. Com o ordenado, pegava mais barato os tecidos que menos saíam. Ludéria tinha uma revista de atrizes de cinema, um só exemplar, pegou no lixo de Leila. Atrizes de olho esmeralda, cintura fina, cetim preto. Júlia copiou um vestido de gala com algodão vagabundo. Ela mesma usava no balcão. No começo, acharam que era devota demais usando vestido comprido em dia quente. Ela respondia que com algodão não tinha problema e era agradável ter o corpo coberto, sem encheção de homem olhando. Começaram as encomendas, as colegas da igreja gostaram do recato, apesar da cintura marcada. Júlia fazia modelos para missas. Missas das seis, missa das nove, missa das dez, missa de quarta, missa de domingo. Para cada hora, um tom, um viés. Messias se empolgou e aumentou o comércio de forma a deixar o armarinho independente do armazém.»
8 de outubro de 2012
7 de outubro de 2012
Às vezes, lá calha...
«Os bois seguiam olhando o horizonte com fidalguice, sabendo que, se a carga era leve, tinha outra importância.»
(Andréa del Fuego)
Nem sempre a lápis (324)
água tatuada
(1999)
Quando Setembro se faz ao mar, a água trepa pela labareda plúmbea. O barro aquece as mãos, o olhar esfola o sarro da memória. Na poalha dos crimes acordados boceja um coração atónito.
Ainda fará sentido projectar-me sobre as arqueologias da ternura?
Papiro do dia (266)
«Maria entrou no quarto, ia botar outro vestido. Nico esperava na sala, amigos da Fazenda Rio Claro se acomodaram perto dele. Crianças corriam debaixo do abacateiro. Fechada no quarto, Maria desabotoou o vestido. Ganhou jarra, esteira, panela, boneca de pano, colcha bordada, travessa de vidro, concha, tesoura e mosquiteiro. Tudo sobre a cama do casal, o alumínio das panelas piscando luz no espelho do guarda-roupa.
- Vem, Maria, a Companhia de Reis chegou – falou Nico baixinho atrás da porta.
Um homem ágil, vestido de chita e máscara, fazia macaquices. Atrás vinham os músicos, uma sanfona, uma viola, uma caixa. Por último, um homem com calça de cetim segurava a bandeira, nela três estrelas e um menino. Os reis magos vinham dar a benção, com a bandeira desfraldada, entraram na casa. Final de Dezembro, o nascimento de uma coisa e morte de outra. Alinharam-se na cozinha e um negro velho entoou uma ladainha. A sanfona adocicou o grave da caixa, a voz cobriu a casa com vibração esvoaçante. O mascarado deixava vazar dois olhos de tempestade, girava a cabeça de um lado para o outro, dava pulos no mesmo lugar. Ao fim da ladainha aninhou-se aos pés do sanfoneiro. Nico beijou a bandeira e a levou por todos os cômodos, batizando a casa.»
6 de outubro de 2012
5 de outubro de 2012
4 de outubro de 2012
Às vezes, lá calha...
«na memória uma ideia de pássaro, meu atributo
e uma gratidão quase solene»
(Catarina Barros)
Nem sempre a lápis (323)
Desci a rua com a memória mais viva e mais consciente da coabitação perfeita de dois tempos, lamentando, ao passar o Aqueduto, não reparar se ainda existem as placas com os números das linhas. O autocarro era o 15, o eléctrico creio que era o 24 e deixava-me no Largo da Misericórdia, à mercê dela; e que ela seja ampla mas pouco larga, de preferência. Lembrei-me da Mãe-d’Água, a rua ao cimo da Praça da Alegria, onde fui desmamado pelo & etc., e do claustro onde a água é venerada, quando entrei no jardim seguindo as pisadas que me fizeram passar pela árvore de costas.
Vi duas pitas a dar ao telelé e assustei-me, quando o cachorro saltou para dentro da vedação do canteiro e ficou pendurado pela trela, até elas darem pela interferência na linha; safadas das miúdas, com as hormonas reféns das operadoras.
Aproximei-me da árvore, a tentar reconhecê-la pelas costas que não fixei, contornando-a de instamatic em riste para perder a mania de duvidar de mim e do que vejo e imagino. Baixei-a. Em sentido contrário, com um tom de voz de quem cria e amamenta problemas, aproximavam-se umas três ou quatro gajas tão feias, tão feias, que se visse coisa mais feia do que elas atirava-lhe com uma pedra; só podia ser bicho. Conseguiam ser mais feias e mais estranhas do que as que metem medo ao susto. Uma, parecia que tinha o queixo torto e era zarolha, ou tinha olho de robalo; dourada não era. Depois tive pena de não as ter apanhado; exemplares fugidos do Museu de Antropologia. Qual não é o meu espanto, enquanto esperava que desatravancassem a objectiva, ouvi isto e até tive pena de já não andar com o Sanyo cassette tape recorder M 1001: «Ele não gosta de fotografar mulheres, gosta mais de tirar fotografias às árvores.» Acho que disse, rebaixei-me como se falássemos de igual para igual: «Há árvores que merecem muito mais uma fotografia do que muntas mulheres». Com muntas e tudo. Tirei a fotografia e pus-me a andar a olhar em frente, à rasca com a possibilidade de se travar diálogo; às vezes, começa-se assim.
Puta que as pariu, conhecemo-nos lá de algum lado? Se fossem normais, faziam de conta que não era nada com elas, «Nem sou de cá…»; ou sorriam e avançavam o passo. «Eu espero. Não tenham pressa», retribuía-lhes eu.
Papiro do dia (265)
«HOW TO BE ALONE (Catarina Barros)
não foi em Kalkbreite nem sequer em Lochergut
mas na Zähringerstrasse, junto à biblioteca. vinha
de uma dessas avenidas que há em todas as cidades
onde lojas de moda convivem com livrarias, casas
de chocolates e um grupinho de punks
na memória uma ideia de pássaro, meu atributo
e uma gratidão quase solene
à minha volta os homens pousavam no lugar vazio
da imaginação e eu olhava, nunca mais de três segundos
a fim de manter o anonimato
a felicidade era as palavras de um poeta
no balcão da despedida: “a Dickinson tem um verso
sobre Zurique que não é triste”
era a Europa de ipod nas orelhas, era eu peninsular
agora ilha desconsolada com aquele livro compelling
and invigorating (cf. Times), no fundo, era
essa missa de corpo presente onde nenhum
pater me levava pela mão
rapariga sem flor na transparência da língua
não foi em Kalkbreite nem sequer em Lochergut
mas na Zähringerstrasse, junto à biblioteca. vinha
de uma dessas avenidas que há em todas as cidades
onde lojas de moda convivem com livrarias, casas
de chocolates e um grupinho de punks
na memória uma ideia de pássaro, meu atributo
e uma gratidão quase solene
à minha volta os homens pousavam no lugar vazio
da imaginação e eu olhava, nunca mais de três segundos
a fim de manter o anonimato
a felicidade era as palavras de um poeta
no balcão da despedida: “a Dickinson tem um verso
sobre Zurique que não é triste”
era a Europa de ipod nas orelhas, era eu peninsular
agora ilha desconsolada com aquele livro compelling
and invigorating (cf. Times), no fundo, era
essa missa de corpo presente onde nenhum
pater me levava pela mão
rapariga sem flor na transparência da língua
SKEUOMORPH [Épica] (Paulo Tavares)
4. Se é de eras glaciares e dos grandiosos elementos à escala humana que falamos – o homem como medida de todas as coisas, ou: não estando à altura das coisas que lhe seriam equivalentes –, o aluno aplicado procurará sempre as crateras dos meteoritos, a evidência dos terramotos, o rasto da humanidade perdida. Tentará encontrar, em cada laje dos cemitérios, o nome dos antepassados, para que, em esforço, mas com o alento das origens, os possa inscrever numa qualquer nova modernidade. Desconhecerá, todavia, que, quando revolvidos, os cemitérios são já campos de cultivo.»
[Quinteto (Catarina Barros, Tatiana Faia, Maria João Lopes Fernandes, Frederico Pedreira, Paulo Tavares); Artefacto, 2012]
3 de outubro de 2012
2 de outubro de 2012
1 de outubro de 2012
Às vezes, lá calha...
«Assim, o Ganguela-do-coice tinha visto tudo, tinha entendido tudo. E era isso, precisamente, que pelo seu próprio punho, a grosso e tosco, estava escrito no caderno de Archibald: eu vi tudo.»
(Ruy Duarte de Carvalho)
Nem sempre a lápis (322)
... finalmente, uma ligeira brisa carregada com a transpiração pegajosa dos pinheiros e eucaliptos começa a descer a serra e a misturar-se com as pinhas acesas para grelhar carapaus para o jantar. E à medida que as pinhas pegam e o carvão começa a crepitar, na estrada, atrás do eucaliptal ao lado, ouvem-se passar camiões fúnebres carregados com os derradeiros troncos de pinheiro que era a verdadeira mancha verde que caracterizava e era a principal indústria de Mortágua. Desse passado, resta uma estrada – que julgo única e entregue ao livre trânsito das ervas daninhas – com a faixa descendente em paralelepípedos, para que as pesadas rodas dos carros de bois não cortassem o alcatrão, quando a desciam para trazer os troncos para as serrações. Hoje entregues ao esquecimento e vandalizadas pelo tempo, que optou pelo lucro fácil e duvidoso do eucalipto, fertilizado por um número crescente de incêndios.
Olho para o meu sobrinho neto e – por mais que tente, por mais que me esforce por não lhe estorvar a liberdade de ser quem é e será – não consigo deixar de pensar: como será uma geração que perdeu, que já não chegou a conhecer a alegria ancestral de talhar barcos à navalha em carcódoas de pinheiro?
Papiro do dia (264)
«Dois horizontes da idade:
E se o horizonte da nossa fosse a possibilidade, a descoberta, a legitimação de múltiplos horizontes numa mesma idade?
A simultaneidade dos horizontes, até aqui múltiplos horizontes, fechados sempre sobre si mesmos, no seu tempo, no seu espaço. E, quando em relação: horizontes dominantes, horizontes dominados. Exclusivos uns dos outros.
Um horizonte invadiu tudo, domina. Todos os outros se lhe rendem. Pela incorporação ou pela anulação. Só conseguem exprimir-se dentro da crise, da dinâmica da crise do horizonte dominante. Abrem a consciência de um vazio. Do processo de apreensão à consciência da apreensão e à má consciência da apreensão.»
[Ruy Duarte de Carvalho, Os papéis do inglês; Cotovia, 2000]
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