31 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

... acompanhado de um bom solo de café

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A religião não faz parte dos meus interesses. Estou a referir-me a uma maneira de falar que se enquadra um pouco na frivolidade dos salões.»

«É bom trabalhar nas Obras» (46)

«Às vezes, tinha a sensação, nos seus sonhos, de que uma certa força supra-pessoal interferia activamente, de forma criativa e continha a direcção de um desígnio secreto e, por isso, tinha conseguido, nos últimos meses, construir os objectos do seu pensamento como realidades e não apenas como conceitos. Produzir directamente o que pensava e não pensar simples ideias, mas objectos reais.
Por exemplo, alguns dos objectos que tinha desenhado e construído nos últimos meses. Antes, não existia nada igual, não havia um modelo prévio, nada para copiar: era a produção precisa de objectos pensados que não existiam previamente. Diferença absoluta com o campo, onde tudo existe naturalmente, onde os produtos não são produtos, mas uma réplica natural de objectos anteriores que se reproduzem iguais, uma e outra vez. Um campo de trigo é um campo de trigo. Não há nada a fazer, excepto arar um pouco, rezar para que não chova ou para que chova, porque a terra ocupa-se de fazer o que é preciso. Com as vacas, é o mesmo: andam por aí, pastam, às vezes é preciso desparasitá-las, fazer-lhes um corte se estão engasgadas, tocá-las até aos currais. E é tudo. As máquinas, em contrapartida, eram instrumentos muito delicados; servem para realizar novos objectos inesperados, cada vez mais complexos. Pensava que, nos seus sonhos, podia encontrar as indicações necessárias para continuar com a empresa. Avançava às cegas, procurava a configuração de um plano preciso na série contínua dos seus materiais oníricos, como chamava aos sonhos o Mestre Suíço. Agradava-lhe a ideia de que eram materiais, quer dizer, que se pudesse trabalhar com eles, como quem trabalha a pedra ou o cromo.»
[Ricardo Piglia, Alvo Nocturno; em tradução para a Teorema;

À mão de ler (101)


«O salteador chegou, então, junto a uma velha casa já desabitada, ou melhor, junto a uma casa que, por ser muito velha, havia sido demolida e da qual já nada restava, uma vez que deixara de se notar que existira ali uma casa. Para ser mais conciso: portanto, ele chegou a um local onde outrora existira uma casa. Estes rodeios que estou para aqui a fazer têm como objectivo preencher tempo, visto que tenho de dar um certo volume ao meu livro, para que não me desprezem mais profundamente do que o fazem já. Isto não pode continuar assim. Uns senhores que há para aí, uns pândegos, chamam-me idiota, porque os romances não me saem a esmo das algibeiras.»
[Robert Walser, O Salteador; trad. Leopoldina Almeida, Relógio d’Água, Janeiro de 2003;

29 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Ele nunca se juntava a ninguém.
Era disso, sobretudo, que o acusavam.»
[exacto]

Nem sempre a lápis (99)

«Os gaúchos não comiam churrasco… – disse, de repente, Croce. – Pois se eles não tinham dentes… Imagina-os, sempre a cavalo, a fumar tabaco preto, a comer bolachas, a seguir ficavam sem dentes e já não conseguiam mastigar a carne… Só comiam língua de vaca… e, às vezes, nem isso.» Graças à palmada nas costas que Piglia me deu para me animar, a meio da tradução de Alvo Nocturno, desta vez pondero, seriamente, ir até ao Sul da província de Buenos Aires; devolver memórias que me emprestaram na infância, sem o meu avô paterno saber. Não irei motivado nem pela Capital, nem com a mira apontada para a Patagónia; é possível que tenha lido demais sobre a cidade e a extensão literária desse destino. A ideia de apanhar um comboio, um autocarro, e apear-me na primeira terra sugerida pelo mapa, que não conheço, tornou-se tão recorrente como ir à procura de Vila-Matas, no bairro tornado familiar pelos livros que lhe traduzi e onde já não vive. Mas, se a viagem de avião deve ser um suplício suspenso sobre a incerteza da mudança de hemisfério, não me parece que a vida em Barcelona ainda permita pausadas deambulações por um bairro imaginado; assistir à primeira sessão num cinema que não existe; sentar-me à janela de um café com os olhos postos na esquina de Carrer Verdi com Travessera de Dalt, entregue ao mal da espera. Chegado o momento oportuno, suponho que acabarei por me retirar para Essaouira - a antiga Mogador, em África - pela estrada litoral a partir de Tânger. Fora de época e a conduzir com o ombro de fora, sem relógio; tenho um mês para escrever, e é tudo.

À mão de ler (100)

«“Tu és um perseguido”, disse determinada pessoa de certa categoria ao mais inocente de todos os participantes nas actividades e tarefas da nossa civilização. Este atentou apenas nessa palavra específica, palavra que lhe soou como uma advertência saída das profundezas. “Não te preocupes”, foi apenas o que ele respondeu, “já sei disso há muito tempo.”»
[Robert Walser, O Salteador; trad. Leopoldina Almeida, Relógio d’Água, Janeiro de 2003;

28 de outubro de 2010

Opções

... a leitura, sempre
o beija-mão, e então da brigada do reumático, nunca

27 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

eu dou-te o tenrinho, fiufiu...

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Uma tarde, quando Croce apareceu na rua e começou a distribuir cartas à saída da igreja, internaram-no num manicómio. Estas terras podem não ter escola, mas têm sempre um manicómio, dizia Croce.»

Nem sempre a lápis (98)

Ontem, não conseguia ler, mas levantei-me e peguei num alicate e arranquei o dente que se recusou a deitá-lo ao mar da muralha de Asilah, em Junho. Era o último sobrevivente do maxilar superior; julgo aproximar-me, a passos largos, da fisionomia de Cesariny, de Cossery. Desdentado, mas não se julgue que faço a coisa por menos. Esta manhã, de casaco beckettiano e um pouco nervoso com a esplanada composta, fiz o teste do pequeno-almoço sem o trapezista a importunar a prótese (partida) e posso afirmar que correu bem; exceptuando um certo vazio no lado esquerdo da boca a exigir correcção ao sorriso. Curiosamente, o lado que arreganhava quando fumava cachimbo; expressão encerrada. As pequenas, qualquer coisa terão notado; já cortei o cabelo há dois dias e a torrada hoje, era maiúscula. Ainda admiti a hipótese do dente – um canino agressivo, primário, crepuscular – cair até a Nico ir a Amristar; não para levá-lo como amuleto e carregar de energias, mas para atirá-lo ao Ganges, aos contrafortes de Caxemira. Era a minha oportunidade, física, de participar na viagem. Lembrei-me e ainda disse, a sorrir; não se proporcionou, não me ocorreu o providencial alicate, não calhou. Espero muito mais que se lembre de me trazer uma Shiva, um palmo de altura chega, dentro da mochila cheia de especiarias vividas; os únicos condimentos que ainda a não temperaram. Vou-me surpreender se não se confirmar; mas quase apostava que vai chegar sem o fecho de encaixe, afivelado a uma pequena correia perfurada e inútil, que perdi e voltei a achar não sei quantas vezes, na praia. Teria sido muito mais prático travar o fecho com umas marteladas e contribuir para o bom relacionamento da correia com a fivela; falta de lembrança. Ou muito me engano ou tomei noção das ferramentas; do desenrasca, bricolage é muito doméstico e de fim-de-semana, fato de treino e pijama. Em todo o caso, como tenho de ir a Lisboa – aviar-me à Pó dos Livros, se conseguir sair de lá sem me assustar com Bibliotecas Cheias de Fantasmas –, aproveito o pretexto e compro um fecho de reserva, para sondar as lojas da Baixa, verificar se o cheiro confirma o nome da rua dos Correeiros, enquanto faço horas até ir ao Maxime – primeiro as damas, e então Damas de Espadas – encontrar-me com o Mário Zambujal. Já não nos vemos há uns vinte anos, seguramente; e, desta vez (aposto-os), poderemos falar de tudo menos de Pão Com Manteiga; a idade, o colesterol, não recomendam.

À mão de ler (99)

«Existem entre nós, infelizmente, demasiadas pessoas que querem armar-se em professores. Será que no nosso povo, aliás com tanto valor noutras coisas, se observa uma mania de pretender pregar moral desnecessariamente? Se assim fosse, teríamos de deixar pender a cabeça até ao chão, numa total impotência perante tal peculiaridade, posto que, com essa pregação moral, prejudicial e injusta, podem causar-se muitos males e muitos, decerto, terão já sido provocados e muitas intrigas terão já sido urdidas. Cada povo, porém, tem a sua maneira própria de ser. Temos de nos conformar com isso e não há outro remédio. Se eu digo a alguém: “És um idiota!” é mais do que certo que ele, logo a seguir, vai fazer uma idiotice, mais certo do que dois e dois serem quatro. Poderei eu, por exemplo, amestrar um animal, se não vencer a minha convicção de que um animal não passa de um ser estúpido? Ora, o amestramento consiste exactamente em me esforçar com todo o empenho na formação desse animal estúpido e na minha própria formação. Sempre que alguém que se cultivou pretende trabalhar na formação de um ser inculto está, ao mesmo tempo, a contribuir para um aperfeiçoamento de si próprio.»
[Robert Walser, O Salteador; trad. Leopoldina Almeida, Relógio d’Água, Janeiro de 2003]

25 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

Então, até mais logo, na Gulbenkian

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Creio poder explicar-me melhor desta maneira: ele estimava-a, mas nada nela o atraía. O salteador, afinal, não tinha a mínima culpa disso, não acham?»

Nem sempre a lápis (97)

À medida que me aproximo do fecho do segundo volume do meu livro de actas, consegui, sem esforço, que o primeiro emagrecesse mais onze páginas; está obeso de deslumbramento.

À mão de ler (98)

«Estamos a contar isto porque, de momento, não nos vem à mente nada mais significativo. Uma pena prefere sempre escrever algo de inadmissível a parar de escrever, nem que seja por um momento. Talvez seja isto um dos segredos da escrita de grande qualidade, isto é, em tudo o que se escreve tem de haver algo de impulsivo. Mesmo que não percebas bem o que estamos a dizer, isso não tem a mínima importância para o caso.»
[Robert Walser, O Salteador; trad. Leopoldina Almeida, Relógio d’Água, Janeiro de 2003;

23 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

... acontece, adeus audiências

Às vezes, lá calha...

«A nossa cidade assemelha-se a uma grande quinta em que as várias partes estão perfeitamente ligadas, formando um todo.»
[pube enganadera]

Nem sempre a lápis (96)

Abençoadas circunstâncias que me permitiram voltar a fazer férias em Setembro; estava bem arranjado, com a precipitação das folhas, o virar de página. Enquanto Piglia continua a afinar a mira do holofote para que eu acerte em Alvo Noctuno e aguardo a leitura da revisão de Dublinesca, abri o e-mail à espera da reportagem privada da viagem à Índia, mas esperava-me esta comunicação (póstuma) de Francisco Casavella; Um Anão Espanhol Suicida-se em Las Vegas. Não conhecia o caso, como diria o comissário Croce; deleguei no Google as apresentações, anotadas pelo escriturário Saldías. Lidas no contexto íntimo do leito, não estou de cama, cheira-me que só tenho Vantagens Em Viajar de Comboio, até Madrid. Entretanto, massacrados três Cormac sem tirar fora (eu não me convenço de que já não tenho idade para certas coisas), ao arrumar O Guarda do Pomar, saltou-me à mão O Salteador. Deliro, é o termo, com estas coincidências; deve ser por isso que vou mantendo as estantes como um baú encontrado num sétimo andar e não num sótão, como uma livraria vagamente conhecida com preços muito acessíveis. Acreditem que dá outra alegria, dá outra animação à casa. «Em que camisa de varas estou eu aqui a meter-me! Mais tarde, voltarei seguramente a este assunto» (Robert Walser). Quanto ao tal fulano, foi comprado há uns anos na fnac da Guia, admito que aconselhado pela tradução de O Mal de Montano, de Doutor Pasavento, a fazer fé na edição de Janeiro de 2003; acabei por nunca o ler, permanecia em prisão preventiva. Se der ouvidos às provocações de certos blogues, esta semana vou a Lisboa desgraçar-me com o humilde pretexto de que é só para fazer o levantamento d'A Costa das Sirtes, traduzida por Tamen; não creio que haja outra. Aproveito a oportunidade para fazer a triagem – de memória, seria uma indelicadeza para com o Jaime – entre a edição brasileira de Haxixe e Sobre o Haxixe e Outras Drogas, que João Barrento acaba de traduzir para a Assírio & Alvim. Acordos ortográficos à parte, suspeito que são dois livros diferentes; como não sei alemão, qual será o de Walter Benjamin? Agora a sério; até levantar Fevereiro, não me digam nada e prometo a mim mesmo não ir a Madrid. Só mais tarde, de comboio; voltarei, seguramente, a este assunto.

À mão de ler (97)

«A atitude de completa indiferença dos peões na rua irrita os automobilistas. Deixem-me ainda que lhes diga rapidamente isto: tenho nele um representante que não me obedece. Ele que passe muito bem, ele mais a sua atitude de arrogância. Vou, soberanamente, votá-lo ao esquecimento. (…) Muitas pessoas que se mostram arrogantes sofrem de falta de coragem, muitas que são orgulhosas sofrem de falta de orgulho e muitas, ainda, que são fracas, não possuem força de ânimo para reconhecer a sua fraqueza. Muitas vezes os fracos comportam-se como fortes, os despeitados como satisfeitos, os humilhados como orgulhosos, os vaidosos como modestos; é o que acontece comigo, por exemplo, que nunca me vejo ao espelho, e isso apenas por vaidade, posto que o espelho é para mim insolente e malcriado.»
[Robert Walser, O Salteador; trad. Leopoldina Almeida, Relógio d’Água, Janeiro de 2003;

22 de outubro de 2010

Como quem não quer a coisa

... começo a ler esta
enquanto aguardo a crónica de Amristar

21 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«É bom trabalhar nas Obras» (45)

«Os dois tinham herdado do seu avô Bruno a desconfiança pelo campo e o gosto pelas máquinas e, pouco depois, começaram a trabalhar na sua empresa. O meu avô – disse Sofía – quando se retirou do caminho-de-ferro, foi representante de Massey Harrys e eles aumentaram a oficina nas traseiras da sua casa – na calle Mitra – e foi assim que tudo começou. Já te devem ter contado a cena do galinheiro do vizinho…
- Sim – disse Renzi –, soldavam a autogéneo à noite e as galinhas do vizinho olhavam a luz o tempo todo, deslumbradas, enlouquecidas e bêbedas, com os olhos como os dos papagaios, saltavam a cacarejar, alucinadas com a brancura da soldadura, como se um sol eléctrico tivesse surgido de noite…
- Drogadas – disse ela. – Cloc-cloc. As galinhas pedradas com o resplendor, e quando levantaram um taipal de chapa para isolar o brilho do autogéneo, as galinhas desesperavam e subiam a rede do galinheiro à procura dessa brancura, tinham síndroma de abstinência… Eu recordo-me de também ter visto, quando era pequena, essa luz nítida como um cristal. Íamos sempre à oficina. Vivíamos entre as máquinas, Ada e eu. Os meus irmãos fizeram-nos os brinquedos mais extraordinários que alguma rapariga alguma vez teve. Bonecas que andavam sozinhas, que dançavam, bonecas que pareciam vivas, com engrenagens e arames ligadas a um magnetofone, falavam na gíria de cá, as bonecas, faziam-no com pinta de coristas para enfurecer a minha mãe; uma vez, fizeram-me uma Mulher Maravilha que voava, dava voltas pelo pátio todo, como um pássaro, e eu segurava-a com um fio de pesca, fazia-a girar no ar, vermelha e branca, com as estrelas e as listas, tão bela, não conseguia respirar com a emoção. Nós adorávamos os meus irmãos, andávamos sempre atrás deles, começaram a levar-nos aos bailes (a minha irmã com o Lucio e eu com Luca), as duas com saltos e os lábios pintados, a fazer de conta que éramos as bailarinas da terra, com os seus namorados, íamos aos bailes das redondezas, aos clubes dos bairros, à pista preparada no campo da pelota, com as lampadazinhas às cores e a orquestra que tocava música tropical no estrado de madeira, até que a minha mãe interveio e acabou-se a farra, ou pelo menos, essa farra.»
[Ricardo Piglia, Alvo Nocturno; em tradução para a Teorema;

À mão de ler (96)

«Ontem, colhi uma vergastinha. Imaginem: um autor passeia-se numa paisagem dominical, colhe uma vergastinha, acha que faz uma belíssima figura com ela na mão, come uma sanduíche de presunto e, enquanto come a sanduíche de presunto, presume que a empregada de mesa – que, de tão maravilhosamente esbelta, parece mesmo uma vergastinha – é a pessoa certa para ele dirigir a pergunta: “A menina quer dar-me uma pancadinha na mão com a minha vergastinha?” Confusa, ela recua perante o interpelante. Nunca, até então, lhe tinham pedido uma coisa daquelas. Fui para a cidade e toquei com a minha vergasta num estudante. Havia mais estudantes num café, sentados à sua mesa redonda de tertúlia. Aquele em que eu tocara olhou para mim como se olhasse para uma alma do outro mundo e todos os outros estudantes olharam para mim da mesma maneira. Era como se, subitamente, tivessem percebido que nunca, até então, haviam compreendido muita, muita coisa em geral. O que estou eu para aqui a dizer! Seja como for, todos eles, por razões de boa educação, fingiram que estavam muito espantados e o herói do meu romance, ou aquele que ainda o há-de ser, levanta a toalha de mesa até tapar a boca e põe-se a pensar em qualquer coisa. Ele tinha o hábito de pensar sempre em qualquer coisa, de cismar, por assim dizer, conquanto ninguém lhe desse nada por isso. De um tio, que viveu sempre em Batávia, recebeu ele uma certa importância. (…) Graças a essa ajuda, ele pôde continuar de algum modo a viver a sua existência peculiar, e é com base nessa existência, não de todos os dias e, contudo, quotidiana, que eu estou aqui a escrever um livro discreto, a partir do qual não se pode aprender absolutamente nada. Há, de facto, pessoas que pretendem retirar dos livros pontos de referência para a sua vida. Lamento muito ter de dizer aos meus leitores que não é para esse género de pessoas muito respeitáveis que eu escrevo.»
[Robert Walser, O Salteador; trad. Leopoldina Almeida, Relógio d’Água, Janeiro de 2003;

19 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

... e o e-mail,

Às vezes, lá calha...

«A incerteza não é um conhecimento,
pensou,
é a condição do desconhecimento.»

Nem sempre a lápis (95)

«Carnaxide está na moda». Quem o afirma é o convicto pano de fundo do palco montado no Centro Cívico; fora de moda, não ouvi a chamada a tempo. Admiti que a extensão irreconhecível do número confirmasse que tinhas chegado à Índia. Passei (incólume) pela livraria, fui às anonas à frutaria e voltei para casa; a chamada não atendida no fixo franqueara-te as portas do Oriente. Abro o e-mail, como o faço várias vezes por dia:
«Cheguei hoje, pelas 6h30, a Delhi, estourada mas ávida por sentir a cidade. Vínhamos do aeroporto de táxi, houve uma cena que me fez lembrar quando fomos a Marrocos e o polícia enfiou dois estalos num homem na fronteira, em Ceuta.
O rickshaw onde vínhamos ia a pisar os traços contínuos todos, tudo do pior, e uns polícias mandaram-no parar. Começaram todos aos gritos; entretanto, como aquilo não acabava, saímos do carro e fui dizer a um dos polícias que já tínhamos pago a viagem e que tínhamos de ir para o hotel... [Gramava ter visto uma algarvia a mandar vir com um chui indiano.]
Tentei telefonar-te, mas como não atendeste, e ainda bem, porque no hotel tenho computador... Apesar de não estar sempre disponível, é melhor do que nada.»
Tanto. Ontem, um e-mail de Saïd Benabdelouahed apontava a tradução de Al-Khaïma para árabe, durante o próximo ano; hoje, sento-me na aviadora a comer uma anona com sabor a outro idioma.
[En direction d'Amritsar, Penjab]

«É bom trabalhar nas Obras» (44)

«Agradou-lhe como contava aquela história, era evidente que a tinha contado tantas vezes, que a tinha ido polindo até a deixar lisa como um canto arredondado. Claro que se podia melhorar sempre uma história, pensou Renzi distraído, enquanto Bravo tinha passado a outra coisa e retomava as conjecturas sobre Durán. Pensava que Tony se tinha aproximado das irmãs Belladona só para ter acesso ao Clube Social. Com elas podia entrar, sozinho não teriam deixado.

- Quem me dera ter avisado o Tony que não viesse para cá – disse Bravo. Usa o mais que perfeito do substantivo, pensou Renzi, tão cansado que lhe surgiam esse tipo de ideias típicas da época em que andava na Faculdade e se punha a analisar as formas gramaticais e a conjugação dos verbos. Às vezes, não entendia o que lhe estavam a dizer porque se distraía a analisar a estrutura sintáctica como se fosse um filólogo embalado pelos usos tergiversados da linguagem. Agora, sucedia-lhe cada vez menos, mas quando estava com uma mulher, e lhe agradava o modo como falava, levava-a para a cama pelo entusiasmo que lhe provocava vê-la usar o pretérito perfeito do indicativo, como se a presença do passado no presente justificasse qualquer paixão. Neste caso, tratava-se só do cansaço e da estranheza que lhe causava estar nesta povoação perdida, e quando voltou a ouvir o barulho do bar deu-se conta de que Bravo lhe estava a contar a história da família Belladona, uma história igual a qualquer história de uma família argentina do campo, mas mais intensa e mais cruel.»

[Ricardo Piglia, Alvo Nocturno; em tradução para a Teorema;

picanha]

18 de outubro de 2010

Por mor das minhas habilidades...

... alguma terei feito que me impede o acesso ao hotmail, há cerca de duas semanas. Como chegam cá os comentários, para mim é um mistério. Serve a presente, para me penitenciar perante eventuais ofendidos pela involuntária indelicadeza da falta de resposta. Enquanto aguardo a normalização do serviço, aproveito também a oportunidade (pública) para esclarecer as interlocutoras do MSN que não bati a asa nem bloqueei ninguém; são boatos, são ciumeiras.
Grato pela vossa compreensão,
fiufiu...

17 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Os filhos expiam a culpa dos pais e a minha é ter os olhos rasgados e a pele amarela – respondeu. – O senhor vai condenar-me por isso, por ser o mais estrangeiro de todos os estrangeiros nesta terra de estrangeiros.»

Nem sempre a lápis (94)

Já me tinha chamado a atenção umas duas vezes, entre as diferentes tribos que coabitamos a reserva do Centro Cívico. Surgiu em passo acelerado, a puxar ou puxado por um cão preso a uma corda; um «nagalho», ouço ouvir-me. Vi-o sempre de costas, com a cabeça rematada por uma boina espanhola; fugido de uma memória qualquer. Por isso, o cão, que o guia de novo ao passado.

«É bom trabalhar nas Obras» (43)

 «O meu avô, o coronel, para começar, vangloriava-se porque era do Norte, de Piemonte, só visto para crer, olhava com desprezo os italianos do Sul, que, por sua vez, olhavam com desprezo os polacos e os russos.
O coronel tinha nascido em Pinerolo, próximo de Turim, em 1875, mas não sabia nada dos seus pais nem dos pais dos seus pais e, inclusive, uma versão dizia que os seus documentos eram falsos e que o seu verdadeiro nome era Expósito e que Belladona era a palavra que o médico tinha pronunciado quando a mãe morreu num hospital de Turim, com ele nos braços. «Belladona, belladona!», tinha dito o homem como se fosse um requiem. E com esse nome o registaram. O pequeno Belladona. Era filho de si mesmo; o primeiro homem sem pai, na família. Chamaram-lhe Bruno porque era morenaço, parecia africano. Ninguém sabe como chegou, aos dez anos, com uma mala, foi parar ao internato para órfãos da Companhia de Jesus em Bernasconi, província de Buenos Aires. Inteligente, apaixonado, fez-se seminarista e começou a viver como um asceta, dedicado ao estudo e à oração. Era capaz de jejuar e de permanecer em silêncio dias inteiros e, às vezes, o sacristão surpreendia-o na capela a rezar sozinho de noite e ajoelhava-se junto dele como se estivesse com um santo. Foi sempre um fanático, um possuído, um obstinado. A sua descoberta das ciências naturais nas aulas de física e de botânica e as suas leituras na biblioteca do convento das remotas obras proibidas da tradição darwiniana distraíram-no da teologia e afastaram-no – provisoriamente – de Deus, segundo ele mesmo contava.
Uma tarde, apresentou-se diante do seu confessor e expressou o seu desejo de abandonar o seminário e ingressar na Faculdade de Ciências Exactas e Naturais. Um sacerdote podia ser engenheiro? Só de almas, responderam-lhe, e recusaram-lhe a autorização.»
[Ricardo Piglia, Alvo Nocturno; em trad. para a Teorema;

15 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

Só os artolas da NASA desconhecem:

Há vida em Marta

Porque a Net fornece um novo dia

o outro deve continuar perdido na hemeroteca

Às vezes, lá calha...

«Durante o dia há sempre alguém que entra no eléctrico como se nos conhecêssemos, escreve Lola no seu caderno. Mas à noite, a mesma pessoa entra como se andasse à minha procura.»

Nem sempre a lápis (93)

Por algum motivo, ainda não assimilado, decidi levantar-me e antecipar o que, há algum tempo, me tem vindo a apetecer fazer de manhã, durante o período de adaptação que se segue ao conforto do pequeno-almoço, ao ar livre. Abri ao acaso um dos potes de Prince Albert – onde conservo diferentes misturas de tabaco de cachimbo, humidificadas com casca de maçã – e carreguei um sarrafinho italiano; um bulldog Giovanni da Varese, com a gravação da marca já quase imperceptível na ligação do fornilho à boquilha, de plástico. Exemplar baratucho, não me desiludiu o equilíbrio do formato, encomendei-o no tempo em que utilizava a Net para me intoxicar quase só com informação sobre cachimbos, artesãos de peças únicas, tobacconists e produtores caseiros de misturas avulsas de tabaco; acabaria por me envolver como provador de umas quantas marcas, fornecidas a pedido da revista Pipe Magazine. Há um ano e tal, em Porto Covo esforcei-me por retomar um hábito perdido no Algarve, que me terá levado os dentes por arrasto. Ocupado com a ociosidade nas esplanadas e na praia, era quando o cachimbo me sabia melhor, manifestado por um ouriço de fósforos apagados na areia. Admito que um ataque de tosse, que me impediu de adormecer embalado pela tarefa ao acordar, possa estar na origem do travo doce e esquecido que conservo na boca, a ouvir a chuva com a garganta limpa. Bem vistas as coisas, qualquer argumento é bom e é válido, para não me prender com o que pressinto.

À mão de ler (95)

«O Sol de certa forma intitula a natureza. Eis de que forma.Durante a noite aproxima-se dela por baixo. Depois aparece no horizonte do texto, incorporando-se por instantes na sua primeira linha, da qual aliás logo se desliga. E há aí um momento sangrento.Erguendo-se pouco a pouco, atinge então no zénite a situação exacta de título, e tudo então fica justo, tudo se refere a ele segundo raios iguais em intensidade e em extensão.Mas a partir daí, ele declina pouco a pouco, em direcção ao ângulo inferior direito da página, e quando transpõe a última linha, para voltar a mergulhar na obscuridade e no silêncio, há um novo momento sangrento.Rapidamente então a sombra cresce pelo texto que em breve deixa de ser legível.»
[Francis Ponge, Alguns Poemas; selec., introd. e trad. Manuel Gusmão, Livros Cotovia, Lisboa 1996;

13 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

«O próximo concerto é em finais de Janeiro na Gulbenkian. Os bilhetes estão esgotados há muito tempo. Vai a Gulbenkian encher-se de empalados para o ouvir. Os empalados, para quem não sabe, são aquelas pessoas que tem um pau enfiado pelo cu acima e se movimentam, muito sérios, muito direitos, digníssimos, sorrindo aqui e ali, pelos corredores dos teatros e auditórios. Em todo caso, se algum empalado - impossibilitado de ir ao concerto ou apertadinho com a crise instalada - quiser, mediante preço a acordar, dispensar-me um bilhete, eu aceito.»

Às vezes, lá calha...

«O futuro é raro,
e cada dia que vem
não é um dia que começa.»

Nem sempre a lápis (92)

O país tornou-se ensurdecedor; não é só uma questão de idade, nem de atitude, acalmem-se os possessos. Vocifera-se e opina-se, sem que nada, mas absolutamente nada justifique a hidrorreia democrática; nem o recurso, irónico, à arcaica expressão «conquistas de Abril», é valeta que lhe comporte o caudal. E sorrio, mouco; é que há muito que caguei no presente, como acabo de fazer.

À mão de ler (94)

«As cartas que realmente me animam durante alguns dias são os "isótopos" que chegam por pombo-correio – de ranzinzas, excêntricos, chalados e malucos puros e simples. Que esplêndido discernimento teríamos sobre a vida de um autor se tais missivas fossem coligidas e publicadas de vez em quando! Sempre que um autor célebre morre, há uma corrida desenfreada para desenterrar a correspondência trocada entre ele e outras celebridades de nomeada mundial. Algumas vezes isso dá boa leitura, mas é frequente não dar. Como devoto de semanários literários franceses, dou muitas mais vezes comigo a ler excertos de correspondência entre homens como Valéry e Gide, por exemplo, e a perguntar-me, enquanto o faço, porque será que estou com tanto sono. Aqueles que classifico de modo geral como "chalados" não são de modo algum doidos, mas sim excêntricos, depravados, perversos e, tratando-se de solipsistas genuínos, todos eles andam, evidentemente, de candeias às avessas com o mundo. Acho-os mais divertidos quando lamuriam pateticamente sobre a crueldade do destino. Isto pode parecer maldoso, mas a verdade é que não há nada mais hilariante de ler do que os aborrecimentos de uma pessoa que de algum modo está sempre cheia deles. O que parece montanhas a estes tipos são sempre montículos para nós. Um homem que é capaz de discorrer sobre a tragédia da radícula de uma unha, que consegue dissertar a esse respeito durante cinco ou seis páginas, é um comediante caído dos céus. Ou um homem que é capaz de desmembrar o nosso trabalho com martelo e pinça, de o analisar até o reduzir a nada e entregar-nos os membros desaparecidos num bidé antiquado que normalmente usa para servir esparguete.»
[Henry Miller, Big Sur e As Laranjas de Jerónimo Bosch; trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Lisboa, 2000, Livros do Brasil;

11 de outubro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«E ele já não se dava ao trabalho de distinguir
quais as coisas feitas e quais as sonhadas.»

Nem sempre a lápis (91)

A imagem do coreto mais emocionante, mais festiva, surge de costas para o Arade, rodeado pelo arraial de barracas de oferta de serviços turísticos, fluviais e segway, geladarias e o Pavilhão de Gelados sobrevivente. Anotado do lado oposto, a deslocação do coreto desabita-o; a promessa desmorona-se no trompe l’œil reflectido no rio e pelas suas artes. Um moliceiro varado na margem do porto novo; uma nau – Dona Bernarda, com o verniz estalado – retirada de uma caixa de fósforos, nas horas vagas. Águas trocadas; nozes dadas a quem nunca teve dentes.

À mão de ler (93)

Apagam o cigarro; a que estava sentada no chão de pernas estendidas levanta-se, a outra já se lhe adiantara um pouco; nas minhas costas perco-lhes a ida até ao outro lado do parque de estacionamento; quando me volto observo que remexem na lona verde que cobre a caixa de uma carrinha estacionada; em passos largos aproximam-se de mim, rosadas, alegres, nas mãos trazem melancias listadas que encostam ao peito; e riem; pergunta-me a mais pequena se eu quero uma melancia, agradeço e recuso; e elas, na galhofa, lá ficam com as melancias escondidas no reboliço da barriga.»

10 de outubro de 2010

Datas sem data

9 de outubro de 2010