31 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Não compreender o mundo, unicamente porque é incompreensível: diletantismo. Não compreendemos o mundo, porque não é essa a nossa tarefa nesta terra.»

Nem sempre a lápis (171)

Agradeci e desliguei o telefone. Tenho uns ténis Sanjo pretos à minha espera na Casa Portuguesa; «desde sempre», mas com certeza. Esquecidas as velhas sandálias com a pressa, sempre que perguntava ao portador de uns ténis com mais estrelas que o firmamento, onde os tinha comprado, parecia que pedia a Lua, que aspirava ao estrelato. No eBay, trazidos de fora por um amigo, comprados em segunda utilização por candidatos a pé de atleta. A Net é, pode ser, muito promíscua; sapatos de defunto. Enfim, nada que satisfizesse a simples necessidade de enfiar os pés dentro de um produto nacional de longa data e mais confortável memória; planante. Há tempos, vi uns Sanjo (femininos) num blogue de que sou assíduo, e pensei tratar-se de evocação de produto extinto. Lembrei-me de procurar no Google e fui recebido com um melodioso We’re back!, ora ainda bem, à medida que percorria as colecções e as novidades. Revi o clássico azul navy e o branco colegial da minha juventude; mas seria na K100 – LH que encontraria na referência líder 01, os ténis que procurava pelo preço aceitável de 49,50 € e votos de mais longas e económicas caminhadas. Dei as referências para a lojista fazer a reserva, adiantando que ia apanhar o autocarro ou ficaria para amanhã. Levantei-me com irreconhecível dinamismo da letargia em que me ausento e comecei a arrumar os bolsos. Ao abrir o moleskine para verificar as viagens pré-compradas, só tenho uma ida e todo o prazer da deslocação ficava comprometido. Bem sei que podia comprá-las no terminal do Marquês e apanhar o metro para a Baixa / Chiado, não fosse a proximidade com a Feira do Livro; ir ao quiosque ao fundo do jardim, aqui em frente. Mas não era o mesmo. São quase quatro horas e ainda não fiz uma chávena de café para depois do sumo de laranja e tortilha de brócolos com salmão; marca branca e cor corrente. Passei a mão pelo queixo e preciso de aparar a barba. Ando muito descuidado; ainda não procurei um electricista para pôr o carro a trabalhar, apenas por não saber onde ir. Reservadas as botas pretas Sanjo, preciso de tempo para ir buscá-las, comprar as viagens a seguir ao pequeno-almoço, encaminhar-me para a paragem mais próxima e sair nas Amoreiras. Percorrida a memória até ao Chiado, encaminho-me para a Casa Portuguesa calçado com uns Sebago, à maneira. É minha intenção entregá-los ao espírito, por certo, solidário do estabelecimento, deixá-los à porta para que sejam úteis a alguém; estar em Tânger. Calço os Sanjo para continuar a descalçar-me.

Papiro do dia (78)

«Vejo, vivo a pavorosa degradação deste país, o seu naufrágio suicida na paranóia. Todos os dias me afastam dele os campeões nacionais do ódio e as minhas próprias recordações. Como cresce a minha indiferença em relação a ele! Como procuro, a pouco e pouco, separar-me dele! A língua – sim, a única coisa que a ele me liga. Que singular. Esta língua estranha é a minha língua materna. Língua materna, na qual compreendo os assassinos. Agora, dizem-me repetidamente que “mudei”. Para melhor? Para pior? Tenho a impressão de que é para melhor, e também que me recebem mal. Há dias, V. repreendeu-me: “eu perdera a minha profundidade”, falo de direitos de autor e de questões materiais. Mas como? Dever-se-á ao estatuto de prisioneiro e ao infantilismo da ditadura a minha “profundidade”? Terei vivido quarenta anos contra a minha própria natureza e, no fundo, contra a natureza? Não é de excluir… Até eu dou conta da minha mudança, embora, é verdade, de outra maneira. Agora, distingo-me mais claramente dos que me rodeiam, dou ares de quem se eleva acima deles, quando só me agarro, imóvel, não me abismo como eles nas águas profundas da depressão, como até aqui, e isso é visto como um desafio, mesmo como falta de solidariedade, uma traição. No horizonte, a chama vacilante e mal perceptível de uma vela iluminou-se para mim, e consideram-na já como anúncio de luto, o limiar da minha decrepitude. É um momento estranho, uma paragem estranha, antes que os caminhos se bifurquem, e, se eu não receasse a fadiga, podia, aqui, estabelecer algumas correlações místicas e enfaixá-las em ramo, como flores multicolores apanhadas à beira da estrada. Antes de mais, uma coincidência temporal: o Gályanapló [Diário da Galera ou das Galés, 1992] foi redigido e apareceu no momento em que a mudança de um modo de ser particular (a minha) foi de encontro à mudança de um modo de existência mais geral (a do país). Sei que esta coincidência não pode jogar a meu favor: enquanto, na grande galeria do mundo, cai o véu a aparece uma paisagem devastada, ergue-se, num canto pequeníssimo, saído dos escombros (ainda que frágil, talvez, e longe de ser perfeito), um edifício; uma tal criatividade – sei bem, também sinto – não tem desculpa. Eu podia continuar, mas uma espécie de incerteza vacila em mim, uma espécie de nostalgia irreprimível. Pois eu também receava pela minha solidão, pelas horas íntimas de leitura e de mortificação, pela força haurida no isolamento, por esta resistência que é, há muito, a minha maneira de ser, isto é, de viver constantemente face a forças de destruição, digamos: vivia, enfrentando-as, qual flecha retesa… Isso era uma grande aventura, uma alegria que eu vivia, resolutamente, sem alegria, e, agora, é assim que a vejo, como um velho vê a juventude.»

[Imre Kertész, Um Outro – Crónica de uma metamorfose; trad. Ernesto Rodrigues, Editorial Presença, Junho 2009]

29 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...


«Estes homens dedicaram a vida a um mau uso da linguagem. Mas também, o que já é mais grave, promoveram esse mau uso da linguagem à categoria de consenso.»

Nem sempre a lápis (170)

Fiquei sem relógio desde que mudei de telemóvel; bastava abri-lo. Além dos números e letras minúsculas, uso óculos, este novo electrodoméstico, este irritante acessório, é menos prestável; pesem todas as suas obscuras potencialidades. Passei uma ronda pelos relógios que (também) fui coleccionando e ofereceram ao longo do tempo. Decidi-me por um Swatch primário com a bracelete a desfazer-se, aguarda reposição de stock; um Timex tank, semelhante ao Hamilton comprometedor e não me apetece usar; uma réplica Gianni Delano comprada num quiosque e se recusou a trabalhar, a pegar. Saí da relojoaria com ela no pulso para aliviar os bolsos; entretanto, caiu uma lente e perdi o parafuso dos óculos de ver ao perto. A reparação custou um aperto de bacalhau. Sentei-me ao Sol a secar os olhos e sobrepus os ponteiros nas doze horas; acertei o assunto.

Papiro do dia (77)

«Chove. À mesa do restaurante, um homem explica qualquer coisa a uma mulher, qualquer coisa de inexplicável. Ele gostaria de abandonar os ensaios de felicidade que encalham regularmente. Sente-se cansado de ir atrás do prazer pelas falsas estradas das promessas, que não conduzem a lado nenhum. Não é outra mulher, ora essa, nem pensar. A liberdade. Regressar à superfície, sair do turbilhão confuso das relações que se arrastam há anos. Está farto de reconhecer em cada uma das relações as suas próprias insuficiências. Vislumbra uma vida breve, intensa, criativa. A fidelidade, os deveres cumpridos a contragosto alimentam o fogo de uma depressão permanente. Este fogo é frio como o gelo, mas animado por uma grande satisfação. “Was wussten sie, wer er war” – ninguém sabe quem ele é, e deseja que o deixem sozinho com este segredo. O rosto da mulher, que o ouve. Agora, ela deveria levantar-se, endireitar-se orgulhosa, afastar-se com um soluço a custo reprimido. Não se levanta. Então, bem, é ele que se ergue de um salto, terna e furtivamente beija os olhos da mulher, e sai do café. Não, não sai. Acena, paga. Levantam-se ao mesmo tempo. Através do vidro fustigado pela chuva, ver como saem para a rua. O homem abre o guarda-chuva. Dão alguns passos assim, lado a lado; depois, a mulher toma o braço do homem, e, após algum desacerto, corrigem o passo. Vem da porta uma leve corrente de ar que varre a sala, como o sarcasmo fugaz da inutilidade.»

[Imre Kertész, Um Outro – Crónica de uma metamorfose; trad. Ernesto Rodrigues, Editorial Presença, Junho 2009;

28 de maio de 2011

27 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


«Uma mulher contou que, muitas vezes, enquanto ele lhe batia, ela pedia “Amor, por favor, não me batas na cabeça”.

Às vezes, lá calha...


«Levava incorporada em si a televisão. Qualquer coisa que fizesse ou lhe pudesse acontecer, nunca seria ridícula, porque era um episódio.»

Nem sempre a lápis (169)

Falei cedo e não me surpreende ter perdido a noção do tempo. Preparei-me para dar uma volta no carro, mas recusou-se a pegar e não estou com paciência para dialogar com mecânicos e largar dez euros para encostarem uma bateria. Quando e se for preciso, trato disso; foi quase um alívio e dez euros, sempre são uma dezena de páginas. Como o vento limpou o céu até mostrar um quarto de lua em avançado estado de crescimento, pus Lisboa de parte e pensei ir até ao Sargo, na Parede, apanhar Sol. A esplanada que frequento fica na sombra; esparramar-me na da frente, lembra piscina, faz lembrar asilo; O Último Ano em Marienbad, drunfado. Deixemos a solar atitude para o Café no Chiado, A Brasileira, o Camões, o Príncipe Real. Enfiei a lapiseira no bolso e prescindi de um livro e da instamatic; cheirou-me a sol de pouca dura. Na realidade, questiono se preciso mesmo de um carro desde que me estampei há um ano e tal e vivo em Carnaxide, com autocarro à mão. Gosto dele, nunca pensei sentar-me ao volante de um BMW, mesmo com treze anos nem inspirado em Bukowski. Não o escolhi; tornou-se um compromisso e uma segurança tão insegura como os sete mil quilómetros esgalhados em seis meses, para caucionar o argumento de ter um carro para uma necessidade, uma urgência fora de horas. Fora de horas não existe; só relógios parados, a ilusão do tempo especada nas paredes. Ontem, acabei mais uma revisão de até Jajouka, depois de o ter mandado ao Carlos Veiga Ferreira. Agora só precisa de ser, tem de ser revisto pelo Miguel Rodrigues; gostei de trabalhar com ele na Teorema e continuaremos na Teodolito. Se levar nega, não faz mal. Não sei como, mas volto a editar-me (tomei-lhe o gosto); a última leitura confirma ter passado tempo demais para o manter adiado, tenho de me livrar dele. É urgente; passa-se qualquer coisa. Encarei o cartão quando voltei para casa, depois de ter telefonado ao paginador; no fundo, era o que tive sempre na manga para essa e futura eventualidade. Sabendo à partida que é para fazer devagar, é curioso como o tom de voz com que somos reconhecidos e o preço para amigos, pode ser tão estimulante e transmitir tanta segurança. É bom partir; mudar de pele, sem fazer praia.

Papiro do dia (76)

«A solidão era a minha experiência-chave, a minha palavra-chave. À volta da solidão pode fazer-se um vazio completo, um nada. Isso é de certa forma a chave da chave. O solitário vê-se num espaço onde, milagre dos milagres, não há nada… Mas engano-me, apesar de não errar completamente… Porque não é o próprio solitário o que se vê nesse vazio, pelo contrário, ele chega a julgar-se num espaço hiperpovoado e barroco… esforça-se em prová-lo mais e mais; dir-se-ia (ele diria) que não faz outra coisa… Mas é outro, e o próprio também, o que vê dentro do nada. Isto pode explicar-se melhor com uma fábula. O solitário julga encher o nada com as suas actividades imaginárias, que são tão reais, por exemplo os livros, a televisão… E no entanto… Tomemos os livros: se um selvagem, analfabeto, é claro, um homem saído da selva, me visse com um livro nas mãos, ignorando como ignora a operação da leitura, julgar-me-ia a manipular um pedaço de qualquer coisa inanimada e falha de sentido; ver-me-ia passar horas com o olhar fixo em algo equivalente a uma pedra ou a um pedaço de madeira. Ou então a televisão (o exemplo é mais correcto, porque ler, não leio nunca; em vão se procura um livro na minha casa): o selvagem em questão ver-me-ia a olhar um quadrado de vidro no qual explode sempre um pó de pontos de cor. Neste caso a sua impressão seria a de estar a contemplar um alucinado, um drogado, quase um louco. Nem sequer poderia fazer-se a ideia daquilo que entretanto penso. Perceberia em toda a sua postura a dimensão do vazio cristalino… Mas serei um selvagem? Não entenderei os idiomas “livro” e “televisão”, que abrem grandes perspectivas à minha solidão? Justamente, o facto de serem “idiomas” é o que me faz duvidar da sua realidade. Talvez sejam apenas uma ilusão, talvez o selvagem tivesse razão… E posso deixar cair a dúvida, porque realmente são uma ilusão, e estou de facto numa câmara vazia, sem nada… E ele também! A armadilha em que o faço cair é obrigá-lo a olhar para mim durante o tempo em que estou embevecido frente ao ecrã… contagiou-o o meu embevecimento… É quase uma vingança contra a vida… Deve ser por isso que vejo televisão.»

[César Aira, Como Me Tornei Monja; trad. José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, Novembro 2005;

26 de maio de 2011


25 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Ninguém pode viver sem uma história, mas geralmente costuma haver uma história que torna completamente impossível continuar a viver.»

Nem sempre a lápis (168)

Há duas semanas que não saio de casa. Se exceptuar o périplo, esplanada, supermercado, tabacaria, nem sempre completo, tenho tardes em que me desculpo com a instabilidade do tempo para não ir beber o chá da tarde até arrumarem a última mesa; a minha. De dois ou de três em três dias dou uma volta no carro para a bateria não descarregar e mudá-lo de lugar; como os velhos, cativo. Não há sms que me demova; e-mail que me convença. Ando ocupado com os meus afazeres, vagamente hikikomori, o equilíbrio da casa, outros livros à mão, a revisão definitiva do que não gostaria de deixar pendurado. «A loucura é viver no vazio dos outros, numa ordem que ninguém partilha» (Rosa Montero). Ontem, retomei o cartão sobre a mesa, soprado pelo espírito paint is to love again (Henry Miller). Fotografei uma fase do trabalho, antes de dar mais cor. Meti-me por caminhos ínvios, sobra-me memória para a minha falta de imaginação; reconsiderei durante a pausa entre o fim de A Louca da Casa e o recomeço de Última Saída Para Brooklyn (Hubert Selby Jr.). Trouxe-o acompanhado por O Viajante Walter Benjamin (Ricardo Cano Gaviria). É exemplar único, troquei (e bem) os que tinha direito como tradutor por A Casa da Morte Certa, aconselhado por Miller; dou-me bem com Cossery. Amanhã, vou a Lisboa e à Feira. Não sei o que me estimulou a ir buscar Antologia de Henri Michaux; o cartão e eu temo-nos evitado, dentro do possível.

Papiro do dia (75)

«Cláudia abandonou-me há um ano, presa de uma loucura tão imprevisível quão absurda, que ganhou a forma de uma violenta paixão por um japonês. Houve um momento em que tive de dizer a mim próprio que Cláudia tinha ficado louca. Há comportamentos que escapam às relações de causa variáveis, mas que também escapam às relações não casuais, e então há que desenvolver outras lógicas, já a não desta ou daquela história, mas a de conjuntos completos de histórias desconexas que uma pessoa jamais chegará a compreender que têm a ver umas com as outras. Sou escritor, poeta e ensaísta. Ao aproximar-me dos quarenta anos, a minha carreira estava próximo de um impasse que parecia definitivo. Com catorze livros publicados, todos à minha custa, tinha criado uma sólida reputação, em círculos restritos que se tornavam mais pequenos cada dia que passava. Era como a propagação das ondas de uma pedra atirada a um tanque, ao contrário. Tive então o fundado temor de que as ondas, na diminuição do seu raio, chegavam a franquear o umbral da sua transformação, e a pedra saltava expulsa da água para voltar à minha mão, onde ficaria como perene objecto de contemplação, vazio de sentido. Como isto sucedia na Argentina, de onde nunca tínhamos saído nem eu nem os meus livros, comecei a pensar que o estrangeiro me reservava alguma possibilidade desconhecida… Foi nesse transe que aceitei uma bolsa que me era oferecida pelo governo polaco para residir um ano em Varsóvia, com tudo pago, escrevendo e estudando sem preocupações materiais. Nessa altura os governos polaco e argentino tinham assinado um acordo de intercâmbio de escritores, do qual fui o primeiro beneficiário, e por causa das perturbações políticas que se seguiram, também o último.»

[César Aira, Como Me Tornei Monja; trad. José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, Novembro 2005

23 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


«As citações, no meu trabalho, são como ladrões à beira da estrada, que irrompem armados e arrebatam o consciente do ocioso viajante.»
(Walter Benjamin)

Às vezes, lá calha

«Roubar alguma coisa de um supermercado e oferecer-lhe. Era o equivalente do que outrora teria sido matar um dragão. No presente iluminista do século, qualquer pessoa diria que os dragões nunca tinham existido. Mas será que para um camponês da Idade Média existiam os supermercados?»

Nem sempre a lápis (167)

Saí convicto de ter metido no bolso o lápis acabado de afiar, pelo sim, pelo não. Dei uma voltinha pelos arredores do Sol, que se põe sempre para o mesmo lado, visto pela porta de Duchamp. Chegado à esplanada, não o encontrei e tive de recorrer a uma esferográfica para anotar como ando a apreciar, mais do que esperava, o que chamo a inocência da escrita de Rosa Montero, descoberta em A Louca da Casa. Não era o livro que me levou à abertura da Feira, mas é o primeiro que leio dos quatro adquiridos; creio ficar por aqui. Em 2004, desencontrámo-nos na Póvoa de Varzim e não me lembro se assisti à mesa em que Rosa terá, por certo, participado. Sempre prestável, o Google informa que o tema foi «Escrever porquê? Escrever para quê?», mas não ofereceu César Aira disponível em português*. Como se continuasse a palestra que terá tido origem, divago, na presença da autora no lançamento do livro, desconcertam-me as opiniões, bem fundamentadas, sobre o acto e o ofício de escrever e os seus protagonistas, os escritores; a atitude recta, tão humanamente falível quanto possível, e isto, não é corrente. Daí que me deliciem, por exemplo, as referências a Walser – não é autor de que Rosa goste em particular, preferindo Naipul, Theroux, Aira, mas eu aprecio e fiquei a babar pelo último –, posteriores às afirmações sobre o autor de Bartleby; terreno literário movediço. Um pouco mais adiante, ainda vou a meio e com receio de terminar o livro, Rosa detém-se sobre a ambição da imortalidade como uma doença que ataca todos os escritores; parece não admitir excepções, o que é estranho para uma regra. Conta o caso do repórter do Daily News de Nova Iorque – colega da autora de A Casa da Louca, que trabalha exclusivamente para o El País desde 1977, embora não faça a necrologia –, Lowell Limpus redigiu a sua própria: «Esta é a última das 8700 histórias escritas por mim que aparecerá no News. Tem de ser a última porque faleci ontem… Escrevi a minha própria necrologia porque conheço melhor do que ninguém o sujeito em questão e prefiro que seja mais sincera do que florida.» Rosa duvida sobre a justeza do que é afirmado, se nos conhecemos melhor do que ninguém, para terminar o saboroso capítulo 12 da seguinte forma: «Se pensasse [escreve] hoje no que gostaria que pusessem na minha necrologia, creio que me bastaria [pensa] que pudessem dizer: “Nunca se contentou com o que sabia.”». A autora de A Casa da Louca continua a revelar desconhecimento da presença de anões, numa escrita monumental e límpida. Se isto não é inocência, eu não passo de um fingido. Quanto ao lápis, recordo, como não estava deitado quando saí, ficou em casa enfiado no seu território; a afiadeira, aguçadeira, apara-lápis, depende.
* [«O Google é mentiroso» (Vila-Matas). Como Me Tornei Monja e Aventuras de Um Pintor Viajante; col. Outros Lugares / Assírio & Alvim.]

Papiro do dia (74)

«Uma senhora muito rica foi a uma festa, e entre outras coisas usava uns brincos com quatro esmeraldas cada um, grandes como chávenas de café. De repente deu-se conta de que lhe faltava um; apesar de procurarem em todos os divãs e tapetes, não o encontraram. Como custava milhões, e as senhoras ricas são muito apegadas às suas coisas, que custam sempre milhões, houve um grande escândalo, que até veio nos jornais. Os convidados concordaram em ser revistados ao sair, mas o embaixador do Paraguai, que estava presente, negou-se, e não se fez a revista. Claro, ele foi o principal suspeito. A chancelaria tomou conta do assunto, e o embaixador foi chamado ao seu país e demitido. Um ano depois, a senhora foi a uma festa no Palladium. Qual não foi a sua surpresa ao ver Sergio Vicio na pista de dança, com as quatro esmeraldas penduradas numa orelha. Os seus guarda-costas foram logo buscá-lo e trouxeram-no em ombros. Ela estava com um coronel, com o ministro do Interior, com Pirker e com a senhora Miterrand. Colocaram uma cadeira extra e sentaram Sergio Vicio. Como a conversa na mesa fora em francês, a senhora perguntou-lhe se falava essa língua. Sergio disse que sim. “Há uns tempos – contou-lhe ela –, perdi um brinco semelhante ao que usas. Pergunto-me se será o mesmo.” Sergio olhava para ela, mas não a via (nem ouvia). Estivera duas ou três horas a dançar sem parar, coisa que faz com frequência pois adora dançar, e a interrupção súbita do movimento provocou-lhe uma descida de tensão. Era a primeira vez que lhe acontecia pois sempre, por instinto, deixava de dançar gradualmente, e depois saía para passear até amanhecer. O efeito deste acidente foi ter perdido a visão; tudo se foi cobrindo de pontinhos vermelhos, e não via nada. Isso chama-se “hipertensão orto-estática”, mas ele não sabia. Outros sintomas que acompanham a perda da visão são a náusea, que ele não sentiu porque havia dois ou três dias que não comia nada, e a vertigem, à qual estava tão habituado devido à sua experiência da indolência, que longe de o incomodar ou alarmar, entreteve-o durante o resto da cena, que passou para o espaço cósmico. A senhora, um ás no manejo dos dedos, desprendeu-lhe o brinco da orelha de uma maneira que pareceu um passe de magia. Ora bem, nessa noite, nessa festa, em honra dos músicos da ORTF de visita ao país, o Palladium inaugurava um sistema de luzes de radiação de quark, o mais moderno da tecnologia. E acenderam-nos precisamente nesse momento. Na mesa estavam tão distraídos com a presença de Sergio Vicio que não ouviram o anúncio feito através da instalação sonora. Quando a senhora tirou o brinco da orelha e o levantou pelo ganchinho para que todos o vissem, começou a dizer “Estas esmeraldas…” Foi tudo o que conseguiu pronunciar pois as novas luzes, trespassando as pedras, tornaram-se transparentes como o mais puro cristal, sem o menor rasto de verde. Ficou boquiaberta. “Esmeraldas? – disse a senhora de Miterrand –, mas são diamantes! E que água! Nunca vi semelhantes.” “Ora, diamantes! – disse Pirker –, onde os iria buscar este vadio. São bugigangas da avó atadas com arame.” A dona, paralisada, abria e fechava a boca como um peixe sem cauda. Nesse momento, já soavam as primeiras notas de Pierrot Lunaire. Boulez, nem menos, estava no palco, e a fantástica Helga Pilarczyk como recitadora. A atenção dos personagens deslocou-se para a música. Nenhuma esmeralda tornada diamante podia comparar-se com as notas lívidas da obra-prima. A mais elementar elegância ditava a supremacia da música sobre as pérolas. A senhora, com movimentos de autómato, movimentos que duplicavam e invertiam os anteriores, pendurou a jóia no lóbulo de Sergio Vicio e viu, em angustiado silêncio, como os seus guarda-costas, interpretando mal as coisas o levantavam em braços e levavam de volta para a pista de dança, onde começou a mexer-se, indiferente à música, até recuperar a visão e sair, sempre com o piloto automático. E ela nunca voltou a ver as suas esmeraldas.»

[César Aira, Como Me Tornei Monja; trad. José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, Novembro 2005]

21 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


Conto da Travessa das Musas e Guias Sonoras
mais logo, na Letra Livre [Galeria ZDB]

Às vezes, lá calha...


«O inexplicável. O verdadeiramente inexplicável não tem outro santuário senão os meios de comunicação de massas.»

Nem sempre a lápis (166)

Dei o carmim, com trincha lenta e diluída, sobre um cartão recuperado. «Raramente se fez um tão estudioso elogio da preguiça intelectual» (Olivier Rolin). Hoje, já não devo dar o branco a envolver o território; sem marcos. Ontem, fartei-me de pintar de cabeça. Só sosseguei quando peguei em A Louca da Casa; acordado com óptimas notícias, da Teodolito. Sem surpresa minha, há mais de três anos que esperava, o meu editor literário regressa ao activo. Não se vai encontrar com Vila-Matas, por não estar, mas veremos se traz de Barcelona o que Samuel Riba, o seu colega de Dublinesca, não encontrou; uma coisa é certa, Perder Teorias. Foi uma decisão lenta, ao fim da tarde, que me reteve em casa a tirar os agrafos do cartão e a prepará-lo para exercitar a cor, sobre a mesa folgada da sala. Forrei-a com um saco para o lixo, demorei a encontrar os boiões de tinta e os pincéis, sempre os mesmos, a utilizar a curto prazo: carmim, verde, preto, branco; finalmente o branco, em branco, que te ofereço. Sem me dar conta, talvez as giestas húmidas, na colina em frente, estejam na origem da mudança de atitude enquanto apanhava a roupa; caídas as flores da amendoeira, vistas o ano passado. Ao contrário da escrita, a pintura não se grafita.

Papiro do dia (73)

«A rádio ajudou-me a viver. A repetição que umas vezes acontecia e outras não, dava-me um pouco de vida, como uma prenda surpresa que eu desenvolvia louca de felicidade, no momento em que o fluxo sonoro decidia se ia ser igual ou diferente… A minha memória exacerbada acalmava-se então… Já não era como se começasse a viver, com a crueldade raivosa de um começo mas como se continuasse a viver…
Não sei se os meus leitores o terão notado, mas é um facto que o tempo transporta sempre outro tempo, como suplemento. O tempo das repetições vivas da rádio trazia consigo outro: o tempo que passava. O palanquim levava o elefante. E transcorria deveras, lento e majestoso. Nele, a catástrofe revelava-se possibilidade de catástrofe, e ficava para trás. Dava-me a impressão de que já não haveria mais catástrofes na minha vida: eu teria vida, tal como toda a gente, e contemplaria as catástrofes da altura da existência do tempo… Os acontecimentos pareciam dar-me razão. Na escola a professora continuava a ignorar-me, e isso era bom. A mamã não voltou a levar-me à prisão. De saúde, bem. A simplicidade da minha vida não me angustiava. Havia uma certa paz em mim. Descobria que o tempo, o tempo extenso feito de dias e semanas e meses, já não de instantes horrendos, agia a meu favor. Que fosse o único que o fazia não me preocupava. Achava-o suficiente. Agarrei-me ao tempo; e por consequência à pedagogia, a única actividade humana que põe o tempo do nosso lado.»

[César Aira, Como Me Tornei Monja; trad. José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, Novembro 2005;

19 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...


«O mentiroso experimentado sabe que a chave do sucesso está em fingir bem a ignorância de certas coisas. Por exemplo, as consequências do que está a dizer.»

Nem sempre a lápis (165)

Embora não seja igual, vou continuar a usar a manta de lã enquanto Maio o permitir. A casa demora a aquecer e há um ano, em Asilah também choveu, sem que as mantas do quarto do Pátio de La Luna procuradas no casbah, para não cair na tentação da negociata com os recepcionistas, se assemelhassem a esta de Reguengos de Monsaraz e deve ser peça de museu. Na etiqueta rectangular dourada, lê-se num círculo com o seguinte diâmetro: «Fábrica Alentejana de Lanifícios, Ld.ª Reguengos de Monsaraz Alentejo Portugal»; tipo GPS, duvido é da laboração da fábrica. Por baixo, frisa-se a toda a largura que se trata de Fabrico Manual, legendado em português, inglês e francês, 100% de pura lã virgem; não pica. Não sei se chegou a ser utilizada nem comprada para fazer de carpete garrida com cores de garraiada; permanecia nos curros da memória. Foi um Setembro com duração de década, no castelo ou na arena improvisada com reboques de tractores, no sítio de Telheiro, sopé de Monsaraz, paragem obrigatória e troca de ajuda para a festa, se queria trepar para o reboque. Era a fiesta de Hemingway lida por analfabetos; pontuação viril e primária, aterradora. Vitelos assustados com a algazarra e os candeeiros, o urro de um corno ou clarinete da idade do xisto, a marrarem no ar quando não mandavam um espontâneo efémero para as urgências. À boca calada: «Espalhou-se ca motorizadã...», por exemplo. Até lá chegar – nos veículos mais impensáveis –, permanecem a vinha, as paredes de louça de São Pedro do Corval reflectidas pelos faróis, o montado e a campina a latejar outra presença; às vezes, só um coelho, só uma lebre, a correr à frente do carro, em mínimos.

Papiro do dia (72)


«Um dia a meio da aula pedi licença à professora para ir à casa de banho. Fazia-o sempre, todos o faziam. Eu, e suponho que com os outros se passava o mesmo, não tinha vontade nem calculava o momento de pedir autorização. Era de repente. Era o único triunfo pleno que posso recordar da minha infância. Para a professora, ver a mãozinha levantada, adivinhar de que se tratava (porque nunca era nada que valesse a pena, por exemplo perguntar-lhe em que casos se usava b e em quais se usava v) e explodir, era apenas um “Vá! Mas é o último! O último!” E o que tinha tido a brilhante inspiração de pedir naquele momento, naquele momento que se revelava como o último, saía a correr louco de felicidade sob os olhares de ódio e amargura de todos os outros, que se sentiam excluídos para sempre, e sentiam perdida a sua oportunidade… Mas a oportunidade repetia-se, idêntica, e era consumada quatro ou cinco vezes em cada hora de aula. Vivíamo-la sempre como um absoluto, e a professora repetia sempre o seu ultimato, embora nunca negasse a autorização, porque as professoras da primeira classe viviam no terror, o seu único terror efectivo, de que algum de nós fizesse ali mesmo as suas necessidades. Mas não o sabíamos. Coisas de miúdos. O que me espanta é que eu tenha entrado tão bem no jogo. Mais próprio de mim, muito mais, teria sido aguentar até a bexiga rebentar. Mas não. Pedia sem vontade, como todos os outros. Nisso estava à altura da minha geração.»

[César Aira, Como Me Tornei Monja; trad. José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, Novembro 2005]

17 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...


«É possível que a maior parte das misérias morais e intelectuais se cometam por isso, para não contradizer as ideias dos nossos patronos, vizinhos, amigos. Um pensamento independente é um lugar solitário e ventoso.»

Nem sempre a lápis (164)

Devo ter feito uma das minhas, quando aceitei o convite para instalar o Explorer 9, durante uma actualização que me deixou a ver navios. Questão de tempo; rapidamente me afeiçoo a outros hábitos, não necessariamente novos. Mas há dias, em que até a fechadura se recusa a abrir o trinco. Não desespero, meto-me no elevador e volto mais tarde, disposto a confirmar se as portas abrem com cartão e abrem; pelo menos, deu-me essa impressão. Sem compreender porquê, e até encontrar uma alma generosa disposta a vir cá a casa rir-se de mim, só consigo guardar rascunhos do blogue e activá-los no portátil, avesso a actualizações e sugestões desde que passou no Raio X do porto de Tânger. Esqueci-me e a polícia também não deu por nada; bagagem de lei. O caso não seria grave, escrevi na cama grande parte dos últimos três anos, se não me sentisse pouco virado para o campismo electrónico. Basta-me a mania da responsabilidade editorial de activar e corrigir as primeiras provas do blogue, de cinco em cinco minutos, até a tiragem final das 00.15 horas. A partir daí, desligo o PC e caio nos braços da leitura; só escrevo em caso de necessidade.

Papiro do dia (71)

«Gosto muito de Italo Clavino; gosto da sua prosa limpa, gosto dos seus romances fantásticos, gosto dos seus ensaios literários de Seis Propostas para o Próximo Milénio. Mas há pouco tempo li um curioso livro dele, Um Eremita em Paris, que reúne diversos textos, fundamentalmente autobiográficos, e que me levou a achar Calvino por vezes um pouco chato. O núcleo do volume é composto por um diário que manteve na sua primeira viagem aos Estados Unidos, efectuada em 1959 graças a uma bolsa de estudo que lhe fora atribuída. E há alturas em que é tão vaidoso! Por exemplo, escreve periodicamente para a editora italiana onde trabalha (Einaudi), enviando de cada vez várias páginas com as suas reflexões sobre os Estados Unidos; e explica à receptora das cartas: “Daniele, isto é uma espécie de jornal para uso dos amigos italianos (…), guarda-o todo junto numa pasta à disposição de todos os colegas e também dos amigos e visitantes que tenham vontade de o ler, e faz o possível para que não se perca e seja lido, de modo a que o tesouro de experiências que acumulo seja património de toda a nação.” E da nação apenas porquê? Por que não do mundo inteiro? Que prepotência tão absurda a deste parágrafo! A verdade é que as suas reflexões sobre os Estados Unidos são bastante chochas e o tesouro de experiências é antes uma pequena gaveta de bagatelas. A favor de Calvino convém dizer que, anos mais tarde, quando lhe propuseram editar este diário, ele se recusou a fazê-lo, pensando, com razão, que carecia da qualidade suficiente (a publicação foi póstuma), de modo que é admissível a esperança de que se vai melhorando à medida que se envelhece.»

[Rosa Montero, A Louca da Casa; trad. Helena Pitta, ASA, 3.ª ed. Abril 2008;

15 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...


«A única influência de que devemos defender-nos é a de nós próprios.»
(Bioy Casares)

Nem sempre a lápis (163)

Fui tomar o pequeno-almoço e ao Correio todo pinoca, casaco branco e T-shirt, jeans e ténis, vim para casa fazer horas até ir à Feira do Livro, só para ouvir os melros a «Inventar Espaço Para a Poesia». Acabei por sair do Correio com o monco caído; não precisei de correr, mas a chuva e a carga de saraiva prolongaram a espera até uma sms da Catarina. Respondi que não valia o incómodo de fazer um desvio para devolver A Cicatriz do Ar, porque tudo levava a crer que já não ia sair. Saí para beber o chá das seis e meia, mas o ar baço devolveu-me rapidamente à luminosidade da casa. Vi-a amontoada na valeta, nas sarjetas; repugnante. Não aprecio a palavra granizo, nem grasnidos que não sejam de voláteis – «o pássaro, que entre os nossos consanguíneos» (Saint-John Perse e Eliot, também) – e durante anos, que agora me parecem imensos, debati-me com a surpresa, húmida e gelada, de ver o nome do meu padrinho a cair do céu e a bater nos vidros. E saraiva ficou, como a que caiu esta tarde e foi motivo de júbilo e incómodo e surpresa e chatice, mas eu espero ter sido oportuna. Se estivesse bom tempo, como fez ontem durante a abertura da Feira do Livro, duvido que o pavilhão recebesse mais público do que as pessoas que – gostava, sinceramente – foram apanhadas desprevenidas pela borrasca e a saraivada e correram a abrigar-se no espaço, onde jovens conversavam sobre poesia sem invenções desnecessárias; ela basta. Cometi o erro imperdoável de ter perdido A Porta de Duchamp e procuro-a em Telhados de Vidro N.º 11: «Uma porta que não podia estar nem aberta nem fechada porque estava sempre aberta e fechada ao mesmo tempo.» (Rosa Maria Martelo).

Papiro do dia (70)

«Todos nós, seres humanos, passamos a vida à procura do nosso ponto particular de equilíbrio com o poder. O que acontece é que, nos escritores, costuma notar-se mais esse conflito. Em primeiro lugar, porque a crítica ou a análise honesta das relações de poder faz parte do nosso ofício, da mesma forma que construir bons móveis faz parte do ofício do marceneiro. Por isso, quando nos atraiçoamos, quando nos enxovalhamos, quando nos vendemos, as nossas porcarias são duplamente notórias. Porque, além disso, todos os poderes precisam de arautos e de porta-vozes; todos eles precisam de intelectuais que inventem para eles uma legitimidade histórica e uma justificação moral. Esses, os intelectuais orgânicos, são, do meu ponto de vista, os piores. São os mandarins, e esse papel pançudo de grande Buda não se exerce impunemente. Paga-se em criatividade e em graxa literária, como talvez se possa comprovar no trajecto de um Cela, por exemplo. Mas os outros também não são puros. Mais, desconfio dos puros, aterrorizam-me. Dessa pureza fictícia nascem os linchadores, os inquisidores, os fanáticos. Não se pode ser puro sendo humano. De modo que nós, os restantes, cá nos vamos arranjando, na nossa relação volúvel e escorregadia com o poder. Vamos procurando o nosso equilíbrio, como patinadores num lago congelado e pejado de perigosas placas de gelo muito fino. Às vezes, uma mesma pessoa pode manifestar comportamentos diversos: pode ser heróico diante de alguns desafios e canalha diante doutros. O celebérrimo manifesto de Zola a favor do judeu Dreyfus é sempre citado como exemplo do comportamento social e moral do escritor, e, sem dúvida, Émile teve de ser corajoso para redigir o seu iracundo Eu Acuso quase em absoluta solidão contra os bem pensantes. Mas esquecemo-nos de que, três anos antes, esse mesmo Zola se recusou a assinar o manifesto de apoio a Óscar Wilde, condenado a dois anos de cadeia nas inumanas prisões vitorianas apenas por ser homossexual. Mas, claro, nessa altura defender um sodomita, como os denominavam, era ainda mais difícil do que defender um judeu e revelava uma liberdade intelectual muito maior.»

[Rosa Montero, A Louca da Casa; trad. Helena Pitta, ASA, 3.ª ed. Abril 2008]

13 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A computação, a teoria da informação e o acesso à mesma, a ubiquidade da Internet e da rede global envolvem muito mais do que uma revolução tecnológica. Implicam transformações de consciência, de hábitos de percepção e de expressão, de sensibilidade recíproca, que mal começámos a avaliar. […] O software tornar-se-á, por assim dizer, interiorizado, e a consciência poderá ter de desenvolver uma segunda pele.»

Nem sempre a lápis (162)

A imposição sobre o que se deve ler tornou-se tão insuportável, que não precisei do parecer de nenhuma junta médica para reler e recuperar, o que deixou de ser recomendado, o que passou de moda, o que fui deixando pelo caminho. Nalguns casos, tenho pena de ser tão pouco dado à novidade; noutros casos saí-me mal, como se ter pena não bastasse. Creio ter sido Cossery quem perguntou a um curioso, surpreendido com a escassez da biblioteca de quarto de hotel, «quantos livros achava que valia a pena ter, que valia a pena conservar». Teria de me levantar e procurar Conversas com Albert Cossery (Michel Mitrani); deve ter sido a maior seca que lhe deram e eu não estou disposto a sofrer, à procura do livro. Os livros movimentam-se; a sedentarização mata-os. Por isso, gosto de ler na Net, na bloga; ajudou-me, é verdade, a elaborar uma modesta lista de livros para comprar na Feira, mas esquivo-me a afinar a leitura pelas ave-marias electrónicas. Esquecido A Tábua das Marés, em casa da Nico, como aqui ficou esquecido Sobretudo, as vozes, conto com o ajudante Walser, na Relógio d’Água – fingindo-me indiferente à reposição e actualização de Cormac –, O Anjo da História e Viagem ao Baobá, na Assírio & Alvim. De momento, não me ocorre assim mais nada, além de uma vista de olhos à ASA para ficar a saber como vamos de pequenos prazeres, travado conhecimento com a louca da casa, a original, na Póvoa de Varzim. Feira que não conste no Borda d’Água, grandes superfícies, panteões alfarrabistas; enfim, quando a fartura é muita, o pobre desconfia. No meu caso, este ano opta por assistir a um debate que pretende «Inventar Espaços para a Poesia», onde o colunável é o moderador, José Mário Silva, e os convidados são gente nova; os que gosto de ouvir, a ler de ouvido.

Papiro do dia (69)

«O peruano Julio Ramón Ribeyro diz que, por vezes, o escritor tem a sensação de que deixou escapar as suas melhores obras: “Lendo Cervantes há pouco tempo, passou por mim um sopro que infelizmente não tive tempo de captar (porquê? Alguém me interrompeu, tocou o telefone? Não sei) porque me lembro de que me senti impelido a começar alguma coisa… Depois tudo se dissolveu. Todos nós guardamos um livro, talvez um grande livro, que no tumulto da nossa vida interior raras vezes emerge ou fá-lo tão rapidamente que não temos tempo de o arpoar.” Gosto desta frase porque sempre pensei que, de facto, a visão da obra tem muito a ver com a visão entrecortada, hipnotizadora e quase aniquiladora, de tão bela, daquela baleia do Pacífico. Com a escrita passa-se o mesmo: pressente-se com frequência que, no outro lado da ponta dos dedos está o segredo do universo, uma catarata de palavras perfeitas, a obra essencial que dá sentido a tudo. Encontramo-nos no próprio umbral da criação e na nossa cabeça fervilham enredos admiráveis, romances imensos, baleias grandiosas que só nos revelam o relâmpago do seu lombo molhado, ou melhor, apenas fragmentos desse lombo, retalhos dessa baleia, migalhas de beleza que nos permitem pressentir a beleza insuportável do animal inteiro; mas depois, antes de termos sido capazes de calcular o seu volume e a sua forma, antes de termos sido capazes de calcular o seu volume e a sua forma, antes de termos podido compreender o sentido do seu olhar penetrante, a besta prodigiosa submerge e o mundo fica quieto e surdo, e tão vazio.»

[Rosa Montero, A Louca da Casa; trad. Helena Pitta, ASA, 3.ª ed. Abril 2008]

11 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


01: Si quieres, dejamos para tu regreso de vacaciones la página de Historia abreviada, ya que no sé todavía cómo enfocarla.

Às vezes, lá calha...

«Falar com uma certeza aventureira e legítima que nos habita, quando afirmamos o nosso conhecimento da cidade, sem no entanto nos outorgarmos a intimidade de todas as suas ruas ou de todos os seus bairros.»
(Borges citado por Olivier Rolin)

«É bom trabalhar nas Obras» (87)

«- Quanto dinheiro tens? – perguntou Rafael.
Arturo mostrou-lhe as notas.
- Deu-te isso tudo? Levam assim tanto por matar uma gata?
- É a tarifa do veterinário.
- Sabes do que me lembrei?: deixá-la no parque e ficarmos com o dinheiro.
- Nunca. Imagina se sobrevive e volta? A minha tia mata-me, assassina-me de verdade. A gata andou perdida muitas vezes e regressou sempre. Se calhar volta a fazê-lo de novo.
- Mas se ela já está a morrer. Não a vês? Fazemos uma obra de caridade em arrumar com ela.
- Tenho medo. Se a minha tia se dá conta…
- Nunca saberá. Imagina o que podemos fazer com esse dinheiro: ir ao cinema, ir remar em Chapultepec, comprar toda a espécie de doces e de refrescos. Enfim…
Arturo apalpou o corpo por baixo do saco de piteira. Estará morta? É má. Florencia gosta mais dela do que de mim.
- Não. Não me atrevo. Juro-te que tenho pena da gata.
- Para todos os efeitos, vai morrer, não? Deixa o saco no meio da rua. Com tantos carros ninguém dá por nada.
- Mas ia sofrer muito. Um dia, calhou-me ver um cão…
- Tens razão. Vamos procurar outra forma.
- Dá-la a alguém?
- Estás louco?... Já sei: atiramo-la à água.
- Não sejas parvo: os gatos sabem nadar.
- Olha, vamos ao parque. A estas horas, não anda lá ninguém.»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]

Papiro do dia (68)

«O que faz a ligação transversal entre quase todos os escritores nascidos há um século, a curiosidade do jogo, é a obra-prima do mais velho. É Ulisses que navega entre eles. A admiração (muitas vezes perplexa) que suscita entre escritores tão diferentes como Hemingway, Borges ou Nabokov, ou Kawabata, revela experimentalmente (àqueles a que a leitura não convenceu) a força do livro que, mais do que qualquer outro, criou a gravitação literária do século XX: esta enciclopédia de todos os géneros (desde a epopeia à laracha escatológica), este formidável poço de energia verbal, esta massa de língua incontestável e paródica. É o grande pau-de-virar-tripas semi-cego, de chapéu mole, James de Dublin, Trieste, Zurique e Paris, é o protegido de Sylvia Beach e de Adrienne Monnier (uma edita-o em inglês, em Paris, proibido pela censura em Inglaterra e nos Estados Unidos; o outro tradu-lo em francês: glória à rue de l’Odéon!), que desbrava as vias do século. (…) Hemingway é o único dos cinco, se não me engano, que conheceu um pouco Joyce, em todo o caso o suficiente para o ter levado a casa, na rue Galilée, aos ombros como um grande saco de ossos. Põe-no em cena várias vezes em Paris É Uma Festa. Em As Verdes Colinas de África, é encostado a uma árvore, rodeado de pegadas de leões e de rinocerontes, pensando na guerra e na escrita, e no que faz um grande escritor, que lhe ocorre com toda a naturalidade lembrar-se de Joyce: “Era agradável”, solta ele com esta simplicidade e quase inocência que por vezes tem, “ver um grande escritor da nossa época”. Num pequeno texto intitulado Sur l’écriture, espécie de meditação sobre a verdade na literatura que originalmente terminava La Grande Rivière…, é a pescar à truta que ele evoca Ulisses… O que torna as coisas reais, pensa ele, é tirá-las de nós mesmos, inventá-las – nada de as reproduzir: “Em Ulisses, Dédalo é o próprio Joyce, e é muito mau. Joyce era de tal maneira romântico e intelectual quando comparado com ele. Bloom, pelo contrário, inventou-o, e Bloom era maravilhoso”. O que é necessário é “escrever como Cézanne pintava: sem truques”. “Joyce inventou centenas de novas maneiras. Pelo facto de serem novas, isso não as impedia de serem truques, e não melhores do que os outros. Transformaram-se todas em tiques”.»

[Olivier Rolin, Paisagens Originais; trad. Jorge Fallorca, colecção Pequenos Prazeres / ASA, Outubro 2000]

9 de maio de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...


«Esta jovem sabia ler. Para mim (entre outros autores), Michaux era isso: palavras que parecem não dizer nada, de ar modesto e quase pacóvias, que nos fulminam à queima-roupa.»

Nem sempre a lápis (161)


Vi o céu incendiado pela trovoada que terá arrefecido no mar, apoiado na sachola. O branco da igreja escorregava pela colina até cegar. Podei as velhas buganvílias e os rebentos do caule da romãzeira; é árvore, não a plantei para ser arbusto. Apanhei as primeiras nêsperas e vi, pela primeira vez, os cachos da glicínia. Os figos aguentaram o mau tempo da semana da Páscoa; só um desistiu. Acabei a sepultura do Pompy com a planta germinada das sementes apanhadas na praceta, donde ele foi. Montei a mesa no atelier e julguei ter encontrado uma posição. Depois, pôs-se a hora do lobo; choveu não me lembro onde, nem porquê.

Papiro do dia (67)

«Num TGV, derrubando sucessivas muralhas de chuva erguidas sobre uma região de colinas que deveria ser Beaujolais, ou o Mâconnais, enfim, mais ou menos isso, uma mulher jovem sentada à minha frente não demora muito – circunstância muito rara, verdade seja dita – a dirigir-me a palavra, colocando-me uma questão extremamente inesperada: a literatura interessava-me? Nem mais… O que a levara a pensar isso foram os livros de e sobre Michaux colocados sobre a mesinha que nos separava. A sua curiosidade era tanto mais audaciosa na medida em que nunca tinha ouvido falar deste escritor, partindo do princípio de que se tratava de um, apesar de ser uma assídua frequentadora da livraria do seu bairro em Paris. Confirmei-lhe que era um “escritor”, e não dos menores, de tal maneira que recusara esse nome, e que de momento me interessava um pouco, na medida das minhas capacidades, por este famoso e antigo assunto das letras. Quanto a ela, contou-me que trabalhava para uma empresa belga (não há nada a fazer…) que alugava tudo o que pudesse ser alugado, “desde mamógrafos a semi-reboques”, foram as suas palavras. Como me pediu que lhe mostrasse do que se tratava, estendi-lhe a Pléiade, aberta na página de A Noite dos Búlgaros, também porque tudo isto se passava num comboio. Cadáveres lançados pela janela, cabeças batendo contra o tejadilho da carruagem, etc. Ela leu com atenção. Não era alegre, disse-me. Sim, realmente não era, mas a literatura, ou a arte em geral, tentei (não sem falta de graça) explicar-lhe, nem sempre fora obrigada a estar ligada à paródia. Além do mais, este Michaux de quem ela nunca tinha ouvido falar, também era, esforcei-me para que o soubesse, um autor terrivelmente engraçado. E, para o provar, folheei a toda a velocidade a Pléiade, e estendi-lha na página de As Minhas Propriedades, onde se trata dos Tremes, “seres misteriosos com a cabeça semelhante à do linguado, tremendo-lhes o corpo todo para comerem, comedores de formigas e outros raviots do género”. Então, os “raviots”, que tal lhe pareciam? Ela sorriu. E, sem me deter, voltei a fazer rodopiar as páginas e coloquei-lhe debaixo dos olhos A Noite dos Embaraços: “E se se oferecessem tartes com compota de cavilhas aos pobres, quantos não se gabariam de ser ricos?”. Ah!, sempre era um pouco mais escabroso que Le Clézio, não? (Este, tinha a certeza que ela conhecia). Ela sorriu bastante divertida, e teve esta expressão que me recompensou dos meus esforços de camelot literário: “Ele sabe o que quer”. E, como eu permanecia interlocutório: “Dá a impressão de apalpar o terreno, e depois dispara uma frase, de súbito, como uma flecha…”. Esta jovem sabia ler. Para mim (entre outros autores), Michaux era isso: palavras que parecem não dizer nada, de ar modesto e quase pacóvias, que nos fulminam à queima roupa.»

[Olivier Rolin, Paisagens Originais; trad. Jorge Fallorca, colecção Pequenos Prazeres / ASA, Outubro 2000 ...]