31 de julho de 2011

... entre nós e as palavras



30 de julho de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...


Nem sempre a lápis (193)

Fui à apresentação do livro de Golgona Anghel (Vim Porque Me Pagavam) retribuir ter apresentado o meu; aproveitei para ouvir o Fernando J. B. Martinho. Não acontecia desde os idos de 73/74, em Estremoz. Era ele professor no colégio, onde dei aulas de ginástica; aplicação militar. Apresentei-me na capital do mármore ainda fresco, tinha acabado a tropa em Outubro. Depois fui a Tânger e vim para Lisboa, pouco sabendo dele pelas vozes mais improváveis. Gostei, sobretudo, de ver o professor jubilado há quatro anos, sentado ao nível das mesas e a humildade com que disse sentir-se inibido por estar no ambiente caloroso de uma cave, porque o foi. Despedi-me do Fernando e da mulher e da filha, entre outros que não conhecia à vista desarmada da Net, mas não fui dar conta se a música ainda mexia no Trem Azul. Optei pelos Loucos e Sonhadores; acender um pouco de realidade, na distância.

Papiro do dia (108)

«Poeta na Praça da Alegria:
Não sou infeliz. Não, não me quero matar.
Tenho até uma certa simpatia por esta vida
passada nos autocarros,
para cima e para baixo.
Gosto das minhas férias
em frente da televisão.
Adoro essas mulheres com ar banal
que entram em directo no canal.
Gosto desses homens com bigodes e pulseiras grossas.
Acredito nos milagres de Fátima
e no bacalhau com broa.
Gosto dessa gente toda.
Quero ser um deles.

Não, não guardo nenhum sentido escondido.
Estas palavras, aliás, podem ser encontradas
em todos os números da revista Caras.
A ordem às vezes muda.
Não quero que me façam nenhuma análise do poema.
Não, não escrevam teses, por favor.
Isto é apenas um croché
esquecido em cima do refrigerador.
Obrigado por terem vindo cá para me beijarem o anel.

Obrigado por procurarem a eternidade da raça.
Mas a poesia, mes chers, não salva, não brilha, só caça.»

[Golgona Anghel, Vim porque me pagavam; Mariposa Azual, Julho 2011]

29 de julho de 2011

... beijei a boca da noite


bebi toda a água do oceano

28 de julho de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«"....... há viagens de estar a ir e a abrir caminho sem se saber ao certo aonde vai dar........ e a viver, no entretanto........."»

«É bom trabalhar nas Obras» (95)

«Arranco a folha do calendário. O mês que começa está cheio de feriados. O Dia da Pátria, o Dia do Golpe, o Dia do Exército. Na rádio dizem que no mês da pátria vai haver uma amnistia para os presos. Talvez soltem o meu velho.
Falta pouco para o plebiscito.
O pai da Patricia muda de escritório de três em três dias. Procura evitar que arrombem os lugares onde está a fita gravada da campanha contra Pinochet. Quer manter as imagens em segredo para que os publicitários do «Sim» não consigam reagir.
Estamos na aula de desenho. A professora acaba de nos explicar os girassóis amarelos de Van Gogh. Diz que as cores provocam sensações, estados de espírito. O azul é o mais triste de todos. É uma cor fria, como o verde. As outras, são cálidas. Estamos em silêncio com as nossas aguarelas a pintar qualquer coisa que evoque uma emoção. No reverso da página temos de escrever o que é que pretendíamos com o desenho. Espreito o trabalho do Che. Trata-se da cordilheira, mas em vez de neve nos cumes, pôs anjos a baterem as asas. Não sei o que é que pretende.
Eu não me perco. Atrás, anotei «Alegria» e na frente, estou a pintar um arco-íris.
Entra o inspector Pavez. Temos instruções para nos levantarmos cada vez que chega uma visita. Mas o inspector indica-nos com as mãos para permanecermos sentados. Algo na direcção do seu olhar me faz intuir que não me devo sentar. E assim é, porque diz com a sua voz rouca:
- Santos.
Sei o que todos os meus companheiros de turma estão a pensar. Sei que se lembram do dia em que levaram o meu pai preso. E sei que sabem que agora me vão levar a mim. O papi tinha razão. Não me devia ter metido em sarilhos. Fui um estúpido ao fazer o meu discursinho em frente do tenente Bruna. O inspector tem uma expressão grave. Uma seriedade fúnebre. Agora, temo que tenham encontrado o meu pai. Temo que o tenham encontrado morto e é o que o reitor me vai dizer agora, por isso a cara de Pavez, com os queixos cerrados.
Os rapazes sentaram-se, menos o Che.
- Acompanho-te – diz.
Passou-me a mão pelo ombro e aperta-me o braço. Sinto a garganta seca. Olho para os nossos desenhos sobre a mesa e hesito em guardar o meu material na mochila, antes de sair. É tudo tão horrivelmente lento: eu não quero partir e, segundo parece, o inspector quer que me ponha na reitoria dentro de um minuto.
- De que se trata, inspector? – diz, muito calma, a professora de desenho.
O homem não responde e dá uma palmada no ar intimando-me a apressar-me. Opto por deixar tudo como está.
- Porque trocaste a neve pelos anjos, Che? – digo-lhe, soltando-me do braço dele.
- Temos falta de loucos.
Folheia de relance as páginas do seu caderno de croquis e na maior parte das páginas, tem um anjo. Às vezes, a voar, ou deitado, ou sentado na valeta, ou com uma galinha nas mãos.»

[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em tradução para a Teodolito;
anjo]

Papiro do dia (107)

«Pra ondé que tu ias, vamos lá a saber?
Pra lugar nenhum, respondeu Holme.
Pra lugar nenhum.
Isso.
Ainda és capaz de lá chegar, comentou o homem.»

[Cormac McCarthy, Nas Trevas Exteriores; trad. Paulo Faria, Relógio D´Água 2011;
tu queres é a minha desgraça]

26 de julho de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A paisagem está lá, para dizer que o mundo exterior existe e nos escapará sempre um pouco, à revelia dos nossos desejos e dos nossos talentos. Talvez então a paisagem não seja a metáfora de uma exterioridade distante e maior, muito maior, que as leis e os livros.»
(Ruy Duarte de Carvalho)
[para lá da Net]

Nem sempre a lápis (192)

Não tenho ideia de alguma vez me surpreender e doer, ao ler o meu nome escrito a seguir a um adeus: «Adeus, Jorge». A dimensão da expressão de marca do Lima Barreto também contribuiu para que eu lesse o meu nome, a despedir-me de mim; no blogue. A notícia feriu-me os olhos ao acaso, a dar uma volta pela Net. Se fosse vivo, o meu irmão faria sessenta anos no sábado, dia 9; abalaram os dois no mesmo dia da semana, sem o Jorge ter feito a idade que lhe correspondia pelo ano em que nascemos: 1949. Fui pensando nisso, a praticar mikado com números, a fazer horas para ir até ao Bartleby ouvir música sufi, com a harpa e o alaúde persa reconciliados. Desta vez levei o carro e estacionei por ali perto. E lembrei-me, claro, que o Jorge vivia ou viveu na Rua da Imprensa Nacional, enquanto bebia um café ao balcão. Vejo entrar o José Amaro Dionísio e ficámos ali um bocado a acertar as agulhas do tempo, antes de descermos para a cave; que ele não conhecia. Trocámos os bancos ao balcão, pelas cadeiras da mesa; às carnes já não são as mesmas do Jamaica. Éramos os sobreviventes da malta dos jornais e da rádio nos anos de brasa, Cervejaria da Trindade e Monte Carlo e Bolero; o que interessava era a Revolução. Posso estar enganado, mas não creio que o Jorge tivesse apreciado muito a audição; posso estar enganado, e estar ainda a ouvi-los conversar sobre Música. Vivendo ali na rua, não me admirava nada se fosse a casa buscar um sintetizador, eu sacasse das Parábolas Sufi (Rumi) e ainda estamos; onde estivemos sempre, Jorge.

Papiro do dia (106)

«A fotografia de Hahn e certa paisagem pintada – e o que houver de equivalente na escrita –, remetem, sim, primeiro para uma condição de distanciamento e de irremediável solidão do observador e do operador perante tais deslumbramentos naturais e depois, ou em simultâneo, para os imperativos de um testemunho que sublinhe os benefícios das incidências do progresso – é o caso das fotografias das fomes e das populações socorridas pelo governo a construir barragens. E sabe-se que essa é uma via destinada a acentuar sempre o exótico, e a justificar a dominação. Mas não poderá também deixar de ser verdade que essa dimensão do exótico já não tem tudo a ver com o exótico que pressupõe o confronto, ou o não-confronto, do observador com um objecto estático. É o explorador europeu dos séculos anteriores que funda os horizontes do exótico, de um espaço alheio incontrolado e projectado a partir do seu navio ou da praia a que aporta com mercadorias que tem para expor, a coberto do poder de fogo que o garante. A situação colonial, ao longo do século vinte, coloca já o dominador, no entanto, perante um espaço sob o seu controle. Nem mesmo se confunde com o exótico para o viajante de hoje, turista ou jornalista, que não se preocupa nem em entender nem em agir, mas antes em captar diferenças de que elimina a história para as usar nas metrópoles donde provém segundo uma gramática de signos logo reconhecíveis, clichés mais ou menos convencionais e destinados a satisfazer ou assembleias domésticas ou um público mais interessado em confirmar o seu código do que em ver-se confrontado com qualquer outro.»

[Ruy Duarte de Carvalho, As Paisagens Propícias, Livros Cotovia, Março 2005;
Carl Hugo Hahn]

24 de julho de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«... (de qualquer maneira o que estou a ordenar não é para publicar assim, estou só a arrumar, e, ainda que o fosse, o eventual leitor está sempre autorizado, se ainda assim não decidir abandonar-me, a passar à frente caso estas coisas o enfastiem...)»

Nem sempre a lápis (191)

Fui a Lisboa atrás de umas calças; foi assim o ridículo da manhã. Levantei-me estremunhado a calcular que o sino batia as dez, mas foram as nove quando dei com a esplanada exposta à corrente de ar e olhei para o relógio. Desde que retomei o hábito da sacola, para não andar com os bolsos enchumaçados e sentir o corpo arejado, pasmo com o desplante com que frequentadores da esplanada retiram mini portáteis quase do bolso. Há cerca de duas semanas, no encalço de Duarte de Carvalho e passeata revivalista pelo Bairro, vi jeans a 5 € na montra fechada da Casa de Roupa para Homem e Senhora, onde me abastecia de calças de bombazina (verde) no tempo em que frequentava o Camões e as rotativas cantavam. Só tamanho 38, o indicado para me sentir folgado sem o contacto da pele com a fivela do cinto; lamento. O tempo passou, dei as jeans como adquiridas pelo número; houvesse quem lhes subisse a bainha, cinturas destas não se alinhavam à mão. Não sei que raio me deu, ao ponto de sossegar a empregada que não estava em directa. Tomei o pequeno-almoço e levantei-me disparado em direcção às calças, com passagem pelo marco dos Correios. Assomo à passagem de peões para o pátio e vejo o autocarro a arrancar; mas o motorista fez sinal que ia dar a volta ao bairro. Encaminhei o livro para o destinatário, apanhei o autocarro, seguido do metro para o Chiado, furtei-me pelo Camões só com um olho posto nas montras, passei em frente dela, mas condoí-me ao ver fatos de banho e subi até ao antiquário (sempre a mesma bengala), para acabar por descer o passeio e abeirar-me da entrada da loja para o empregado dizer, «Ah, isso desapareceu logo». Um ozono desses mesmo e eu de camisinha de flanela a agasalhar a T-shirt, as esplanadas todas ao Sol, no zénite, fui às mortalhas à Casa Havaneza, desci pelo passeio oposto até à Fnac disposto a endividar-me só por vingança: gamaram-me as jeans, gamo um portátil para andar dentro da sacola e sento-me na primeira esplanada (à sombra) que apareça. O aconselhamento técnico do funcionário congelou o meu arreganhado espírito de vendetta. Agradeci como pude e desci a Rua do Carmo mais aliviado, para me sentar numa das quatro ou seis mesas da Carmelita, equidistante da carripana do faducho e do elevador de Santa Justa, à minha esquerda, e a largueza do Rossio, do lado oposto. Pensei na vida, cheguei a desconfiar que devia ter algum anúncio ou ementa atrás de mim (encostado à montra, se possível), na medida em que fazia sorrir os ranchos e bandos e casos da malta com ar de safari na Cidade Branca. Ainda estou para saber porque é que entrei na Livraria Diário de Notícias, vindo intoxicado de informática da Fnac, onde não me ocorreu procurar o livro de Gonçalo M. Tavares que, creio, reunir títulos editados em menor dimensão. E também o regresso se me ofereceu à mão de semear, em versão de eléctrico para Algés, a deambular por feiras com ciganos e rulotes abrigadas, a ouvir histórias que tardam.

Papiro do dia (105)

«Era um tempo em que, na costa, e até onde se projectava a incidência dos portugueses, se expandia um estremecimento geral antes do mais na norma dos poderes locais. Um cão mastim, de raça europeia, chegava a valer três escravos e a jarda de pano importado trocava-se às vezes por três dentes de elefante com o peso de 120 libras cada um.
É vestindo pano importado desse tempo, que na estória de SRO se desloca um dos vultos que convergem um para o outro numa paisagem que se estabelece e estende sobre ondulações muito iguais, pelo continente adentro, daí para a frente. O traje do outro são peças tecidas que se chamam tanga, desse algodão fiado desde sempre nos interiores do leste e cruzado em teares como os do antigo Egipto, de trama apertada alguns e de espessura muito fina outros, desses só usam os chefes e famílias com poder. Veste disso e couro, à volta das canelas e da cintura, e traz consigo, a tiracolo, uma bolsa de fibra de cânhamo, liamba, e uma esteira de bordão enrolada e arrumada dentro de uma pequena canoa de fibra de palmeira que dá para equilibrar ao ombro porque é atravessada por um cabo comprido a que a mão desse lado agarra.
É de manhã, cedo ainda. Um tem o sol pela frente. Vem do lado da costa, portanto. Empurra a sombra, o outro. É porque vem do leste, do leste dos venenos, das longas audiências, das discussões sem fim, dos agravos novos saídos da cura de agravos antigos, das intrigas nas cortes, tão shakespearianas porque convocam tudo, medo, rancor, traição, inveja, cupidez e amor. As suas sombras vão-se misturar, baralhar destinos. Mas disso cada um não sabe ainda, ainda vêm metidos só consigo mesmos, a anhara é vasta, é muito o mundo, há gente junta num lugar e noutro mas o que há mais é direcções a sós. Depois dão conta que cada um lá vem.»

[Ruy Duarte de Carvalho, As Paisagens Propícias, Livros Cotovia, Março 2005]

22 de julho de 2011

Breve interlúdio musical

«“Eu quero que a pintura seja carne. Para mim o quadro é a pessoa.”»

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

Nem sempre a lápis (190)

Cheguei a ver o caso mal parado, nos dois últimos meses. Não se fazem sessenta e dois anos como quem faz cinquenta e nove. O fole dentro da carcaça começa a dar de si, quando forçado; desnecessariamente. Fiz o balanço a oscilar e entreguei-me ao trabalho. Só não andei aos papéis porque não tenho impressora. Por outro lado, precisava de recuperar, embora sabendo de outra maneira, o lugar dentro de casa, a ler e a rever no computador; reescrever. Com honestidade e bom senso, eliminei mais de vinte páginas do que dava como meio caminho andado; ficando por casa, escondido na toca. Frequentada a feira duas ou três tardes para inocular a ansiada dose de leitura, sucumbia a uma overdose de bloga, Net e seus derivados. E entre eles, sem paciência para andar de carro, encontrei as botas Sanjo, dei com o concerto dos Dead Combo na ZDB, fui comprar o bilhete para me reencontrar com Al Berto; pela mão de mais. Acabei por não ir a Porto Covo nem a Mortágua, é certo. Mas uma tarde, enchi-me de coragem e fui ao Sargo, à chuva; ontem limpo e com Sol e estacionamento reservado, ao chegar a casa. Desentorpeci a ler mais vezes na esplanada do Café no Chiado, a menos que na concorrência, festiva e turística, haja livraria de porta aberta até mais tarde e maiores motivos. Se tivesse carolo, e tempo, abria uma livraria a partir do Príncipe Real, no Bairro, assistida pela esplanada da leitaria ao lado. Sobrepunha a sala com a rua, e vice-versa, para ouvir música, conversas vadias, trocar livros, não atender clientes nem fornecedores. Traduzi Perder Teorias com o livro aberto na mão esquerda, a bicar o teclado com os dedos da mão direita. Encarei a tradução como transcrição de papiro, alheio, para o blogue. Na última semana, passei a devorar – viajar é mais correcto, venha a interpretação apressada – Duarte de Carvalho. Sem dizer água vai, saí numa bifurcação para escrever um conto, “A mulher descalça”, há meses entupido desde o mote anotado na cama. Ainda hesitei em ir ao São Jorge, com medo de perder o fio à meada; mas estava cá. Tinha o mote agendado para o blogue no dia da apresentação de Nem sempre a lápis, no Bartleby. E é curioso que o Ricardo retribua o convite para assistirmos, na véspera, a um concerto de Baltazar Molina, em Cascais. Estou em pulgas para apanhar o comboio em Algés, sentar-me à janela do lado do rio até ser mar. Esquecido o conto, despedido o livro, regresso a casa e começo Os dias do arco-íris, com que Antonio Skármeta ganhou o Prémio Iberoamericano Planeta-Casamérica, este ano; a meio.

Papiro do dia (104)

«Tem trechos da memória, isso não há quem não saiba, que emergem por vezes de configurações muito precisas, de detalhes de paisagem, um reduzido mundo que visitado agora não vai por certo corresponder à imagem que a lembrança devolve, vale é a imagem, não há mais nem paisagem nem palavra que a traduza ou valha, reproduzida fica informe e vaga, e prepotente, mesmo citada ao vivo não envolve o outro, é um terreno por demais secreto, e denso. Em tais imagens, porém, é que crepita a chama da lembrança, branda memória que vem crestar o que se vive a custo, o medo, a devoção, a atracção e a fuga, fastio e contenção… apreensão… constrangimento alerta…
Vir ali a ouvir SRO a dizer coisas assim, que o exaltavam, era uma coisa que só me podia deixar perplexo, aturdido, siderado perante aquela performance de exaltação, furor verbal e embriaguez votiva, ao volante de um jipe e a levantar poeira pelas extensões do norte da Namíbia de tal maneira que tudo aquilo não podia ser dito senão aos berros e ao sabor dos solavancos e das emendas bruscas à direcção do carro, dos buracos e das curvas da picada, a que a condução, no limite da velocidade possível, e sem recurso ao travão, obrigava. Para ele o gosto, manifesto e sem disfarce – a dar-se assim, fácil de ler, a personagem –, de se largar e de alargar-se em pistas, de estradas e de lembranças muito percorridas antes, e em torrentes de fala, cascatas às vezes a que respondia, mais do que ao curso e aos acidentes do caminho, a esforçada caixa de velocidades da viatura, estrondosas acelerações, em segunda ou em terceira, para depois engatar a quarta e o jipe assim dava um salto para a frente e o silvo dos pneus, na areia do chão das chanas, excedia o rumor da carburação e era uma pausa extensa em que assentava a fala, e o pó no ar, à volta, que a fala levantava, e dava tempo ao fôlego para se expandir de novo quando na próxima curva a haver, e a ver-se já, fosse preciso meter outra terceira.»
[Ruy Duarte de Carvalho, As Paisagens Propícias, Livros Cotovia, Março 2005;
mete a 3ª]

20 de julho de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«Amigo, dado o fosso que separa as tuas experiências das minhas, o mais que posso fazer para te dar uma ideia desse sabor singular, é dizer que, de uma maneira geral, os livros sabem ao cheiro do café.»

Nem sempre a lápis (189)

Creio que os leitores e os ocasionais visitantes do blogue talvez nunca tenham compreendido o outro motivo porque publico excertos da tradução que estou a trabalhar; a cumplicidade. Seria de um pretensiosismo incomensurável seduzir-me e bajular-me com a possibilidade, remota, de alguém ter notado alterações numa segunda leitura; por outro lado, admito que nem lhes ocorra uma revisão quase imediata do que seleccionei ao pré-visualizar a página. Retirado o excerto do contexto, ilustrado ou ainda não, surge-me e leio-o como peça anónima que me permito corrigir sem a preocupação de ferir autorias. O que eu gostava, era que os ocasionais visitantes e os leitores desse texto que possa ter-lhes retido a atenção, comentassem, a tempo, o que possa vir a decepcioná-los no livro. É pedir muito? Não creio, assim como creio que haverá leitores que não o fazem possivelmente inibidos pelo pudor, chamemos-lhe assim e a convicção não andará por muito longe, de se atreverem a fazer reparos. E alguns, gritantes, verifiquei há dias, ao substituir «ele prepara o café», copiado do original, por «ele faz o café», na tradução. Não foram só as Sanjo, não foi passar o dia de anos a tirar fotos na Travessa da Espera, não foi só a apresentação e a leitura de Golgona Anghel do livro, a braços com a segunda parte do conto, nem a expectativa do que a Inês Mateus andará a engendrar para paginá-lo. Também não foi a fotografia tirada por uma empregada – à socapa, pretendendo que tirava às pequenitas – com que actualizei o perfil. Um pouco mais tarde, o Henrique Fialho respondeu à minha dúvida quando iria de férias, acusando a recepção do livro e acrescentando para agendar uma dormida «num sofá ou num colchão rente à terra», na segunda quinzena de Agosto, lá prós lados do Rogil. Aceitei, naturalmente; não ia perder a oportunidade de rever, no terreno, uma noite no deserto. Vem tudo em catadupas; leituras vadias em Coimbra e no Porto, lá para Setembro, entre e-mails inconfessáveis, para não dar azar.

Papiro do dia (103)

«Ora a imagem da pobreza, da dependência, da submissão passiva e agradecida, SRO tinha dado por ela colada à pele dos brancos, e não à sua própria pele nem à de alguém com quem se identificasse pela cor. E só mais tarde lhe ia vir ao espírito que o factor cor pudesse ter contado quando em Portugal a bola era sua, o campo de futebol era seu, e lhe expulsavam do jogo, tão inepto era no jogo da bola. É que calçado ali era só ele e o resto era tudo pata-rapada a coçar frieira em canela assanhada, durante o inverno. E assim era o chefe, de qualquer maneira. Convocava bandos de meninos pobres para virem roubar fruta nas hortas do pai e o que se passava, tudo, era num quadro tão dominado pela condição do berço, tão medieval, tão hierarquizado por razões assim enquistadas no tempo, que os guardas viam e não intervinham, iam só queixar ao pai e o pai não ligava. Com ele tinham também sido assim, no seu tempo de infante. Nessa infância, mesmo, só talvez uma vez, porque a criada da professora da escola, que era mulata e escura, raridade total entre os pinhais, lhe afagou o crespo do cabelo, Severo se terá detido na percepção fugaz da sua diferença e ainda assim não era pela cor, era mais claro que muita gente moura, escura, que havia por ali, mas pelo cabelo, sim, mais duro que o dos outros, deu-se conta então. E foi a própria mulata da escola, a preta, como era dita, que o velho degredado lhe referiu para fazer-lhe entender como era que tinha sido a mãe menina que afinal não tinha tido.»

[Ruy Duarte de Carvalho, As Paisagens Propícias, Livros Cotovia, Março 2005;
escreveu torto em máquina direita]

18 de julho de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia



Às vezes, lá calha...

«Patricia Bettini é meia hippy, mas não quer ir para a cama comigo enquanto não terminarmos o liceu. Ela vê o fim do colégio como uma libertação. Imagina as coisas boas da vida todas juntas: a universidade, o sexo e, naturalmente, o fim de Pinochet. É como os católicos quando fazem jejum. Meteu-se-lhe na cabeça que, se aguentar estes seis meses, terá uma boa pontuação na prova de aptidão, entrará para Arquitectura e Pinochet será derrubado.»

«É bom trabalhar nas Obras» (94)

«O publicitário levantou-se vítima de uma súbita comichão que o fez coçar o pescoço. Correu a cortina e olhou para o cume nevado da cordilheira dos Andes.
- Que país curioso, que é o Chile! Apesar de eu ser o melhor publicitário, estou desempregado num país em que tudo é publicidade. Por ser bom publicitário, ameaçam-me, prendem-me, torturam-me, atiram-me de volta à rua marcado a fogo. Quando me oferecem um trabalho que não posso aceitar, é o melhor salário do mundo. Quando me oferecem uma campanha que deveria aceitar, o ordenado é ad honorém.
O senador avançou até à janela e pôs-lhe uma mão fraternal no ombro.
- O seu quadro privado joga muito bem com o quadro público. Uma ditadura feroz que agarrou o poder a tiro de canhão, bombardeamentos aéreos, torturas, prisão, terror, exílio, decide perpetuar-se no poder não pelas armas, mas com o gesto palaciano de submeter a continuidade do regime a um plebiscito. E como coroação da ironia, oferece aos opositores quinze minutos na televisão pela primeira vez em quinze anos de censura total, para convencermos o povo a votar contra o ditador.
- Vão legitimar-se internacionalmente como uma democracia.
- E a única maneira de evitar isso é fazer com que o tiro lhes saia pela culatra. Quer dizer, senhor Bettini, que o senhor faça com que ganhe o «Não». O que me diz?
O publicitário fechou os olhos e esfregou as pálpebras com força, como se quisesse apagar um pesadelo.
- Caro senador, não estou nada optimista quanto à vitória do «Não». Não creio que este país envenenado ideologicamente e aterrorizado se atreva a votar contra o «Sim», e não tenho sequer a mais pequena ideia na minha cabeça sobre qual poderia ser o lema da campanha.
Don Patricio bateu-lhe nas costas afectuosamente, uma vez mais e, levantando as suas fartas sobrancelhas, sorriu.
- Parece-me um valioso capital para começar. Aceita?
Por cima do ombro de don Patricio, Bettini viu estupefacto a mulher a levantar-lhe o dedo polegar aprovador, assomando-o pela porta entreaberta.
- Senador, eis aqui a tradução chilena para a palavra japonesa haraquiri: sim!
O político abraçou-o e pondo o chapéu saiu a correr de casa, talvez com receio de que Bettini se arrependesse.
Pela janela, o publicitário viu-o entrar no carro, e também pôde observar como, assim que arrancou, um automóvel seguia atrás dele.
Decidiu não se alarmar. Desde que não aparecesse publicamente com a sua campanha, não daria um desgosto ao ministro do Interior. Quanto à segurança de don Patricio, pelo menos até ao plebiscito devia estar a salvo. Se Pinochet agora se queria legitimar como um democrata, não podia mandar matar o chefe da oposição. Bom argumento, o de Magdalena. Mas para um país racional, não um onde impera a arbitrariedade.»

[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em tradução para a Teodolito;
legitimação]

Papiro do dia (102)

«Muito novo ainda, aos dezoito anos, o pai de SRO tinha sido mandado para Angola, a ver se o reeducavam, pela família que era a sua, gente mais ou menos instalada e bem relacionada, militares por um lado e proprietários de terras pelo outro, espécie de aliança entre uma burguesia urbana sedimentada e de província, afinada por sucessivas gerações fardadas, e uma discreta elite rural, confundida com remotos morgadios, diligente e zelosa, autoritária e de poucas palavras, patriarcal e paternalista no exercício de uma hegemonia territorial que se alargava a vizinhanças dilatadas de dependentes e tributários, rendeiros e foreiros, criados e assalariados, obrigados todos a tirar-lhes os barretes e a louvar-lhes o bom génio e o coração. Um tio coronel, colocado e muito bem num ministério em Lisboa, vogal nalguns conselhos de administração de companhias a actuar nas colónias, tinha aberto a via para o despachar com destino a Angola, a ver se ele aprendia a ser homem lá, no trabalho da tonga, no duro trabalho do café na mata.
O facto é que porém não passou nem muito tempo, menos de um ano, até que a família não viesse a dar-se conta de que forma o expediente estava afinal destinado a complicar ainda mais a situação. Uma carta mandada pelo director da companhia do Amboim àquele tio do pai de SRO que tinha provido a sua remessa para lá, informa que o rapaz, avesso aos privilégios que por nascimento e relação lhe cabiam e ao lugar que isso lhe podia ter assegurado nas tramas da vida social e mundana da sede da empresa, uma verdadeira cidade, maior que a capital administrativa e comercial da região, a Gabela, passava mas era o tempo todo na roça para onde o tinham mandado, sem se fazer notar nem dar sinal de si, e que agora ia ser preciso fazer alguma coisa. Há mais de dois meses que o jovem não ser de um bebé com que se tinha fechado em casa. Mandaram-lhe então voltar a Portugal. O jovem obedece mas, para escândalo geral e contra todas as expectativas e previsíveis conjecturas, em contexto colonial e afinal em qualquer outro, leva consigo o bebé e desembarca com o filho em Lisboa. A mãe, negrinha avulsa, tinha morrido em Angola, a dar à luz.»

[Ruy Duarte de Carvalho, As Paisagens Propícias, Livros Cotovia, Março 2005;
Gabela]

17 de julho de 2011

(Er)Rancias

16 de julho de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Aldous Huxley após ter experienciado estados psicadélicos, chegou à conclusão de que não é possível que o nosso cérebro seja a fonte destas experiências. Sugeriu que este funciona mais como uma válvula redutora que nos escuda de um input cósmico infinitamente maior.»

[trip] 

Nem sempre a lápis (188)

Tirando as cadeiras de lona tipo realizador, uma no quarto e esta em que trabalho – a minha sala não é um escritório, nem uma rulote –, só tenho duas cadeiras na cozinha. Raramente são usadas; quando mudo lâmpadas e a empregada lava os vidros, nem sempre. Tenho um sofá, onde engomo roupa esticada e deixo à mão para o caso de voltar a sair. Entretanto, arranjei a aviadora para aconchegar o canto de leitura na sala; a lareira. Recebi a casa com o mobiliário propício para quem vive sozinho. Sentir-me-ia muito só, se olhasse em volta e visse lugares vazios.

Papiro do dia (101)

«Há uma qualidade, uma espécie de livro, dizem, que afinal acaba por revelar o verdadeiro móbil que leva alguém a escrever e a querer publicar. Que autor, de facto, não terá sonhado escrever um livro que seja quem for o virá a abrir numa hora qualquer para encontrar aí uma cumplicidade que talvez nem sempre lhe tenha assistido ao longo do seu próprio destino, ou uma ou duas páginas que as possa sentir escritas não só para si mas também por si mesmo? É para escrever um dia um livro desses que vou registar agora, neste caderno, o que me trouxe aqui, ao que procedo porque estou aqui, e o que programo até sair daqui? E é para servir a isso que um diário assim é feito? Para exceder, no que lhe cabe, em extensão, em diversidade, em tudo, a intenção, o alvo, a função do que for em si mesmo e do que lhe vai cabendo? Os cinco, ou os seis, ou os que houver, sentidos alerta. O registo escrito, a tradução em escrita, na língua em que se escreva, dos registos experimentados e revelados pelos sentidos, as marcas das ideias e da substância, das massas, das formas, das sombras, do tempo, das margens do texto, das maneiras do tempo? Coisa então para constar, e depender, de estados de alma? E das interferências do concreto em curso, do que interfere no decurso do dia? E até dos sonhos? Porque os sonhos podem determinar a atmosfera de um dia inteiro, impor o retorno ou a erupção de emoções, e depois não há quem, seja ou não de escritas, deixe de dar importância aos sonhos que tem e ao que resolve a dormir. E também, como com os sonhos, o que se anda ler. Atravesso isto tudo a ruminar nas confirmações e nas combinações em que ando a tropeçar seja o que for que leia…»

[Ruy Duarte de Carvalho, As Paisagens Propícias; Livros Cotovia, Março 2005]

15 de julho de 2011

14 de julho de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Não há continuidade, sendo caso disso, que não exija algum sentido a haver. E não há narração que não siga, persiga, uma continuidade que a garanta.»

«É bom trabalhar nas Obras» (93)

«Na quinta-feira à tarde, Adrián Bettini recebeu uma carta. Não era o carteiro do bairro quem lha trazia, mas dois jovens funcionários com crachás da polícia debaixo da lapela, que tocaram levemente à campainha e sorriram à empregada quando lhe pediram para entregarem a carta pessoalmente ao dono da casa. O jovem Nico Santos, convidado na ocasião para tomar chá, viu a cena da sala de jantar, e a seguir deteve-se no olhar que Patricia Bettini lhe dirigiu quando o pai dela, com passo informal e resignado, avançou para a porta vestido com um desbotado casaco de lã.
Depois de assinar e anotar o número do seu bilhete de identidade no caderno que os despreocupados polícias lhe estenderam, para que assinasse a recepção do documento, rasgou o sobrescrito e ficou ao corrente do conteúdo.
Como se adivinhasse que a filha e Nico lhe iriam perguntar qual o assunto da missiva, antecipou-se-lhes e disse que era uma citação do ministro do Interior para comparecer amanhã, às dez, no edifício da sede do governo do general Pinochet.
Patricia Bettini não pôde evitar um sobressalto. O pai tinha estado duas vezes na cadeia e, uma vez, gorilas não identificados tinham-no raptado e agredido até o deixarem inconsciente.
O homem pediu à mulher, Magdalena, para se juntar a eles à mesa do chá e depois de mexer demoradamente a colher na chávena, confessou que hesitava entre apresentar-se no dia seguinte ao encontro com o ditador ou fazer agora mesmo uma mala com alguma roupa e esconder-se durante uns dias em casas de amigos.
Patricia recomendou-lhe que se escondesse.
A mulher recomendou-lhe que comparecesse ao encontro. Era melhor enfrentar as coisas do que passar a vida escondido.
Nico Santos pôs um bocado de goiaba na torrada e espalhou-a com a faca pela superfície. Era tal o silêncio que esse ínfimo movimento sobre o pão pareceu estridente.»

[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em tradução para a Teodolito;
crachá] 

Papiro do dia (100)

«Não lhe passou despercebida a forma como a mãe de Babette evita aproximar-se dele. Sim, os livros criam uma aliança entre nós, porém esta dissolve-se por outros factores; um banho ajudará a reduzir a distância. Poderemos sentar-nos juntos a ler As Tardes de Rebeca, com o livro apoiado metade no seu regaço, metade no meu. Lucio conduz o homem da mangueira até às traseiras da sua biblioteca e mostra-lhe o tonel. Encha-o, diz, às vezes uma pessoa tem de se lavar. O homem não diz nada; deita a água, fecha a torneira e começa a enrolar a mangueira. Há alguma novidade?, pergunta Lucio. Depois de uns instantes sem resposta, insiste: Continuaremos a vê-lo por aqui? O homem anui. Voltarei enquanto não chover, diz, entra no veículo e avança para a propriedade seguinte. Lucio molha a cara e o pescoço e entra na biblioteca. Precisa de um bom livro para passar a tarde, de preferência um que seja sobre as aventuras de um viajante ou sobre o rapaz que quer ser futebolista; um desses romances em que a morte seja algo remoto. Tira um livro ao acaso do caixote que tinha aberto para a mulher: Amargura. Basta-lhe ver na capa uma rapariga com um uniforme escolar para imaginar o conteúdo. Outro, diz para si, outro escritor que acaba a dar aulas numa qualquer universidade gringa e depois dá-lhe para relatar os seus namoros com as alunas. Em que pode esta história ser diferente? No facto de a rapariga se chamar Evelyn e o professo não ser de literatura mas de sociologia? De certeza que o homem tinha uma vida metódica até Evelyn aparecer no seu gabinete de saia curta para lhe fazer umas perguntas. A partir desse momento virá a mistura de culpa e delírios, longos parágrafos na primeira pessoa para justificar o comportamento do professor e obrigar assim o leitor a solidarizar-se com ele; sim ela tem o mundo à sua frente e ele uma família a sustentar, mas é um bom homem, ama-a com sinceridade, e ninguém tem o direito de se meter na sua vida privada ou de pôr em dúvida o seu talento nas aulas. Por isso é injusto que o tratem como se fosse um criminoso, como se não reparassem que é ele a vítima, porque mais tarde ou mais cedo, perante a insistência dos pais, Evelyn acabará por deixá-lo, e ele compreenderá que deu cabo do seu casamento e da sua carreira em troca de uma recordação para a velhice. Prepara-se para arremessar o livro para o inferno quando lhe vem à cabeça que deve ler a contracapa; talvez seja uma coisa original; talvez o autor desse aulas numa universidade latino-americana e então podia dar umas cambalhotas com qualquer aluna sem reparos morais ou profissionais. Não é o caso, as palavras do editor falam das pressões sociais que se impõem ao amor; de como até os amigos mais próximos se transformam numa inquisição face à ruptura com a forma habitual de viver. Senhor comendador, diz Lucio em voz alta, o que fazemos com este livro? Envia-o para a fogueira, responde a si próprio, e assim faz, e de uma só vez são condenadas setenta mil palavras.»

[David Toscana, O Último Leitor; trad. Luísa Diogo e Carlos Torres, Oficina do Livro / Col. Ovelha Negra, Fevereiro 2008]

12 de julho de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...


Nem sempre a lápis (187)

«Um livro que não perdesse nunca de vista nem o lugar de onde eu estava a sair nem o lugar para onde, nem que só de mim para mim, onde quer que estiver, estarei sempre a voltar.» Ruy Duarte de Carvalho pertence à estirpe, à tribo de escritores em andamento, exploradores da palavra e do território onde a escrevem, juntamente com Bruce Chatwin, Paul Theroux, Tiziano Terzani, enumerados pela ordem com que viajámos e retomamos momentâneos passeios. Traduções, réplicas de um original a que não tenho acesso. E é precisamente isso que me surpreende e cativa ao ler o escritor português africano, suponho que consideraria o meu tratamento correcto, a capacidade de reflectir paisagens verbais, a desmedida da escrita como sobreposição e sedimentação de territórios orais. Os papa-léguas clássicos – «essa onda de literatura imperialista, que depois Conrad põe na ordem» – não me interessam, falam de realidades desactualizadas; Terzani é um subtil lapidador de fósseis literários. Eles os dois e Chatwin e Theroux, os meus exploradores fizeram o trabalho; não me surpreende ler uma situação acabada de traduzir numa sala sem pestanas, luminosa. Em Perder Teorias, Raymond Roussel «escreveu alguns dos seus textos numa roulotte preta com as persianas corridas; uma roulotte com que se dedicou a dar voltas pelo mundo, seguramente só pelo seu mundo.» Em Desmedida crónicas do Brasil, o escritor português africano conta que Roussel escreveu esses textos «sem de África jamais ter passado da cidade do Cairo e ainda assim sem nunca ter saído da roulotte que mandou fabricar para dar dessa maneira a volta ao mundo…»

Papiro do dia (99)

«Nunca se encomendou a um carpinteiro a construção de bancos para a capela, e cada um dos fiéis, sobretudo as mulheres, habituou-se a levar a sua própria cadeira para as cerimónias, quer se tratasse de rezar o terço, de uma oração pela chuva ou da festa do padroeiro, na qual convidavam o padre de alguma aldeia vizinha para celebrar missa, a única do ano. A preguiça de levar as cadeiras outra vez para casa fez com que fossem ficando na capela; por isso se vê um mobiliário tão desigual: cadeiras de madeira, metálicas, de plástico ou vime, dobráveis, rígidas, almofadadas, de diversas cores ou descoradas. Quanto aos ícones religiosos, a capela também revela austeridade. Da parede direita prende a capa de Coplas Guadalupanas, o livro de Héctor Lanzagorta que uma beata furtou da secretária da sua biblioteca quando o visitou para lhe solicitar um donativo para a restauração da capela. Lucio não tentou recuperá-lo, pois o carimbo da censura estava destinado às Coplas e alegrava-se por ninguém se ter dado ao trabalho de o ler apercebendo-se de que se tratava de um livro sacrílego, coisa que a própria capa anuncia subtilmente, pois a figura de Juan Diego a adorar a Virgem revela uma protuberância entre as pernas. Na parede da esquerda, em cima de uma prateleira, junto a três velas apagadas e uma acesa, jaz o frasco de vidro com a carta do soldado Pedro Montes. Trata-se de um cilindro de vidro que não se estreita à altura da tampa; de facto, esta ultrapassa em pouco o tamanho da base. Lucio e Remigio caminham para lá. Sempre pensei que originariamente o frasco tinha pêssegos em calda, diz Lucio. O papel está colado ao vidro que funciona como uma montra, de tal modo que a carta dirigida a Evangelina pode ler-se do princípio ao fim. Uma vez tentei tirar a tampa, diz Lucio, mas foi impossível. Quero abri-la porque Pedro Montes escreveu fé sem acento e durante todos estes anos ninguém reparou nisso. Já é altura de corrigir o erro, diz e tira do bolso um marcador encarnado. Não contes com a minha ajuda, Remigio dá um passo atrás, é a relíquia mais querida de Icamole, não tens o direito de fazer isso. Lucio abana a cabeça, senta-se numa cadeira e toca na que está ao lado. É muito mais cómoda do que a da tua mãe. Remigio respira fundo e vai até lá. Não consegue lembrar-se da mãe sentada naquela cadeira ou em qualquer outro sítio. Quando pensa nela, é uma mulher em pé, de costas. Lucio fecha os olhos e fala sem emoção. Se tu fosses um romancista gringo, este seria o teu ponto de partida: o dia em que o meu pai quis induzir-me a praticar um acto pouco limpo; e terias páginas suficientes para seres cínico a meu respeito, para me exibir perante todos os teus leitores como um pobre-diabo, que apesar de tudo amas, porque tu, sim, és um homem bom. Remigio ergue-se e, submisso, enfia as mãos nos bolsos.»

[David Toscana, O Último Leitor; trad. Luísa Diogo e Carlos Torres, Oficina do Livro / Col. Ovelha Negra, Fevereiro 2008]

11 de julho de 2011

À atenção de alfarrabistas

Morgadinha dos Canaviais
(edição não podada) 
exposta à entrada de São Domingos de Rana, do lado direito

10 de julho de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Encaro e enfrento o presente dando notícia de um tempo que inscreve o meu, ínfima parte, numa porção imensa de passado.»

Nem sempre a lápis (186)

Fui à Cromotipo com o editor autenticar as provas do livro; a medida acertada para calarmos o «depois não digam». O Miguel Martins foi à vida dele e entrei num restaurante na Passos Manuel, surpreendido por ver anunciado, entre especialidades árabes, carvão e misturas de tabaco para cachimbo de água: «Há shisha», li tudo seguido. Cumprimentei o paquistanês e o egípcio, soube depois, e desci as escadas para entrar num cenário de mil e um pesadelos adolescentes, espalhados pelos tapetes e pufes e almofadas e mesas baixas. Não cheguei à Índia, nem me aproximei do Cairo; bebi um tea mint com bonomia de figurante em reserva natural, a enrolar um charro muito apreciado, à distância. Saí indeciso quanto ao lado do corpo a expor ao semáforo amarelo da tarde, extensivo a vários distritos ultra-violeta. Visto-me por intuição; optei pelo metro mais perto na Almirante Reis. Foi naquela mesa da Portugália, encostada à vidraça da fermentação, que escrevi um cut-up, na toalha; parei e conferi o plano com a Ourivesaria. Ajeitei-me no Elevador da Glória, sem stress de jornalista em fecho de página, a decifrar afazeres, origens, a alegria estampada nas câmaras e máquinas e telemóveis, e nos rostos também, no momento em que os elevadores se cruzaram. Lisboa está cada vez mais linda; para quem lá não vive. Na segunda-feira, contraí uma leitura incurável: Ruy Duarte de Carvalho. Tenho de pedir à Nico para mandar Fui Lá Visitar Pastores e Os Papéis do Inglês, que não li, contrariar a ligeireza com que duplico títulos. Apanhei o livro e encaminhei-me para a brisa, de folga, no Café no Chiado. Enquanto esperava, espero, embrenhei-me pel’As Paisagens Propícias. E à medida que lia e fazia pausas para beber água, enrolar um cigarro, ver passar o 28, foi crescendo em mim uma vergonha indescritível; pelos vexames a Saramago, pelo autismo onde exilaram Duarte de Carvalho. Jantei uns filetes no Tagarro, servidos com a intimidade do Diário de Lisboa; tiragem abandonada. Tive o cuidado de não ocupar o banco da Luiza e do Manuel João; sentei-me nos degraus, repugnantes, do plinto do Camões a ver uma nesga de rio, à espera. Gosto de livrarias portas abertas pela noite fora e malta a ler; os poetas não se misturam, dão recitais. Enquanto esperava por um voo rasante na esplanada da Benard, os Armazéns do Chiado começaram a legendar a guarnição de pinheiros mansos no Castelo. Depois, nem isso; Lisboa foi tomada ao dia.

Papiro do dia (98)

«Fui para a estação de comboios. Havia uma placa sobre as duas bilheteiras. Dizia: “É muito mais barato ir de comboio!” Sobre um dos guichés estava escrito “Para o Pacífico”, sobre o outro “Para o Atlântico”.
Paguei um dólar e comprei o bilhete para Zacapa, que ficava a meio da linha do Atlântico. O comboio só partia às sete horas da manhã seguinte, de forma que fui para o meu último passeio. Levou-me à Zona Quatro e a uma igreja que eu sinceramente não esperava encontrar na Guatemala, ou neste hemisfério. Dizer que a Capela de Yurrita reproduz o estilo russo ortodoxo é não dizer nada, ainda que tenha cúpulas em forma de cebola e ícones. É um castelo maluco. Nas suas paredes de cimento tem pintados rectângulos cor-de-rosa que imitam tijolo, e na sua torre principal tem quatro gigantescos cones de gelado; debaixo da torre, há catorze pilares decorados com reclames de barbearia. Tem varandas, terraços, fileiras de botões de cimento no telhado casteleiro, quatro relógios atrasados, carrancas e um cão com o dobro do tamanho agarrado a um dos cones. Na fachada estão os quatro evangelistas e, a espreitar das janelas, os doze apóstolos, três Cristos e uma águia de duas cabeças. Era vermelha e negra, metal ferrugento e azulejos. As portas de carvalho são trabalhadas, a da esquerda mostra ruínas guatemaltecas, o da direita túmulos guatemaltecos. E sobre a porta lê-se num pergaminho: “Capela de Nossa Senhora das Angústias”, com uma dedicatória a Don Pedro de Alvarado y Mesia. No brasão de Don Pedro aparece um conquistador batendo um exército em retirada, e sob ele há três vulcões, um deles em erupção.
Lá dentro, três velhotas nos bancos da frente cantavam um hino de louvor a Maria. “Mariiiiiaaa”, cantavam elas, com paixão mas desafinadas, “Mariiiiiaaa”. Na parte de trás da igreja havia quatro índias e uma senhora com um cão. Esta gente devota estava subjugada – quem não estaria – pelo estilo mourisco da galeria do coro, pela ornamentação do altar, o vasto Cristo supino coberto por uma cortina de renda e assistido por uma Maria vestida de escuro, com sete punhais de prata cravados no peito. Todas as estátuas estavam vestidas, e muitos dos ramos de flores nos pesados jarrões dourados eram verdadeiros. As paredes estavam cobertas com frescos turvos e pedra trabalhada – árvores, velas, raios de sol, chamas. Próximo do púlpito, havia um baixo-relevo do Sermão da Montanha. Até o cão estava em silêncio. De alguma maneira, esta igreja de opulência maníaca tinha conseguido sobreviver a cem anos de terramotos.»

[Paul Theroux, O Velho Expresso da Patagónia; trad. Nuno Guerreiro, Quetzal, Abril 2009;