30 de junho de 2011
Às vezes, lá calha...
«Um livro que não perdesse nunca de vista nem o lugar de onde eu estava a sair nem o lugar para onde, nem que só de mim para mim, onde quer que estiver, estarei sempre a voltar.»
[ceia diária]
Nem sempre a lápis (182)
Se exceptuar a leitura, não conheço nada mais reconfortante do que varejar o que escrevi. O que foi editado, colhido está; nada a fazer. É no reencontro como era, como estava, ocupava, há dois ou três anos, que saboreio o prazer delicado da poda. Eliminar, conduzir os rebentos que parasitam e deformam a escrita. Jardiná-la e abandoná-la no baldio do tempo; ainda e sempre o melhor aferidor. É bom escrever ao Sol; a tarde põe-se sobre a escrita.
Papiro do dia (93)
«Acordo das travessias que fiz pelas paisagens de Guimarães Rosa num hotel em que as instalações que ocupo, metade de um bangalô que com a sua outra metade, independente e com um número diferente na porta, constitui uma das para aí vinte ou trinta casinhas dispostas em semicírculo num vasto parque com tudo o que um hotel destes deve garantir de salutar, despojado e vigoroso conforto, e em tudo semelhante a centenas deles que há pela África turística e cinegética fora, inclusive um cercado com emas, que são parentes de avestruzes e há quem não dê pela diferença. Não fossem os buritizais que vejo de uma das janelas, numa vereda a que este espaço encosta, crer-me-ia em plena Namíbia ou na África do Sul, e vou ter dificuldade, desde que fumo o primeiro cigarro e pela manhã fora, em sacudir questões que eram as que trazia comigo quando cheguei ao Brasil. Estive na Cidade do Cabo pouco antes de ter rumado para aqui, e saí de lá com uma mão cheia de coisas novas a decifrar.
Coisas cá minhas, por um lado, Áfricas imaginárias, sempre, quer por quem se propõe falar em nome de África ou se assume como a própria voz dela, quer por quem resolve a vida a ocupar-se e a falar dela ou daquilo que na sua imaginação ela passa a ser, ou quer ou lhe convém que seja, e assim já chega e vale muito mais, até, nos mercados e nas arenas a que destina aquilo que produz. Não me sai da cabeça que os primeiros europeus que se expandiram em África, de norte para sul, a partir do rio Congo, admitiram a existência de um misterioso reino de pastores para lá da latitude de Benguela, enquanto os que mais tarde se expandiram de sul para norte, a partir da colónia flamenga do Cabo, conceberam igualmente a existência de um misterioso reino de pastores longilíneos e de cabelos escorridos muito para além dos assentamentos hotentotes que havia a norte do rio Orange. Acabou por ser nesse espaço, comum às duas suposições e onde aliás jamais existiu reino algum de pastores assim, que quase em exclusivo investi o que tenho andado a viver e a procurar saber de há quinze anos a esta parte.»
[Ruy Duarte de Carvalho, Desmedida crónicas do Brasil, BI. 033, Fevereiro 2008;
28 de junho de 2011
Às vezes, lá calha...
«Se pensasse bem, a minha vida podia ser descrita como uma sucessão de expectativas. Na realidade, fora sempre alguém que espera.»
Nem sempre a lápis (181)
Bastou tocar-lhes com os olhos para as escolher, uma a uma, pela pele sem casca de laranja. A empregada da frutaria aproveitou para informar «São do Algarve»; não as conhecesse eu, por metade do preço e pesadas ao sábado, dentro de um saco de plástico em segunda mão. O preço poupou-me a identificação dos figos; arrumei o avio com uma manga, para tão pouco pano.
Papiro do dia (92)
«E eis então que senão quando: salta da mata para dentro do quintal, com a sua perna só e saído da noite que há para além do muro, o Saci Pererê da lenda nacional. Vem dar encontro com Cendrars aqui, que andou na guerra e tem um braço só. Vem dizer-lhe que não ligue para esse jornalista que anda a chamar-lhe Cendrars Sans Bras, nem para as autoridades alfandegárias e a polícia de fronteiras que por duas vezes já, uma em Santos e a outra no Rio de Janeiro, lhe dificultaram a entrada por ele não ter senão um braço e querer ainda assim desembarcar no Brasil numa altura em que a propaganda do governo anda a martelar, pela imprensa, que o país precisa é de braços… E que deixe também pra lá quem proclama que nada embaraça uma imaginação como a sua, nem anacronismos e nem inverosimilhanças, para divertir a Europa com informações mirabolantes sobre o Brasil e até sobre países onde nunca esteve. As suas estórias, se ainda assim enternecem até os próprios brasileiros, é porque afinal têm muito dessa sua tão simpática espontaneidade, e um fundo sincero de inocência humana. Nem se ressinta do bom humor de alguns mestres, quando com ternura, como Manuel Bandeira, se interrogam sobre que deliciosas mentiras ele não inventaria a propósito do Aleijadinho e do santuário de Congonhas do Campo se finalmente viesse a publicar o livro que há tanto tempo promete escrever a esse respeito e que afinal não há meio de vir a lume. E nem se ofenda com aquele anónimo que num jornal de Belo Horizonte pergunta em que recanto do Brasil é ele proprietário desse fabuloso trecho de floresta que não lhe terá custado senão uns míseros 1500 francos e mede 294 quilómetros quadrados no mais belo lugar do mundo, com um lago no meio aonde, em dias muito especiais, soam os sinos de uma catedral submersa. Que retenha mas é, e se embeveça disso, o que diz quem diz que mesmo essas suas mais descabeladas imaginações partem sempre de uma base concreta mínima e que talento é isso, isso é que é génio, esse poder para descrever paisagens que nunca viu, para criar, para criar, insiste Pererê, para criar realidades.»
26 de junho de 2011
Às vezes, lá calha
«Detendo-se por um momento, ele afasta-se do ponto em que a sua mão, correndo sem freio, o levou mais longe do que queria.»
(David Malouf)
Nem sempre a lápis (180)
A vizinhança aborrece-me, incomoda-me a proximidade. Não admito que apedrejem o meu silêncio com considerações sobre «o que estava a dar» neste ou naquele canal; posso levar com ele, ligado. Por mais acolhedor que esteja o cenário – as flores, as crianças, os animais, o rodapé bronzeado (cruzadas as pernas ou não) –, levanto-me e procuro uma mesa prudentemente distante, sem comentários exteriores à indignação que me vai na alma. Agrada-me verificar, ao longe, que a atitude não foi notada.
Papiro do dia (91)
«Desde tenra idade que fazer herbários havia sido o seu refúgio seguro. Com a solidão de um filho único entre nove irmãos e irmãs, descobrira que o mundo das plantas lhe oferecia uma ordem que nunca encontraria entre os homens. Até a ideia de família lhe parecia mais comovente quando a aplicava a espécimes tão maravilhosamente diferentes à vista quanto a maçã e a rosa.
Era um viajante nocturno. Esgueirando-se no escuro perseguia flores de odores nocturnos nos bosques estivais, ou, com respiração suspensa e todo o seu corpo alerta e uma luz líquida que tinha as suas próprias cores, a vida de criaturas que saíam de casa, como ele, enquanto o mundo humano dormia. Era essa a alegria da coisa. Enquanto os olhos dos outros estavam fechados, ou somente abertos para o fantasioso mundo dos sonhos, olhar para uma parte da criação que era secreta, mas apenas porque vive numa zona do tempo que não é a dos homens.»
[David Malouf, Recordando a Babilónia; trad. Jorge Pereirinha Pires, Assírio & Alvim, 2009;
zona]
25 de junho de 2011
24 de junho de 2011
Voo rasante
Margarida Vale de Gato, Golgona Anghel, Miguel Cardoso e Nuno Moura
Livraria Sá da Costa, Chiado, 21h30
[consta que haverá branco frescolas, altos voos...]
Porque a Net fornece um novo dia
Amanhã, pelas 22H00, Cinema São Jorge (Sala 1)
Sérgio Godinho, JP Simões, João Peste, Rui Reininho,
Noiserv e Miguel Borges
Às vezes, lá calha...
«Ter aquela palavra na cabeça, de onde ela nunca poderia ser apagada, seria para ele um coisa de enlouquecer. Até agora…»
(David Malouf)
Nem sempre a lápis (179)
A enxurrada esvaziou a praia, lavou a esplanada. A marginal é uma rua da Baixa, com mais carros e alguns peões a sortear a passagem. Os veleiros não sulcam a distância guardada pelos cargueiros; coagulados no parapeito do olhar. A brisa não tem cheiro, o café é mau. O empregado, filho do que foi um especialista em olhar para nada, tem um tortulho tatuado na perna. Fui até ao Sargo, sem isco; apanhei cinco t, à linha.
Papiro do dia (90)
«Numa outra vez, junto ao riacho, olhou para cima, casualmente pensou ele, e viu um pássaro. Estava equilibrado sobre uma pedra redonda, a mergulhar o bico na água que corria, com o corpo cinzento e agachado tão indistinto e desinteressante como o de um pardal (mas aqui não havia pardais), e a cabeça cinzenta, com algumas penas encardidas.
Mas o que o seu sangue gelado viu foi o bico do pássaro a tirar longos fios prateados do meio da água, que era toda ela um emaranhado de fios, uns agrupados, outros a correr; e as botas dele não tinham peso, nem a mão dele que segurava o pedaço meio comido de pão, nem o seu coração, e foi preenchido pelo mais intenso e agradável prazer: no modo como o ar agitava as folhas sobre a sua cabeça e cada folha se ligava a um ramo, e todas rodopiavam apesar de se manterem presas; e nas camadas de penas que constituíam o cinzento da cabeça do pássaro; e em como seriam compridos os fios da água para correrem assim tão facilmente desde onde vinha até para onde iam, que nem se podia imaginar – misturando-se, separando-se, correndo à solta. E também dessa vez o prazer que sentiu tinha um lado perturbador.
As coisas de que começara a tomar conhecimento, por mais frescas e inocentes que fossem, estavam para além do que era comum, ou pelo menos ele assim pensava; e já que não encontrava forma de as comunicar, decerto que estavam para além das palavras.»
[David Malouf, Recordando a Babilónia; trad. Jorge Pereirinha Pires, Assírio & Alvim, 2009;
surpresa enviada pelo Jorge Ribau]
surpresa enviada pelo Jorge Ribau]
23 de junho de 2011
22 de junho de 2011
Às vezes, lá calha...
(David Malouf)
Nem sempre a lápis (178)
Devo ter passado pelas brasas, fitado por um rosto desconhecido. Ameaçador, a princípio; finalmente ridículo, acordei a sorrir. Não me foi dado estar em Porto Covo para ignorar manifestações de dever cívico. Gostava de ver as gralhas recolher à ilha em contraluz, adormecer com a lareira acesa, acordar com as portadas de madeira abertas; em Mortágua deve apetecer passear entre motores de rega e braçados de forragem. A partir de agora e até entrar Outubro, até a hora secar ao Sol, é sempre, sempre a descer.
Papiro do dia (89)
«Era costume de George Abbot sair ao fim da tarde com um livro, normalmente francês, já que ele gostava, mesmo aqui onde não tinha nenhuma oportunidade de a praticar, de se exercitar no domínio daquela língua. O pequeno volume no bolso dele, com a sua capa onde o título estava suspenso de uns anjinhos, representava uma fuga à própria natureza dele e às humilhações e mesquinhas insuficiências da sua existência de mestre-escola, mas o que era mais importante é que, ao fazê-lo usar os talentos devidos, lhe mantinha acesa a esperança num futuro melhor.
Tinha vários retiros favoritos. Ali, com o livro em cima do joelho e as botas sobre o pó, sentava-se – sempre atento às formigas – entre o odor apimentado e o monótono fulgor de uma tarde tropical; mas a sua cabeça estaria num lugar inteiramente diferente (chamemos-lhe Paris), onde as palavras com que a alma dele bailava, sensibilité, coeur, paradis, o aliviavam do seu peso de urso e das suas botas coloniais, e a toda a volta, o mato, quando a palavra paysage o acendia, assumia cores novas mas familiares, e depois abria-se em avenidas, ao fundo das quais, entre as folhas que caíam, refulgia um templo com colunatas, onde as cruéis necessidades que o assaltavam se desvaneciam logo que ali penetrava em companhia de uma heroína, exigente mas ao mesmo tempo subtilmente condescendente, com os mais delicados punhos, e um delicioso e angélico lábio superior de quem tudo sabe, cujo nome era Úrsula, ou Vitorina.»
[David Malouf, Recordando a Babilónia; trad. Jorge Pereirinha Pires, Assírio & Alvim, 2009]
20 de junho de 2011
Às vezes, lá calha...
«Porque se escreve a partir da incerteza e é isso o que nos permite avançar, o que nos diverte e, ao mesmo tempo, nos intriga.»
(Enrique Vila-Matas)
«É bom trabalhar nas Obras» (91)
«Quando pensei numa literatura de percepção, não pensei de modo algum numa literatura profética, que é uma coisa muito diferente e sem dúvida nada interessante. O que flui pelo romance de Gracq é um estranho rosário de iluminações de estirpe rimbaudeana, qualquer coisa como uma grande sabedoria de percepção do futuro, na linha de um Kafka, por exemplo. Como é sabido, um dos aspectos mais sedutores da literatura encontra-se no facto de, algumas vezes, poder ser como que um espelho que se adianta; em espelho que, como alguns relógios, tem a capacidade de se adiantar.
Kafka foi um bom exemplo disto, porque teve a percepção para onde iria evoluir a distância entre Estado e indivíduo, singularidade e colectividade, massa e ser cidadão. Kafka viu a perspectiva para lá da evolução. Isso explica que gostasse tanto de outro livro com vincada tónica perceptiva, Bouvard e Pécuchet, onde há um magnífico diagnóstico sobre como a estupidez avançará imparável no mundo ocidental. O livro de Gracq situa-se nessa corrente de escritores com espelhos que têm a capacidade de se adiantar. Parece conhecer o núcleo do nosso problema actual: a situação de absoluta impossibilidade, de impotência do indivíduo frente à máquina devastadora do poder, do sistema político.
Até ao século XIX, o grande político e o grande escritor podiam convergir numa similaridade solidária de linguagens. O romance do séc. XIX retratava o mundo com as mesmas categorias que presidiam o trabalho do político que construía o mundo. A literatura podia ser central, colocar-se no centro do porvir histórico. No século XX, essa solidariedade quebrou-se. O político e o escritor, a história e a poesia, começaram a falar duas linguagens diferentes e incompatíveis. Os seus mundos começaram a não coincidir um com o outro. Flaubert, primeiro e Kafka, depois, foram os mestres desta subtil, decisiva inversão. Robert Musil foi talvez o último deste brilhante elo, encerrando-o com a sua monumental obra aberta, O Homem Sem Qualidades, onde apresentava um novo modo de narrar que se constituía num permanente ensaio sobre a vida. A sua obra encerrou todo um ciclo da narrativa europeia, e para alguns foi o último dos nossos romancistas, pois terminada a Segunda Guerra Mundial, já não ficou nada de narrável no continente: passar-se, já se tinha passado tudo, e precisamente porque já se tinha passado tudo, já não ficou nada que se passasse e passámos a viver no nada.»
[Enrique Vila-Matas, Perder Teorias; traduzido para a Teodolito.]
Papiro do dia (88)
«Ele sabia o que era escrever, mas nunca aprendera aquele truque. Quando pegara nas folhas e as voltara de uma e de outra maneira, e sentira o cheiro peculiar que elas exalavam, tinha toda a sua vida na garganta – os choros, e também os risos, alguns – e ficara repleto de uma imensa gratidão. Tinha-lhes mostrado quem ele era. Era conhecido. Caso ficasse a sós com as folhas, para matutar nelas e as cheirar, tudo aquilo que ele era, Gemmy, poderia regressar a ele, e começou então a urdir, enquanto pensava na sua vida perdida de vista lá no fundo do bolso do padre, como havia de recuperá-la.
Não o surpreendeu – era essa a natureza da magia – que tudo o que lhe sucedera, toda a sua boa e má sorte, todos aqueles suores e penas, e distâncias percorridas e ossos recolhidos e noites de gélido orvalho, e sonhos e sonhos – tudo isso, que durante aquela longa tarde ele vislumbrara e reconhecera, vislumbrara e evitara, e quisera contar e não conseguira, se reduzisse agora ao que um homem podia ter na mão e enfiar num bolso; algumas folhas nas quais, se ele ao menos conseguisse identificar onde estavam por entre os rabiscos, poderia encontrar Willett e o seu hirsuto cabelo ruivo, e os ratos, e o velho Crouch, já que pensava nisso, e a sua irmã sedosa – teria falado disso? De Mosey e do Irlandês não. Não os queria no meio daquilo. A eles, não.
Estreitou-se nos seus próprios braços. Do que se recordou foi do cheiro forte, do cheiro a terra daquela coisa preta que ele farejara quando levara os papéis ao nariz.»
[David Malouf, Recordando a Babilónia; trad. Jorge Pereirinha Pires, Assírio & Alvim, 2009;
coisa farejada]
coisa farejada]
19 de junho de 2011
18 de junho de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
«As fotografias que faço são silêncio. São o espaço que sobra entre as palavras. São as paragens obrigatórias que fazemos enquanto lemos um texto. A realidade não é feita de uma única palavra contínua.»
Às vezes, lá calha...
«Atento a tal mundo, e a si mesmo, enfiou na boca tanta da gordura e da carne dele quanta conseguiu, e também os nomes dele, o seu sopro.»
Nem sempre a lápis (177)
O Ajudante não é indiferente ao cuidado de vir até ao jardim, ao fim da tarde. Hoje, sentei-me à mesa de uma tília para anotar este momento aprazível; composto, em linguagem poética, por verdes delicados e resplandecentes, trémulos pela brisa oportuna para quem saiu de casa com uma camisa (na circunstância) de pescador, sem oportunidade de fazer-se ao mar. Devo procurar rotas mais próximas e acessíveis; mudar de mesa com a paciente frequência das necessidades. E ocorre-me, naturalmente; fui eu que escrevi O Livro do Fim?
Papiro do dia (87)
«Querido pai, envio-te uma pequena prenda de Ano Novo. Foi o meu actual patrão quem me ofereceu estes charutos pelo Natal. Irás gostar de os fumar, são bons charutos, dois deles eu já provei, como podes ver, já que faltam dois. Se entre os meus pensamentos saltitantes de hoje tivesse de comparar estas duas peças em falta com duas faltas que mancham as minhas qualidades, ocorrer-me-ia logo, em primeiro lugar, que nunca te escrevo, em segundo lugar, que sou tão pobre que nunca posso enviar-te dinheiro, dois defeitos que me fariam chorar se eu me permitisse chorar. Como estás tu? Estou convencido de que sou um mau filho, mas estou também absolutamente certo de que seria um bom filho se houvesse algum sentido em ver cartas não contendo nada que possa alegrar. A vida, que julgamos ser nosso dever enfrentar honradamente, ainda não me permitiu agradar-te. Adeus, papá querido. Que a tua saúde se mantenha e que a comida te saiba sempre bem e que comeces bem o novo ano. Eu também vou tentar.»
17 de junho de 2011
Perder teorias
«A “intertextualidade” (escrita assim, entre aspas).
As ligações com a grande poesia.
A escrita vista como um relógio que avança.
A vitória do estilo sobre a trama.
A consciência de uma paisagem moral nociva.»
[Enrique Vila-Matas, em breve na Teodolito;
A Costa das Sirtes]
As ligações com a grande poesia.
A escrita vista como um relógio que avança.
A vitória do estilo sobre a trama.
A consciência de uma paisagem moral nociva.»
[Enrique Vila-Matas, em breve na Teodolito;
A Costa das Sirtes]
16 de junho de 2011
Nem sempre a lápis (176)
Deito-me e suspiro, menos um. Ocupa-me a subtracção, não a cotação final de mais um dia. Não se pode ser franco com os médicos. «Então, de que se queixa?». Fui honesto e respondi: De estar vivo; ele sorriu, complacente. Só quis confirmar que também não é na saúde que está a cura; saí e paguei.
[consulta]
Papiro do dia (86)
«As quatro estações têm todas o seus cheiros e cores particulares. Quando vemos a Primavera, julgamos nunca ter visto nada assim. A exuberância do Verão é sempre nova e mágica em cada novo ano. Só este ano vemos bem pela primeira vez o Outono. E quando chega o Inverno é um Inverno novo que chega, muito, muito diferente do Inverno do ano passado ou de três anos atrás. Sim, também os anos têm as suas melodias próprias e os seus próprios cheiros. Ter passado o ano aqui ou ali quer dizer ter vivido e visto esse ano. Os lugares e os anos estão estritamente unidos, e o que dizer da ligação entre os acontecimentos e os anos? As experiências podem dar novas cores a uma década inteira, quanto mais a um breve ano. Um breve ano? Joseph não está nada contente com esta expressão. Ainda há pouco estava em frente à vivenda e, perdido nos seus pensamentos, dizia para si mesmo: “Um ano assim, tão longo e tão cheio que é.»
[Robert Walser, O Ajudante; trad. Isabel Castro Silva, Relógio d’Água, 2006;
de alguém]
15 de junho de 2011
14 de junho de 2011
Às vezes, lá calha...
«Não tenhamos ilusões: escrevemos sempre depois de outros. No meu caso, a essa operação de ideias e frases de outros que adquirem outro sentido ao serem levemente retocadas, deve acrescentar-se uma operação paralela quase idêntica: a invasão, nos meus textos, de citações literárias totalmente inventadas, que se misturam com as verdadeiras. Isso complica ainda mais o procedimento, mas também é verdade que o alegra.»
(Enrique Vila-Matas)
«É bom trabalhar nas Obras» (90)
«Ao cair da tarde, sem notícias da Villa Fondebrider e cansado de televisão e da minha escrita automática, decidi sair para dar um passeio e ver como era o centro da cidade. Pôr definitivamente em marcha uma expedição ao exterior, uma caminhada que projectei breve, porque estava a agradar-me cada vez mais a sensação de me encontrar em situação de espera no interior do meu próprio quarto de hotel. E não só, tinha começado a ver-me a mim mesmo dentro de um imaginário conto curto que se intitulava La espera. Era um conto que assentavam-lhe melhor os interiores. E, enfim, comecei a ter a impressão de que tudo o que me sucedia fazia parte desse conto. E não vou esconder que esta era, no fundo, uma forma de combater a solidão. O caso é que, quando saí para as ruas de Lyon ao entardecer, fi-lo já convertido no protagonista do meu conto.
Agradava-me o nome por que era conhecida a zona de Lyon, onde me encontrava: presq’île (literalmente: a quase ilha), uma península no meio dos dois caudalosos rios, o Ródano e o Saône, que passam pelo centro da cidade. Agradava-me o nome e, além disso, evocava-me o título daquela narrativa curta de Gracq em que tinha estado a pensar não havia muito.
Saí para passear pela bela presq’île ao entardecer e fui caminhando, com passos lentos, quase tímidos, seguindo o curso de um dos seus rios até chegar a uma grande e bonita praça que tinha todo o aspecto de ser a mais importante da cidade. De repente, tomei consciência – se quisermos ridícula, porque deveria ter-me apercebido há muitos anos – da grande quantidade de rostos que há no mundo. De repente, senti-me desnorteado com a quantidade de caras de desconhecidos com que me ia cruzando na rua. E durante uns minutos a minha timidez natural atingiu uns píncaros quase impensáveis. Comecei a sentir a necessidade, para não me assustar mais, de que cada uma daquelas caras me recordasse alguém conhecido, pois a simples ideia de que todos os transeuntes fossem uns completos estranhos, provocava-me um certo receio ou pânico, como se estivesse num aldeamento zulu no meio de África.
A seguir perguntei-me – já mais calmo – quantos daqueles rostos daquela praça de Lyon estavam naquele momento à espera de algo. Aquela praça de Lyon era, na realidade, uma grande sala de espera? Recordei uma nota de Kafka: «Há perguntas que jamais conseguiremos deixar para trás se não estivermos libertos delas por natureza.» Não sabia muito bem o que Kafka tinha querido dizer com isto, mas serviu para me libertar da minha pergunta. E para me libertar de tudo. Era uma frase extraordinária, que ajudava. Talvez fosse, inclusive, a demonstração de que as frases que não entendemos podem ajudar-nos muito mais do que as que entendemos perfeitamente.»
Papiro do dia (85)
«Viviam-se então tempos extraordinários num mundo extraordinário. Uma ideia a um tempo misteriosa e familiar, a que chamavam “socialismo”, lançara-se como uma frondosa planta trepadeira para dentro das cabeças e em torno do corpo de todos, mesmo dos mais velhos e experientes, de tal modo que tudo o que era poeta e escritor, tudo o que era novo e precipitado a agir e decidir se ocupava desta ideia. Os jornais desta tendência e persuasão brotavam da obscuridade dos espíritos empreendedores como flores cor de fogo e de perfume arrebatador para grande surpresa e gáudio da esfera pública. Os trabalhadores e os seus interesses causavam mais alarido do que propriamente uma preocupação séria. Eram organizadas várias manifestações, na linha da frente marchavam também as mulheres, brandindo alto no ar bandeiras cor de sangue ou negras. Quem estava descontente com a ordem e disposição do mundo juntava-se agora com esperança e satisfação ao apaixonado movimento intelectual e sentimental, e os resultados do espírito de aventura de uma certa espécie de gente que gritava, fazia barulho e tagarelava, por um lado exaltando com fanfarronice o movimento, por outro lado rebaixando-o a trivialidades quotidianas, eram notados pelos inimigos desta “ideia” com um sorriso prazenteiro de escárnio. Esta ideia, diziam então os espíritos jovens e verdes, ligava e unia o mundo inteiro, a Europa e os outros continentes, numa comunidade alegre dos homens, mas só quem trabalhava tinha direito, etc.
Josep e Klara também haviam sido apanhados por aquele fogo talvez nobre e belo, e na opinião dos dois não havia água nem calúnia alguma que o pudessem extinguir, antes se estenderia como um céu rosado sobre a esfera da Terra. Ambos amavam, como então era moda, a “humanidade”.»
13 de junho de 2011
Expediente em dia
1 - Existe um livro que lerias e relerias várias vezes?
Perdi-lhes a conta. Daí ter tantos títulos repetidos; emocionamo-nos muito com o reencontro.
2 - Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?
Que me lembre… Não devia ser fundamental, para mim; também não leio para.
3 - Se escolhesses um livro para ler para o resto da tua vida, qual seria ele?
Ando a escrevê-lo; aguardo, com crescente expectativa, a edição póstuma.
4 - Que livro gostarias de ter lido mas que, por algum motivo, nunca leste?
Ando sempre a lê-los. Por mais que nos relacionemos com eles, nunca respondem em conjunto quando os chamamos.
5- Que livro leste cuja 'cena final' jamais conseguiste esquecer?
Se não consegui esquecer é porque voltei ao princípio; leitura de rabo na boca, aprecio muito.
6- Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?
Comecei a ler (aos 4, 5 anos?) no Jardim-Escola João de Deus, A Cartilha Maternal; ainda não acabei. Tive a sorte (sou de Mortágua) de assistir à chegada das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian; contaminação cuidada e assegurada.
7. Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Porquê?
Se fosse só ler… Não foram assim tão poucos, com a agravante de traduzi-los até ao fim.
8. Indica alguns dos teus livros preferidos.
Na ponta da língua: Henry Miller (sem a sex-shop da adolescência), Cossery (todo: lido, relido, treslido), o mesmo para John Berger, Mohamed Choukri, Sebald, Walser, Piglia, David Malouf, Cormac, Salinger, Saint-John Perse, Imre Kertész, Vila-Matas (sobretudo, a partir de Bartleby & C.ª), Llansol, Almeida Faria, Carlos de Oliveira, Luiza Neto Jorge.
Livros: O Delfim, Húmus (Raúl Brandão e montagem de Herberto Helder), O Ano da Morte de Ricardo Reis, Paisagens Originais (Olivier Rolin), O Último Leitor (Piglia e David Toscana), O Livro do Desassossego, Aprender a rezar na Era da Técnica (Gonçalo, devagar, a leitura como prece), Bonsai (Alejandro Zambra), O Caderno do Algoz (Sandro W. Junqueiro) e, naturalmente, Herberto o Livro; Disse-me Um Adivinho.
9. Que livro estás a ler neste momento?
Acabei Perder Teorias, o anexo que Vila-Matas acrescentou a Dublinesca. Concluída essa leitura copiada, «Nem sempre começo [um livro] na primeira página e o leio de seguida até ao fim. Leio apenas uma cena, ou algo acerca de uma personagem, do mesmo modo que se encontra um amigo e se fala com ele durante uns minutos» (William Faulkner).
10. Indica dez amigos para o Meme Literário:
Em vez de indicar, peço-lhes desculpa por estar em falta; por ainda não ter respondido e se esqueci alguém.
[Obrigado pelo safanão, Leoparda]
[Obrigado pelo safanão, Leoparda]
12 de junho de 2011
«É bom trabalhar nas Obras» (89)
«Chegámos, por fim, à porta do hotel e parecia que ia, afortunadamente, perdê-lo de vista quando conseguiu martirizar-me empregando uma infinidade de tempo a preencher um talão justificativo da viagem e a seguir pedir-me uma assinatura num papel e uma assinatura noutro. Era como se não estivesse nada seguro de que Villa Fondebrider lhe fosse pagar, e na realidade era com se não estivesse seguro de nada, nem sequer de ser um taxista em Lyon.
Quando parecia que a infinita história do talão e das assinaturas já tinha terminado e que, com sorte, não me ia dar nem um seco "adeus" de despedida, o taxista disse-me, ou melhor dizendo, perguntou-me num fio de voz, de novo supostamente ingénuo, inocente:
- Que sentido tinha tudo aquilo que o senhor me disse há pouco? Refiro-me àquilo da invenção essencial dos homens e outras frases imponentes…
Estávamos ali os dois de pé, junto à porta do Hôtel des Artistes. Ao longo dos primeiros segundos, senti-me incapaz de dar o menor crédito ao que acabava de ouvir. Depois, reagi.
- Com efeito, nas minhas palavras – disse-lhe, procurando não perder a calma – falou uma voz que lhe disse que a literatura é uma invenção essencial da humanidade. Essa mesma voz disse-lhe também que nada do que lhe dizia fazia sentido, mas agora faça o favor de prestar bem atenção ao que lhe vou dizer: nessa mesma voz havia, pelo menos um eco desse sentido que a voz negava.
- O senhor é complicado – disse, finalmente.
E a seguir recuou dois passos, como que aturdido. Meteu-se no carro, pô-lo a trabalhar e, esticando a cabeça pela janela, corroborou a sua apreciação.
- Muito complicado, o senhor. Se fosse a si, procurava ser taxista. Vá por mim, é-se muito mais feliz sabendo menos. Ou não sabendo nada.
Quem não sabia nada era eu. Nada, por exemplo, do que me esperava naquele hotel.»
Papiro do dia (84)
«Quis agora mesmo dar rédea solta a pensamentos de ódio, mas proíbo-me de o fazer. Depois quis ler mas não consegui, o livro não me prende, então pu-lo de lado, porque não consigo ler se a leitura não me entusiasmar. Por isso estou agora sentado a esta mesa e ocupo-me da minha pessoa, até porque não tenho no mundo ninguém que anseie por receber notícias minhas. Há já quanto tempo não escrevo uma carta calorosa? Aquela carta a Frau Weib fez-me ver claramente como eu fui sacudido e empurrado para fora de um círculo de pessoas próximas e preocupadas, como me faltam pessoas que por razões naturais tenham o justo direito de me exigir notícias sobre o que faço e como estou. Aquela carta foi escrita com um sentimento pensado e imaginado, é uma carta verdadeira mas ao mesmo tempo é uma invenção, criada por um espírito muito assustado por não ter nenhumas relações simples nem próximas. Agora já me sinto mais calmo? Sim. E é ao silêncio do meio-dia que digo estas palavras. Em meu redor reina um sossego domingueiro, que pena não ter ninguém importante a quem o dizer, daria um bom começo para uma carta. Mas agora quero dizer algumas coisas sobre mim.»
[Robert Walser, O Ajudante; trad. Isabel Castro Silva, Relógio d’Água 2006]
11 de junho de 2011
10 de junho de 2011
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