29 de setembro de 2010
Às vezes, lá calha...
«Querido poeta que te queixas da sociedade, por que te ligas à sociedade através de uma rede sem fios?»
Nem sempre a lápis (86)
Quando nos conhecemos, estavas para ir a Londres; nessa noite, fui até Paris e emprestei-te o quarto, onde esperaste por mim. Esta semana, vais um mês para a Índia; espero por ti na casa que passou a ser só minha. E está certo, o tempo começa a exigir agasalho, a cama uma manta de lã; a serranita de Manteigas aberta sobre as pernas, a lembrar-me das mantas cruas de Asilah, das cores que vais trazer no olhar, até Portimão. Depois, dedico-me uma semana à contemplação no Clube Naval; a corar o olhar ao Sol.
À mão de ler (90)
«Mais tarde, quando conseguiram que uma camioneta descesse até à margem para rebocar a carcaça do veículo, a tampa do porta-bagagens soltou-se e uma chuva de vidro caiu sobre o leito do ribeiro - durante trinta minutos, alguém disse mais tarde - durante um bom bocado, de qualquer modo. Encontraram-se até dois ou três frascos intactos, o que agradou imenso a Gifford - provas, disse ele...
Era um Plymouth, um coupé 33; o pneu da frente do lado direito tinha um buraco onde cabiam três dedos. À parte isso, nada havia nele de notável, excepto o facto de estar em Red Branch, totalmente destruído, com os restos de um carregamento de whiskey na traseira.»
27 de setembro de 2010
Às vezes, lá calha...
«Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndio de vida
e morte resumida agasalhada em asas»
Nem sempre a lápis (85)
O Sol escondeu-se atrás da Junta de Freguesia, enquanto fui buscar o café ao balcão, bebido de frente para a minha esplanada: Encerramos Ao Domingo. Mudei de mesa, apenas para sentir as costas protegidas e abrigar-me da aragem; nada previa isto, no bloco. Levantei os olhos e um chapéu-de-sol – inútil, enrolado – fazia de menhir urbano, rodeado pelos despojos do culto. Antes do sino bater as sete e alertar os fiéis que lhe seguem a via-sacra, vi passar uma família de fora; com vagares deslocados. Seguia na peugada trôpega, mas decidida, de um espectro amortalhado como se vestisse o fato com que se casou; os maxilares à procura dos dentes perdidos, o chapéu derrubado sobre a fronte, sulcada de regueiras, de açudes, de hortas ressequidas, à medida que os dias mirram com uma alegria desconcertante.
[baldio]
À mão de ler (89)
«Nessa época havia num desfiladeiro da montanha uma casa de pasto chamada Taberna da Mosca Verde. Tinha a forma duma caixa, mais alta na frente e com o telhado de zinco inclinado para trás, e fora construída sobre uma ladeira a pique, apoiada numa armação de postes, a porta principal dando directamente para a estrada. Um dos cantos estava preso a um pinheiro que se erguia como uma torre das profundezas da ravina - ravina esta que nas noites ventosas funcionava como um tubo de órgão, conduzindo através do desfiladeiro as lufadas de vento que subiam do vale. Nessas noites, o soalho da taberna valsava, embriagado, sob os pés dos fregueses, ondulava, vergava-se com gemidos dolentes. Por vezes, todo o edifício se precipitava, enlouquecido, para um dos lados, como que prestes a mergulhar no vazio. Os fregueses suspendiam os gestos, o líquido a dançar-lhes nos copos, a estrutura sofria um abalo violento, uma vassoura caía, depois uma garrafa, e por fim a taberna endireitava-se lentamente e readquiria uma vez mais o seu normal equilíbrio cambaleante. Os fregueses levavam os copos à boca, as conversas retomavam o seu curso. Comentários alusivos às excentricidades da taberna eram emitidos apenas fora do edifíco. Para os freguentadores, a taberna era um ser vivo, tal como um velho navio aos olhos da respectiva tripulação, e nela se gerava uma atmosfera de que poucas embarcações se podiam gabar, uma solidariedade devida em grande parte à sua própria instabilidade. A oscilação, os pequenos gritos incessantes da madeira torturada criavam uma ilusão totalmente náutica, de tal forma que após um repelão mais violento os presentes quase esperavam ver um piloto barbudo saltar através de uma escotilha no tecto para comunicar que o cordame nada sofrera.»
25 de setembro de 2010
Nem sempre a lápis (84)
Não gosto porque me identifique; o que reverbera dentro de mim, o que acciona o diapasão endurecido, é a contenção explosiva de Marta Chaves. Conheci-a por acaso, sentado ao balcão do bar do Miguel, a apanhar o exemplar único exposto num cavalete: Onde Não Estou, Tu Não Existes, tea for one; um pouco, toma lá e vai-te tratar. Assim o interpretei, e bem, enquanto lia as vinte e uma páginas de texto dividido pela atenção para com o anfitrião, dando o caso por arrumado até chegar a casa. Entregue o talismã ao cuidado da Nico, semanas depois o acaso proporcionou-me também uma leitura pelo editor e pela autora, sentado a tomar notas e a fotografar um universo, onde só os mais afoitos se aproximavam da fasquia dos quarenta anos; a diferença de idade sobejava para alguns. E foi então que verifiquei esta coisa assombrosa: se a Marta escrevesse Esta coisa de espantar. O medo, a raiva, o medo. / O medo. Tu dirias:, e me deixasse escrever o passado, as letras batem certas; não sobra nenhuma.
À mão de ler (88)
«Sylder pensou no velho Tipton a dizer-lhe que o carro não prestava, pois qualquer patego via logo que, com os pistões a moverem-se num ângulo daqueles - com o cu caído para o lado, tinha ele dito - era fatal que haviam de se gastar num dos lados, mais cedo ou mais tarde. Os pistões eram feitos para andarem para cima e para baixo. As ruas estão cheiinhas de carros assim, disse ele, se te serve de algum consolo saberes que não foste o único embarrilado.»
24 de setembro de 2010
23 de setembro de 2010
Porque a Net fornece um novo dia
«Invitado en Lyon a un simposio internacional sobre la novela, un doble del escritor Vila-Matas es dejado por un taxi en su hotel sin que allí nadie le dé la bienvenida. En la soledad de su habitación redacta una teoría general de la novela, incidiendo especialmente en los cinco elementos que deben reunir los textos para pertenecer al nuevo siglo, mientras la organización que le ha invitado a Lyon sigue sin ponerse en contacto con él. De regreso a Barcelona, le parece descubrir la futilidad de todo ensayo y de todo viaje y quizás incluso la futilidad de todo, de modo que acabará destruyendo la teoría, si bien ésta podría servirle a alguien para escribir Dublinesca.»
Às vezes, lá calha...
«... depois de anos de soslaio, chego finalmente a ele. parece que passei o ano a ladrilhar o caminho – grande parte do que li (ou parte muito importante) foi-me empurrando para lá: Dublinesca, New York, e até o vulcão do Lowry.»
«É bom trabalhar nas Obras» (39)
«Imaginemos que uma mulher chega a casa e surpreende o marido a examinar a sua própria merda com um palito. Imaginemos que este homem nunca mais regressa do seu ensimesmamento e que ela tem de interná-lo numa clínica para doentes mentais no Norte do país. O nosso livro começa na manhã seguinte, quando essa mulher regressa a casa de comboio, depois de ter terminado o processo do internamento, e o homem que está sentado ao seu lado, um homem jovem, de nariz proeminente, olhos irrequietos e alopecia prematura, que veste um fato azul-marinho e tem em cima dos joelhos uma peculiar pasta de cor vermelha, se dirige a ela com esta pergunta tão peregrina:
- Gostava que lhe contasse a minha vida?
Que raio de pergunta. Ao ouvi-la, a nossa mulher, de aspecto mais elegante e distinto, uns anos mais velha, embora de estatura pequena e, como se costuma dizer nestes casos, de fisionomia agradável e olhos vivazes, fica petrificada. O homem ri-se de uma maneira que a ela lhe parece aberta e franca, e esclarece que é uma piada, uma maneira como qualquer outra de quebrar o gelo, porque a viagem até Madrid é muito longa.
- Chamo-me Ángel Sanagustín – diz –, sou psiquiatra e trabalho na clínica onde a senhora acaba de internar o seu marido; vi-a por lá esta manhã. Não sei se o doutor Crespo lhe falou de mim, trabalho na aplicação do discurso escrito ao diagnóstico das perturbações de personalidade; pedimos ao paciente que conte um episódio da sua vida por escrito, analisamos a sua narrativa e a seguir podemos fazer o diagnóstico. Também vamos fazê-lo com o seu marido e, além disso, com muito gosto, porque os textos dos coprófagos são muito divertidos e acabam sempre por me fazer rir. Esta pasta tão atraente é um livro que estou a preparar sobre a esquizofrenia e as perturbações paranóicas, que incluirá textos dos meus pacientes. Por isso, tenho de lhe pedir autorização para acrescentar algo do seu marido; as narrativas dos coprófagos são as mais curiosas; já agora, se quiser, leio-lhe uma.»
[Antonio Orejudo, Vantagens Em Viajar de Comboio; em revisão para a Minotauro;
À mão de ler (87)
«Há algum tempo que a estrada se encontrava deserta, branca e ainda escaldante, embora o Sol já pintasse o céu de vermelho. Caminhando lentamente pela poeira ele parava de tempos a tempos e oscilava, apoiado num só pé, como um pássaro desajeitado a tentar equilibrar-se, enquanto examinava o chumaço de adesivo que lhe saía dum buraco na sola. Virou-se outra vez. Uma pequena massa informe emergira no extremo da tira de cimento chamejante e avançava agora com esforço na sua direcção. Avolumou-se a pouco e pouco, oscilante e grotesca como uma imagem vista através dum vidro cheio de defeitos, adquiriu por momentos a forma e a solidez duma carrinha de caixa aberta, passou num jacto e desvaneceu-se na mesma silhueta líquida em que se tinha aproximado.
Num gesto vago, ele agitou o polegar estendido para a viatura que se afastava. Pequenos remoinhos de poeira saltaram da lomba da estrada e vieram pousar-lhe nas bainhas das calças.»
21 de setembro de 2010
Às vezes, lá calha...
«O inteligente pobre é muito melhor observador do que o inteligente rico. O pobre mede cada passo que dá, escuta atentamente cada palavra que ouve às pessoas que encontra. Cada passo que ele dá constitui para o seu cérebro e para a sua sensibilidade uma tarefa, um trabalho.»
«É bom trabalhar nas Obras» (38)
«Abandonou a literatura de qualidade e procurou fórmulas que lhe permitissem ganhar dinheiro. E foi assim que lhe ocorreu inserir publicidade nos livros. Mas não na capa, embora também; nem na contracapa, embora também; nem nas badanas, embora também; mas nos livros, dentro do texto, inserida na trama, ou a separar os capítulos.
Exigiu que os autores não enviassem manuscritos, mas sim dossiers; e a partir de então atirava para o lixo todos os romances completos e examinava só aquelas pastas que incluíssem fotografia, curriculum vitae, e uma breve sinopse a dois espaços, o que lhe permitia a ela avaliar as possibilidades de incluir publicidade. Durante meses, continuaram a chegar-lhe aquelas melancólicas naturezas-mortas sobre a guerra civil, a pré-guerra civil ou o pós-guerra civil, que os nascidos nos anos quarenta e cinquenta se empenhavam em recriar, vezes sem conta, em narrativas que confundiam a seriedade com o tédio, a parvoíce com a sensibilidade, e que incluíam personagens que se chamavam Inés ou Alfonso, e complementos circunstanciais do tipo «com a lenta parcimónia do verdugo». Podiam ter toda a autenticidade que quisessem e a contundência do que foi insuflado com o sopro divino da verdade, mas não deixavam nem um resquício para a publicidade. Também já não lhe interessavam os romances carrossel, a especialidade do seu marido, aquelas páginas reflexivas, falsamente reflexivas, que não chegavam a lado nenhum, que davam voltas e mais voltas para deleite do leitor a um episódio mais ou menos trivial, mais ou menos original, até que paravam no mesmo ponto de onde tinham partido, sem uma maldita pausa para a informação comercial.»
pub]
À mão de ler (86)
«Sentia-se melhor n'A TABERNA que no salão burguês, adoptara o lumpen. Por lhe achar mais verdade ou, simplesmente, por ser mais barata ou, ainda, porque aí o seu critério reluzia redobradamente, numa fusão de megalomania com o seu oposto. A TABERNA é o refúgio do boémio culto, apreciando-lhe o saber e o autodidatismo, a vida-airada e a ruína, a doçura e a agressividade, a consciência social e a inacção. E, sobretudo, apenas pelos vapores do álcool ou por uma generalizada partilha dessa mesma postura, A TABERNA não se intromete na sua distracção, nesse estar alhures que lhe permite estar ali. Um ponto de fuga de outro ponto de fuga, mas nunca a Oriente do Oriente - errando pela Antárctida.
Hoje há pica-pau. Tabaco só ao balcão. Os produtos expostos são para consumo da casa. Se bebes para esquecer, paga antes de beber. O camelo é o animal que aguenta mais tempo sem beber - não seja camelo. O tabaco é pago no acto de entrega.»
19 de setembro de 2010
Nem sempre a lápis (83)
Entretido a passar os olhos e a tirar alinhavos d’O Livro do Fim, surpreendeu-me uma foto que não devia ser novidade. Há mais de um ano que não nos víamos, quando esteve para ser editado pela Trama, com paginação e capa do Paulo da Costa Domingos, a partir da foto do pátio que se segue à entrada no Café Hafa; privé, na caniçada. Há mais de três anos, a escrita sedentária aconselhava-me a «ir a Tânger buscar um livro»; e fui lá de propósito, à procura dele. Uma manhã, enquanto tomava o pequeno-almoço de frente para a place de Faro e a costa espanhola, lembrei-me de apanhar o autocarro e ir a Asilah tirar fotos para animar o texto; pensava eu, numa esplanada alguém me disse que o livro se tinha esgotado. Olho-a resgatado no monitor: a foto utilizada como separador de texto, de tempo, foi tirada ao acaso dentro da Medina; é a esquina, com proa, de uma parede branca, um rodapé verde esmurrado à altura dos ombros, decapitada por cabos eléctricos; caiados. Essa parede – a parede que me perseguia como um livro pelas ruelas de Tânger e vi há três meses em Asilah, com naturalidade –, reencontrei-a enquanto passava os olhos e tirei mais alinhavos d’O Livro do Fim; trinta e sete anos depois, afinal não era em Tânger. E alguém te pediu a opinião, Cioran?
À mão de ler (85)
«O TABERNEIRO é da cintura para cima. Poderia ser centauro. Centenário. Milenar. E é-o: pereneterno. Com ou sem laço ou ou pano pelo braço, de afro-hair-do, azougado tatoo, uma dentição d'ouro reluzente ou "sempre a considerá-lo" - depositando-as-fêveras. Pode chamar-se António, Miguel, Moussa ou Jeanne, qualquer-coisa-de-Bruges-ou-de-Sèvres - decepado por berço, por boteco ou botelha, o certo é ser só busto aos olhos da cangalha.
Fico-me pela foda variegada, pelo vinho, pelo cheiro do papel e pela visão dimensionante de uma montanha de fogo junto ao mar. "Desculpem se me cago para vós e, já agora, vão-me ganhando a vida, que, para gastá-la, podem contar comigo."»
17 de setembro de 2010
Às vezes, lá calha...
Nem sempre a lápis (82)
(...) Quando abri o Google para procurar Jajouka, a minha ideia resumia-se apenas a confirmar a localização, lida algures, da divulgadíssima aldeia do sudoeste do Rif, mas que já não faz parte do Pays Jebala. Provavelmente, folheada numa dessas revistas que acabaram por transformar os quiosques numa espécie de baús de viagem perdidos, remendados com autocolantes de hotéis e termas, aviões parados no ar, praias idílicas, onde não se ouve a rebentação; praias que perderam a voz nas agências de viagens.
Jajouka entrou para o imaginário de sucessivas e cada vez mais incansáveis gerações de papa-léguas, a partir do longínquo dia em que Brion Gysin teve a peregrina ideia de contar a Paul Bowles (ou terá sido o contrário?) a existência de uma tribo sufi, que, por sua vez, a transmitiu a William Burroughs. Como o exótico achado terá chegado ao conhecimento dos Rolling Stones já faz parte da lenda. Lenda que se tornaria ainda mais lendária com a morte de Brian Jones, e se manifesta irrequieta em relação à data da gravação do célebre disco The Master Musician of Jajouka, saltitando como um dervixe rodopiante entre o ano de 1968 e 1971, se também eu não estou em erro e a contribuir, involuntariamente, com mais uma data.
A primeira vez que ouvi Apocalypse across the sky foi em finais de Setembro de 1971, copiado para uma K7 que o Sony M 1001, curricularmente guardado aqui na gaveta, reproduziu até mastigar incontáveis cópias que acabariam por lhe derreter, irrecuperavelmente, as cabeças. Durante anos, pensei ou, se calhar, fui acabando por decidir que Jajouka era o nome do grupo musical, nunca me ocorrendo que pudesse ser apenas o nome de uma aldeia, onde uma irmandade sufi viveria da catarse polifónica ministrada aos sábados de manhã aos doentes mentais. Ou melhor, aos possuídos das redondezas. (...)
[A não perder a ementa no final do videoclip]
À mão de ler (84)
«Os ocidentais parecem esquecer que a sua história e o seu passado recente não os autoriza a dar lições a ninguém: conviria recordar, aos que denigrem sistematicamente o Islão, que no seu âmbito nunca houve Inquisições sangrentas como as nossas, nem o genocídio de populações inteiras como as dos índios americanos, nem extermínios à Hitler, nem emprego de armas mortíferas como a de Hiroshima.»
15 de setembro de 2010
Às vezes, lá calha...
«Já em criança, ficava horas, dias, semanas a olhar a água batendo na pedra. Esperava que furasse, mas só me foi dado ver lodo. Nunca a água mole furou a pedra dura, sempre em lodo se transformou.»
Nem sempre a lápis (81)
Nunca gostei de paredes esmurradas; cor hipnótica ou paredes velhas, legíveis. Também nunca me senti impelido a escrever nem a pintar na parede, daí o assombro que conservo por ver uma camioneta de carreira, e não um autocarro, desenhada a lápis na cal do antigo hospital, visível entre os escombros do incêndio, onde pereceu o artista sem-abrigo. O Bruces, corruptela do nome do legionário francês exilado em Mortágua, como mestre de palavrões, às escondidas consentidas dos pais. É possível que esta (entre outras) paranóia, fobia, a tenha herdado da senhora minha mãe; honra-me a possibilidade de estar «escrita» nas paredes do destino. Conhecedor da necessidade de conviver com as duas paredes, sobreponho-as, penduro quadros, camisas; esqueço a inutilidade do prego na parede de cor plana, reconforta-me o carácter provisório. É curioso que a camisa que ali pendurei seja a mesma que comprei na feira de Pataias, animado pela ideia de a utilizar em Marrocos, à boleia, quando fiz cinquenta anos. Acabei por nunca a levar nem fazer Marrocos à boleia, recorrendo a ela para fazer a capa de um livro, à boleia na então chamada «casa de Armação». Gosto de vê-la regressada à casa donde saiu, para pendurá-la no prego que encontrámos; itinerância.
À mão de ler (83)
é o meu próprio rapto.»
Nesta dissidência, cumpro rigorosamente o teu desaparecimento.»
O medo. Tu dirias: o passado.»
[Marta Chaves a ler e a dar a ler ao Miguel Martins, no Bar na Cave, à noitinha...]
13 de setembro de 2010
Às vezes, lá calha...
«A vida de um emigrado do teu género compõe-se de sequências descontínuas, difíceis de associar (…) há alguns anos, nos limos do teu vasto desterro, tinhas considerado o afastamento como o pior dos castigos : compensação mental, neurose caracterizada : processo de sublimação difícil e árduo : depois, o estranhamento, o desamor, a indiferença.»
Nem sempre a lápis (80)
Três e tal da manhã de um de Setembro; que bem que me sabe escrever esta data e como eu tenho descansado e trabalhado, decepcionando a ansiedade das expectativas para me tomarem de assalto. Calcinado pelo vazio do mês anterior, entreguei-me à dolência de me enquadrar com a casa e de me rever na esplanada, com um lápis atento e implacável, concluído um ano. O tempo mudou, a minha coluna que o diga; extintos os focos de incêndio dos derradeiros dias, até a respirar e a caminhar me sinto diferente e mais indiferente; a ociosidade é um dom natural. Enquanto a «casa de ninguém» aguarda a estocada mortal, a Nico descobriu um apartamento sobranceiro à Fortaleza, no passeio oposto, para passarmos uns dias antes de ir para a Índia, no fim do mês. Decorridos trinta e quatro anos, é curioso que me seja oferecida uma nova possibilidade de ver o quarto de Lua da baía, em toda a sua extensão; desta vez, à varanda de um prédio na esquina fronteiriça com as paredes ocas da antiga estação dos Correios, por onde Armação se começou a desfigurar. Vou ter a oportunidade de ver a Fortaleza e a ermida e as palmeiras e a curva da rua que desce para a praia, na totalidade do olhar; vistas a partir de um plano superior ao apartamento do Serol, acrescentado pelas exigências pedonais; às moscas, às gaivotas, aos cães. Vou andar com as sandálias compradas em Asilah, em vez das caneleiras feitas à medida em Estremoz e os sapatos de corda e de lona azul, escolhidos dentro de uma alcofa à porta de uma casa de utilidades para a praia; ligo o portátil, em vez de abrir um caderno sentado num canto convidativo; disparo a instamatic sem recorrer à loja em baixo, onde revelavam os cartuxos da 110; não olho para o crescimento da tua barriga, porque temos um filho com trinta e três anos.
À mão de ler (82)
«Eu estava com um humor totalmente radiante, sentia-me saudável e suficientemente corajoso para o que quer que fosse. Se ao menos tivesse uma vela, conseguiria acabar o meu artigo. Fui andando e baloiçando na mão a minha nova chave de casa, cantarolei e assobiei e dei voltas à cabeça sobre como arranjar uma vela. Mas não havia qualquer outra saída senão trazer para a rua os meus utensílios de escrita e sentar-me debaixo de um candeeiro. Abri o portão e subi para ir buscar os meus papéis.
Quando voltei a descer, deixei que o portão se fechasse por fora e fui colocar-me por debaixo da luz do candeeiro. Havia um silêncio total, apenas se ouviam os passos pesados e ruidosos de um polícia, mais abaixo, na transversal e o ladrar de um cão, ao longe, na direcção de St. Hanshaugen. Não havia nada que me perturbasse, puxei a gola da sobrecasaca para cima das orelhas e comecei a coordenar as ideias com todas as forças. Ajudar-me-ia grandemente se tivesse a sorte de conseguir terminar aquele artigo. Tinha chegado a uma parte bastante trabalhosa, em que queria tentar encontrar uma ligação totalmente ignorada para algo novo, depois uma preparação moderada e deslizante do final, uma longa resmunguice que, por fim, se intensificaria gradualmente para culminar num abrupto climax, chocante como um tiro ou como o estrondo de uma montanha a rachar-se.»
11 de setembro de 2010
Porque a Net fornece um novo dia
... e quase, Quasi um horror
•pág. 39 - «(...) afirma Enrique Vila-Matas, heterónimo de António Tabucchi (...)»;
Às vezes, lá calha...
Nem sempre a lápis (79)
«Era a hora da loucura e da festa no Petit Socco, quando estas duas amigas inseparáveis decidem aproveitar o fresco para passear de mão dada e mandar à merda todas as convenções.»
À mão de ler (81)
«Sentei-me na cama e ouvi a chave dar a volta, de novo. A cela iluminada tinha um aspecto simpático; sentia-me deveras afortunado ali, debaixo de um tecto, e escutava com prazer a chuva a cair lá fora. Eu não desejava mais do que uma cela acolhedora, como esta! A minha satisfação aumentou: sentado na cama, com o chapéu na mão e os olhos fixos na chama de gás junto da parede, comecei a pensar em todos os pormenores do meu primeiro encontro com a polícia. Aquela era a primeira vez e como tinha sido fácil enganá-los! O jornalista Tangen, hein! E também o Morgenbladet! Como tinha ido direito ao coração do homem com aquela do Morgenbladet! Não se fala mais nisso, hein? Tinha estado entretido no Stiftsgarden até às duas da madrugada, esquecido em casa das chaves do portão e uma carteira com alguns milhares de coroas! Conduz o senhor lá acima, à secção reservada...»
assente o rato na secção reservada]
9 de setembro de 2010
Porque a Net fornece um novo dia
... uns, chegam logo à tardinha;
outros, lêem na sexta-feira à noitinha no bar do Miguel.
Ora, perguntem lá ao de cima
À mão de ler (80)
«Voltei a contar os meus recursos: um meio canivete, um porta-chaves, mas nem um cêntimo. Subitamente, meti a mão na algibeira e puxei pelos papéis outra vez. O movimento foi completamente mecânico, um tique nervoso inconsciente. Procurei uma folha em branco e - sabe Deus de onde me viera esta ideia - fiz da folha um cartucho em cone, fechei-o com cautela, para que parecesse estar cheio e atirei-o para as pedras da calçada, bem longe donde me encontrava. O vento empurrou-o ainda para mais longe e lá ficou.
A fome começava agora a apertar. Sentado, olhava para o cartucho branco, que parecia inchado de moedas de prata brilhante, e entusiasmei-me ao acreditar que, de facto, continha algo. Em voz bastante alta, tratei de desafiar-me a adivinhar o montante - se acertasse no meu prognóstico, ficaria com a importância! Imaginei as pequenas e finas moedas de dez cêntimos no fundo e as coroas espessas e estriadas, por cima - um cartucho inteiro, cheiinho de dinheiro! Continuava sentado, a olhar para ele com os olhos arregalados e instiguei-me a mim próprio a ir roubá-lo.»
7 de setembro de 2010
Às vezes, lá calha...
«Os ciganos consideram, com razão, que só devemos dizer a verdade na nossa própria língua; na do inimigo deverá reinar sempre a mentira.»
[Mátria]
Nem sempre a lápis (78)
Agosto é, foi sempre, um mês massacrador, mas encerro-o tão bem como esta luz que tem vindo a instalar-se; esta serenidade que me apanha sempre desprevenido e ainda bem. Em oito meses, entreguei Dentes de Leite (Pisón); descobri Antonio Orejudo (Vantagens em Viajar de Comboio); um brinquinho de Skármeta (Pai Ausente), destinado a comemorar os seus setenta anos; Contos Reunidos, a monumental colectânea dos textos originais, trabalho de bibliógrafo recorrendo às «ediciones sin tapas» de Felisberto Hernández, referência da quase generalidade dos autores actuais mais avisados; entre eles, Piglia e Vila-Matas, naturalmente. Do primeiro, já se circula por A Cidade Ausente, do segundo, ainda não me refiz da necessidade de encaixar Dublinesca, mudo e calado; entrar nos sessenta anos, não tem nada a ver com o que se imaginava. Entretanto, passei o Verão com Coetzee e Manguel, compreendi porque Este País Não É Para Velhos, fui a Asilah fazer o que tinha a fazer e esta tarde, sem que nada o previsse, comecei a movimentar os livros nas estantes, dada a impossibilidade de me rever na esplanada. Há cerca de duas ou três semanas, um e-mail pôs-me em contacto com uma leitora – já vinda do Café Perec no CCB, há quase dois anos, sem que o soubesse – a quem entreguei até Jajouka, também para retribuir o favor de ter imprimido o primeiro tomo, o primeiro livro de actas do meu dia-a-dia. E sublinho «também», porque nas conversas que fomos tendo e quando nos conhecemos a meio da famosa entrevista, abortada, que a Lourdes Féria cismou fazer-me – fiquei adepto do Orpheu, no Príncipe Real –, mais tarde ao jantar e depois numa sessão no Catacumbas, ficou esclarecido que é desejável que sublinhe e anote e questione, até Jajouka, mas nunca um livro que lhe empreste; relação que disse ter com os dela. Acabei por passar mais um fim-de-semana sem ir até ao bar do Miguel Martins e à Ler Devagar, a seguir alguns dos conselhos dos meus provadores de leitura e, enquanto aguardo sinal para trepar As Costas das Sirtes encomendada na Pó dos Livros, fico literariamente embasbacado com Knut Hamsun, Fome, ruborizo com A Amante Holandesa, J. Rentes de Carvalho. Feito o balanço, sabe-me bem entrar em Setembro à espera do novo romance de Piglia, Blanco nocturno. Branco nocturno, expressão usada para designar o caçador furtivo que encandeia a vítima com um holofote.
À mão de ler (79)
«Instintivamente, voltei a pegar em papel e lápis, sentei-me sentei-me de modo totalmente mecânico e escrevi o ano 1848 em todos os cantos de página. Se ao menos um só pensamento fremente quisesse agora transportar-me e colocar-me as palavras na boca! Já me tinha acontecido antes; tinham-me realmente acontecido momentos desses, em que conseguia escrever sem esforço um longo parágrafo, que resultara abençoadamente bem.
Sentado num banco, escrevi "1848" vezes sem fim; escrevi o número na vertical, na horizontal, de todas as maneiras possíveis, esperando a aparição de alguma ideia aproveitável. Na minha cabeça rodopiava um enxame de pensamentos avulsos, a atmosfera do dia agonizante fazia-me sentir desalentado e melancólico. Chegara o Outono e já começara a envolver tudo na sua letargia. Moscas e outros bichinhos receberam o primeiro aviso, em cima das árvores e em baixo, no solo, ouviam-se os ruídos da luta pela vida, o rumor, o sussurro agitado do combate pela sobrevivência. Todos os seres espezinhados do mundo dos insectos se moviam uma derradeira vez, as suas cabeças amarelas emergiam do musgo, levantavam as patas, avançavam tacteando com as longas antenas e encolhiam-se de repente, rebolavam-se e viravam-se de papo para o ar. Todas as plantas receberam a sua marca, discretos cicios suaves dos primeiros frios. As palhas descoradas esticavam-se em direcção ao Sol e as folhas caídas revoluteavam pelo solo com um ruído áspero, como bichos-da-seda rastejando. Era o tempo de Outono, no meio do carnaval da morte.»
5 de setembro de 2010
Às vezes, lá calha...
«Será possível adivinhar, de olho guloso, muitas coisas nestas páginas. Isso me agrada muito, porque os armadores de escândalo poderão ocupar-se de mim […] sem que eu precise de me ocupar deles.»
Nem sempre a lápis (77)
Não preciso de abrir os meus dois últimos livros publicados para localizar duas falhas e aborrecer-me; são assuntos, são etapas de lombada arrumada. E se eles foram lidos e relidos, sobretudo A Cicatriz do Ar, onde um ridículo «espessas» – as paredes, por muito finas que sejam, ou são grossas ou são estreitas; embora o ambiente comportado possa ser espesso – conseguiu sobreviver anos e a mais leituras do que o número de exemplares; não duvido. Assim que o abri, sob o ponderado e irremediável formato de livro auto-editado, cortámos logo relações; consumira-se a paixão. Quanto aos Blues – teria de me levantar e folheá-lo para indexar a página –, apesar dos esforços tripartidos para não meter água, sei que ela brota sob a forma de um plural indevido, precisamente, no regresso ou na manifesta vontade de ir até às Quedas de Água; até à serra, onde acabei por não passar uma noite ao relento, deliciado com o colossal abismo que me separa do infinito. Apesar de estar em Mortágua, compreendi que a criança que se deitava na eira comunitária e nas mantas dos pastores que vigiavam o gado do tio, nas noites de Verão, tinha deixado de procurar os prados da terra do pai, entregue à sobrevivência especulativa do turismo de habitação; não tarda. Durante uma breve troca de sms, sem vir a propósito, apercebi-me que há quatro anos andava a escrever até Jajouka, entre o Monte Alto e Mortágua. Terminei-o em Setembro, o mesmo mês em que, dois anos depois, meti os Blues no saco, dados os primeiros acordes ainda no Algarve, onde já não regressei. Entretanto, tinham decorrido os mesmos quatro meses que levei a preparar a viagem que não cheguei a fazer ou para a continuar cada vez que lhe pego; entre paredes duplas, triviais.
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