30 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha

«… longe de suspeitar que percebido assim eu acabava de receber mais uma graça: liberado na loucura, eu que só estava a meio caminho dessa lúcida escuridão; …»

Nem sempre a lápis (216)

Não é a primeira vez: escrever e ter medo do que leio. Acabo de recuperar um texto esquecido no blogue. Escrevi-o em Março e pretendi a leviandade de duvidar de mim. Procurei ignorar a premonição com o argumento de não ferir outra leitura; assim o leio, em Setembro.

Papiro do dia (136)

«(Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto? como podia o pai, Pedro, ter omitido tanto nas tantas vezes que contou aquela história oriental? terminava confusamente o encontro entre o ancião e o faminto, mas era com essa confusão terapêutica que o pai deveria ter narrado a história que ele mais contou nos seus sermões; o soberano mais poderoso do Universo confessava de fato que acabara de encontrar, à custa de muito procurar, o homem de espírito forte, carácter firme e que, sobretudo, tinha revelado possuir a virtude mais rara de que um ser humano é capaz: a paciência; antes porém que esse elogio fosse proferido, o faminto – com a força surpreendente e descomunal da sua fome. desfechara um murro violento contra o ancião de barbas brancas e formosas, explicando-se diante de sua indignação: “Senhor meu e louro da minha fronte, bem sabes que sou o teu escravo, o teu escravo submisso, o homem que recebeste à tua mesa e a quem banqueteaste com iguarias dignas do maior rei, e a quem por fim mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que queres, senhor, o espírito do vinho subiu-me à cabeça e não posso responder pelo que fiz quando erguia a mão contra o meu benfeitor.»
[Raduan Nassar, Lavoura Arcaica; Relógio D’Água, Outubro 1999;

28 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«… que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada aqueles tempos nos distraído tanto como os sinos graves marcando as horas.»
(Raduan Nassar)
[a mesa]

Nem sempre a lápis (215)

Olho para o passado e vejo ruínas. «O trabalho de restauro não só dissipa o charme e o mistério como produz o efeito, um simulacro, de rigor mortis» (Henry Miller). Perdi casas e perdi cães; perdi lugares e perdi sonhos, sobretudo os sonhos. Duvido que vá a Jajouka (até Jajouka), que volte a Marrocos. O ano passado, vivi na Asilah que conheci com a Nico, a sobreposição de dois espaços: a que foi a minha casa do forno, em Mortágua; a que é a casa dela, no Monte Alto. Vivo a vida à ordem; já não a tenho a prazo.

Papiro do dia (135)

«E o pai à cabeceira fez a pausa do costume, curta, densa, para que medíssemos em silêncio a majestade rústica da sua postura: o peito de madeira debaixo de um algodão grosso e limpo, o pescoço sólido sustentando uma cabeça grave, e as mãos de dorso largo prendendo firmes a quina da mesa como se prendessem a barra de um púlpito; e aproximando depois o bico de luz que deitava um lastro de cobre mais intenso em sua testa, e abrindo com os dedos macios a velha brochura, onde ele, numa caligrafia grande, angulosa, dura, trazia textos compilados, o pai, ao ser, não perdia nunca a solenidade: “Era uma vez um faminto.”»
[Raduan Nassar, Lavoura Arcaica; Relógio D’Água, Outubro 1999;
era uma vez]

26 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha

«... dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa;»
(Raduan Nassar)

Nem sempre a lápis (214)

Os sons visitam-me na transição para o adormecer. Os acordes de um piano sob uma porta, uma cancela a abrir, uma nesga de Lua, um latido ao longe, o crepitar de uma salamandra e várias lareiras; iguais, só no calor. Não me sobressaltam; surpreende-me a vigilância, a apresentação da memória.
[os sons]

Papiro do dia (134)

«Onde eu tinha a cabeça? que feno era esse que fazia a cama, mais macio, mais cheiroso, mais tranqüilo, me deitando no dorso profundo dos estábulos e dos currais? que feno era esse que me guardava em repouso, entorpecido pela língua larga de uma vaca extremosa, me ruminando carícias na pele adormecida? que feno era esse que me esvaía em calmos sonhos, sobrevoando a queimadura das urtigas e me embalando com o vento no lençol imenso da floração dos pastos? que sono era esse tão frugal, tão imberbe, só sugando nos mamilos o caldo mais fino dos pomares? que frutos tão conclusos assim moles resistentes quando mordidos e repuxados no sono dos meus dentes? que grãos mais brancos e seráficos, debulhando sorrisos plácidos, se a varejeira do meu sonho verde me saía pelos lábios? que semente mais escondida, mais paciente! que hibernação mais demorada! que sol mais esquecido, que rês mais adolescente, que sono mais abandonado entre mourões, entre mugidos! onde eu tinha a cabeça? não tenho outra pergunta nessas madrugadas inteiras em claro em que abro a janela e tenho ímpetos de acender círios em fileiras sobre as asas úmidas e silenciosas de uma brisa azul que feito um cachecol alado corre sempre na mesma hora a atmosfera; não era o meu sono, como um antigo pomo, todo feito de horas maduras? que resinas se dissolviam na danação do espaço, me fustigando sorrateiras a relva delicada das narinas? que sopro súbito e quente me ergueu os cílios de repente? que salto, que potro inopinado e sem sossego correu com meu corpo em galope levitado? essas as perguntas que vou perguntando em ordem e sem saber a quem pergunto, escavando a terra sob a luz precoce da minha janela, feito um madrugador enlouquecido que na temperatura mais caída da manhã se desfaz das cobertas do leito uterino e se põe descalço e em jejum a arrumar blocos de pedra numa prateleira; não era de feno, era numa cama bem curtida de composto, era de estrume meu travesseiro, ali onde germina a planta mais improvável, certo cogumelo, certa flor venenosa, que brota com virulência rompendo o musgo dos textos dos mais velhos; este pó primevo, a gema nuclear, engendrado nos canais subterrâneos e irrompendo numa terra fofa e imaginosa: “que tormento, mas que tormento, mas que tormento!” fui confessando e recolhendo nas palavras o licor inútil que eu filtrava, mas que doce amargura dizer as coisas, traçando num quadro de silêncio a simetria dos canteiros, a sinuosidade dos caminhos de pedra no meio da relva, fincando as estacas de eucalipto dos viveiros, abrindo com mãos cavas a boca das olarias, erguendo em prumo as paredes úmidas das esterqueiras, e nesse silêncio esquadrinhado em harmonia, cheirando a vinho, cheirando a estrume, compor aí o tempo, pacientemente.»
[Raduan Nassar, Lavoura Arcaica; Relógio D’Água, Outubro 1999]

24 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O que acontece de especial é que viver com os livros e às vezes escrevê-los tem a ver, ao mesmo tempo, com o trabalho e os tempos livres, o tal otium de que falavam os antigos, a “esfera” do vagar fora da qual, afinal de contas, nada se passa.»
(George Steiner)
[otium]

Nem sempre a lápis (213)

Era disto que ele precisava, o anel que a Nico me trouxe de Jaipur, no Rajastão: Sol e contacto com a areia e o mar. Recebi-o amolgado pela adaptação a outros dedos e oxidado pelo tempo; só na zona da palma da mão, onde melhor assenta, apresentava o brilho da entrega recente ao comércio privado. À primeira vista, olhares embaciados pela generalização devem vulgarizá-lo como acessório de banca estival; anónimo e apátrida. Sei, leio-a quando o rodo no dedo, que é um anel com história que desconheço e me calhou dar continuidade; omitindo a minha.

Papiro do dia (133)

«Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?” – não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: “estamos indo sempre para casa”.»
[Raduan Nassar, Lavoura Arcaica; Relógio D’Água, Outubro 1999;
a caminho]

23 de setembro de 2011

22 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Em princípio, foi sempre mais simples aliviar a dor do que dar prazer ou felicidade. A zona de uma dor é sempre mais facilmente localizável. Com uma enorme excepção – a dor emocional da perda, a dor que despedaça o coração. É uma dor que preenche o espaço de uma vida inteira.»
(John Berger)

Nem sempre a lápis (212)

Ao fim da primeira tarde de praia, vinha da Cerca Nova e não me surpreendeu ler a oferta «Visitas Guiadas à Ilha do Pessegueiro», pintada numa placa de madeira. Entendi guiadas para não pisarem os ninhos de gralha, evitar que alguém tropece num calhau e vá ter ao mar a fazer tobogã nas rochas forradas com cracas minúsculas; a menos dolorosa das hipóteses. Sorri e pensei que era inevitável. Ainda estive para documentar o achado, mas a esfrega de talassoterapia desmotivou os passos de recuo para a encenação da surpresa. O que me chamou a atenção foi o traço naïve – proa de moliceiro, marinha de tasca, natureza morta de feira – a ficcionar o entulho da fortaleza, à vista desarmada. A tentação foi sempre grande, acampados em frente dela com canas espetadas na falésia para encher jarricans de água doce e banho tépido ao fim da tarde. Depois de jantar, era voz corrente nas tabernas que na ilha se dava um alho como não havia igual para temperar peixe; dizia-se que havia um túnel sob o mar que ligava a ilha à fortaleza, em terra; os neptunos de serviço apostavam minis em como na preia-mar se chegava até meia distância com água pelo tronco e depois, era só nadar, conhecendo as correntes; segredava-se que a ilha era um entreposto de contrabando para justificar o arrastar de caixotes na praia, ouvidos ou sonhados durante a noite; dizia-se também que se caçavam patos selvagens no lado oculto da ilha, pescados à linha e degolados no acto, abafado pela rebentação. Era apenas uma questão de tempo; restaurada a pincel, a ficção aconchegou-se à procura.
[refresh]

Papiro do dia (132)

«Apesar de tudo, ao andarem às voltas em torno de si mesmos, os deslocados preservam a sua identidade e improvisam um abrigo. Feito de quê? Feito de hábitos, penso eu, feito com a matéria bruta da repetição, assim transformada em abrigo. Os hábitos implicam palavras, piadas, opiniões, gestos, actos e até a maneira como se põe o boné na cabeça. Os objectos físicos e os lugares – uma peça de mobília, uma cama, o canto de uma sala, determinada taberna, a esquina de uma rua – dão enquadramento e cenário ao hábito; mas não são os objectos que protegem, o hábito sim. O betão que sustenta a casa-lar improvisada – até mesmo para uma criança – é a memória. Dentro dela ordenam-se as recordações visíveis e tangíveis – fotografias, troféus, lembranças – mas o tecto e as quatro paredes que constituem a salvaguarda da vida, essas, pertencem ao domínio do não-visível, do intangível, do biográfico.
Para os desfavorecidos, a casa-lar é representada menos pela habitação em si do que por uma prática ou conjunto de práticas. Cada pessoa possui as suas. Tais práticas, verdadeiramente escolhidas e não impostas, oferecem, na sua repetição e apesar do seu carácter efémero, mais permanência e abrigo do que qualquer tecto. A casa-lar já não é habitação mas a história não contada de uma vida que está a ser vivida. No limite, se quisermos ser ainda mais brutais, a casa-lar não representa mais do que o nome que cada um tem – sendo que a maioria das pessoas nem sequer nome tem.»
[John Berger, E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias; trad. Helder Moura Pereira, Quasi, Janeiro 2008;
agulha]

21 de setembro de 2011

«CINE MAR(A)VIL(H)A»

(em loop) *One night only* Segunda sessão OLD SCHOOL, desta vez com a apresentação de “CINE MAR(A)VIL(H)A” de ANA VIDIGAL, one night only, dia 21 de Setembro, às 22h. Sessão especial de projecção em loop de vídeos feitos pela artista para o facebook e youtube. Lembramos também que na mesma noite, ali mesmo ao lado em rua paralela, a Galeria Baginski inaugura também a exposição “Estilo Queen Anne” de Ana Vidigal, às 22h. Dose dupla de Vidigal em Marvila, Poço do Bispo.

20 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Um nome e duas datas, a segunda tão precisa que inclui até o dia. É isto apenas o que fica registado. Acerca do que aconteceu entre as duas datas, para lá do mero facto da sobrevivência, nem uma palavra.»
(John Berger)

Nem sempre a lápis (211)

Não li e não escrevi uma linha e o sinal da Net era fraco, em Porto Covo; mais forte o do Sol e do mar e o da Lua, que te trouxeram. Mais tarde, li na bloga que «Lisboa tem uma polifonia assinalável de sotaques no metropolitano, nos quais reparo pois a simples audição é um passaporte para os mais diversos locais.» Vindo deles, ao longo da Costa Vicentina e pelo rodapé do Barlavento, descansei um pouco mais adiante, a ler: «Sou atraída pela diferença, e esta praia não fazia parte do meu léxico de mar e sol.»

Papiro do dia (131)

«O sal, a chuva, os líquenes e o vento demoram mais do que um século ou dois a apagar as letras mais fundas das pedras tumulares. Porquê a inscrição das duas datas? A pergunta pode ser feita em relação a qualquer outro cemitério mas aqui, nesta ilha, a resposta é mais do que evidente.
As inscrições não se dirigem aos vivos. Os que já sabem recordar os mortos não precisam que lhos lembrem. O que se inscreve é uma forma de identificação, dirigida, como qualquer identificação, a terceiros. As pedras tumulares são cartas de recomendação para os mortos, escritas na esperança de que não seja atribuído outro nome aos recentemente partidos.
Do cemitério tu e eu olhávamos para lá dos canais, para o mar, para o céu acima do mar, para as colinas de fetos. A linha da costa corta em declive como a fazer a passagem para algo que nasce ainda mais longe – na direcção do imenso Atlântico. É para este lugar de nascimento que os mortos viajam. Todos a uma distância que lhes permite ouvirem-se uns aos outros. Os vivos não conhecem essa língua. As nossas histórias não são lidas pelos mortos.»
[John Berger, E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias; trad. Helder Moura Pereira, Quasi, Janeiro 2008]

18 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Os que nos lêem e ouvem as nossas histórias vêem tudo através de uma lupa. A sua lente é o segredo de toda e qualquer narrativa, um segredo sempre renovado em cada história que nasce, um território entre o temporal e o intemporal.»
(John Berger)

Nem sempre a lápis (210)

Se alguma coisa aprendi com o Vitor, foi a gostar da vida dos livros e a fazê-los; para que se façam, uns aos outros. Olho para as estantes e caixotes e sorrio ao ver a quantidade de edições da Ulisseia que me acompanham; mandava-as vir pelo Correio, pagas com selos fanados no escritório do meu pai. Creio ter descoberto o método com a aquisição de Pela Estrada Fora, embora me pareça pouco provável que me tenha feito a ela em 1960; tinha onze anos. Vivo de traduções, do comércio dos livros, numa sólida relação de convívio. Olho para os livros que me editaram e, a haver reparos, a culpa é minha; irrepreensível, o objecto com título. Desprezado o preconceito da auto-edição, reencontro nela a cumplicidade tipográfica perdida. Antes dos jornais, quando lia e escrevia em cafés de província, fui seduzido pelo cheiro da tinta e dos caracteres de chumbo, a caminho do colégio. É provável que a minha vocação minimalista me tenha desocupado das folhas que mandava imprimir só pelo prazer de as ver compor; imaginado o livro. Recuperado algum dinheiro empregue e não gasto, na minha primeira edição, invisto-o num segundo título, para que as duas tornem possível a seguinte.

Papiro do dia (130)

«O polegar na boca e o sono a chegar. O sabor do nosso próprio corpo a envolver-nos, tal e qual como no sono. O nosso próprio corpo não pode fazer-nos mal.
Raiva. A encher de choro uma caverna de medo e ira. O choro flutua no ar como folhas vermelhas, já desprendido de quem chorava mas caindo sobre o seu rosto, provocando mais choro ainda.
Consolação depois do choro. O estômago deixa de andar às voltas. Uma calma doçura, como se fosse mel, espalha-se pelo peito. Só o céu-da-boca permanece seco. As causas inexplicáveis desapareceram misteriosamente. A incapacidade de recordar pode ser, em si mesma, uma memória. Pode ter-se já vivido com a experiência do inominado: havia certas forças elementares que eram reconhecíveis – o calor, o frio, a dor, a doçura. E também algumas pessoas. Mas não havia verbos nem substantivos. Mesmo a primeira pessoa do singular correspondia mais a uma convicção que se ia desenvolvendo do que a um facto concreto. Devido a esta ausência, não podia haver recordações (consideradas como distintas de outras funções da memória).
Outrora viveu-se no universo sem costura do inominado. O inominado implica que tudo seja contínuo. O sonho de uma língua universal que tudo dissesse em simultâneo talvez provenha da recordação de um tempo em que não havia recordações.»
[John Berger, E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias; trad. Helder Moura Pereira, Quasi, Janeiro 2008]

16 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

«A 16 de Setembro estreamos em Viseu, no Teatro Viriato, NÃO SE BRINCA COM O AMOR de Alfred de Musset e durante um mês andaremos por Almada, Coimbra, Guimarães. Para, a 19 de Outubro pelas 19h00, abrirmos as portas do novo Teatro da Politécnica, com essa peça impossível (só representada 70 anos depois de escrita) e a exposição de esculturas de Ângelo de Sousa

Às vezes, lá calha...

«Querem, a todo o custo, fazer alguma coisa, pois têm medo de descobrir que estão sós. Agir em comum torna-os solidários, e provavelmente nada como uma acção em comum – se sai do habitual – é capaz de criar esse sentimento de unidade. É esse o mal deles.»
(Siegfried Lenz)

«É bom trabalhar nas Obras» (100)

«No estúdio da produtora de cinema Filmo Centro, foram convocados os voluntários que queriam prestar o seu testemunho como estavam a sofrer a ditadura: mães com filhos desaparecidos, mulheres violadas, adolescentes torturados, operários com os rins moídos à pancada, idosos surdos, desempregados sem lar, estudantes expulsos da universidade, pianistas com os pulsos fracturados, mamilos mordidos por cães, empregados de escritório com o olhar perdido, crianças com fome. Uma mulher de cinquenta anos aproximou-se de Bettini acompanhada por um guitarrista.
- Quero que apresente a minha cueca* no seu programa.
- Uma cueca, vem a calhar – disse o publicitário. – É uma coisa alegre.
- Este jovem é meu filho, Daniel. É guitarrista.
- Olá, Daniel. - É uma cueca dedicada ao meu marido. Detido e desaparecido.
- Com quem a vai dançar?
- Com ele, cavalheiro. Com o meu marido.
Tirou um lenço branco do peito e agitou-o delicadamente entre o indicador e o polegar da mão direita. O rapaz fez os rasgados preliminares e com voz aguda introduziu o primeiro verso: "Minha vida, em tempos fui feliz…"
O facto da mulher reagir aos passos de dança do seu desaparecido, com uma dignidade sem ênfase, tornava a sua dança ainda mais demolidora.
Bettini desculpou-se com uma expressão vaga e foi à casa de banho.
Deixou correr a água na nuca sem se importar que salpicasse a camisa. E esfregou o rosto debaixo do jorro como se quisesse que lhe pulverizasse a palidez.
E foi dessa maneira que também as suas lágrimas se dissolveram no lavatório.
* Abreviatura de zamacueca, dança popular chilena.»
[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em breve na Teodolito;
com quem vai dançar?]

Papiro do dia (129)

«- Não sei ao certo, comandante. Assustar-se-ia se soubesse como o compreendo e como nos defrontamos tão de perto. A sua vida, comandante, seria a única que eu poderia ter vivido, se não me tivesse já decidido pela minha vida, ou melhor, pelas minhas três vidas. Já lhe contei a primeira, em que fiquei com o escritório de advogado do meu irmão. Ora bem, a segunda vida resultou da primeira: ao exercer a profissão de advogado cheguei rapidamente à conclusão de que, desde que se queira, é sempre possível provocar a existência de um passado de culpa em cada ser humano. Todos, sem excepção, podem servir de réus: ricos e pobres, viúvas e órfãos: escolha qualquer pessoa ao acaso, e garanto-lhe que se conseguirá descobrir uma falta que lhe valeria bem dois anos de prisão de acordo com as leis em vigor, mesmo sem aplicar o código penal de forma draconiana. Que a Terra inteira ainda não se tenha tornado num imenso tribunal deve-se ao excesso de trabalho dos juízes e ao facto de não ter ainda aparecido alguém que os acusasse a eles. Está a ver, foi assim que encontrei uma nova vida: queria saber qual era o limite, quantos crimes era possível cometer sem que isso se visse na cara ou atraísse a atenção dos tribunais. Foi assim que, a par da minha vida de advogado, levei uma vida – sim, tenho de confessar –, uma vida de bandido em liberdade. Sob o nome de um conhecido empresário, montei a maior empresa de justiça – chamaria a isso chantagem – que jamais existiu na Alemanha Ocidental. Especializei-me em investigar a vida de pessoas muito conhecidas e aparentemente honradas e em comunicar-lhes os resultados dos meus esforços… acompanhados por uma conta. Não quero deixar de reconhecer que devo o meu êxito ao facto de vivermos hoje na era dos juristas, em que qualquer patrãozinho pede um parecer jurídico sobre as eventuais consequências de dormir com a secretária. Obtive, ainda assim, com a minha segunda vida, um êxito que nunca poderia ter conseguido com a minha vida de advogado. Finalmente, a minha terceira vida, que pude financiar graças à segunda, fez de mim um modesto construtor naval: recordado da morte do meu irmão, especializei-me, no meu estaleiro, na construção de barcos salva-vidas insubmersíveis – para vapores, barcos de pesca, em resumo, para toda a espécie de naufrágios possíveis. O barco onde nos encontrou é, aliás, produzido por mim, um protótipo antigo.»
[Siegfried Lenz, O Barco-Farol; trad. Inês Madeira de Andrade, Fragmentos, Setembro 1987;

15 de setembro de 2011

14 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Não diga nada do que lhe interessa, como acontece com uma boa narrativa. Não é preciso compreender tudo e têm de se aceitar certas incertezas.»
(Siegfried Lenz)

«É bom trabalhar nas Obras» (99)

«O capitão Carrasco ficou a abanar ritmicamente a queixada como que contagiado pela rima do texto. Bettini sentiu que a palidez do seu rosto era agora substituída por um fogacho de rubor. Ouvir o seu texto para aquela canção que seria emitida precisamente no último dia da campanha, foi o mesmo que escutar uma sentença de fuzilamento. Pareceu-lhe horrorosa, cada imagem daquelas estrofes que ainda umas horas antes – antes de todos os desastres – lhe pareciam luminosas, linhas que seriam interpretadas pelos chilenos de todas as idades, os amantes do mar e das montanhas, os apolíticos e os indecisos. Porque é que tinha sucumbido à irresponsabilidade adolescente da sua filha, quando tentou convencê-lo de que era preciso cantar «é tão bom dizer não», a ele, que nunca na sua vida tinha usado como todos os jovens chilenos, nem sequer a infalível muleta “ké kaxam?” para perguntar se os tinham compreendido?
Ké kaxam?
Nada, Adrián Bettini, santo pai dos ingénuos, disse para consigo. Não tinha ké kaxado nada! Se ouvir a letra da sua canção na boca de um polícia desembaraçado a dar ordens, mas lerdo a pronunciar metáforas, já o tinha sepultado na mais profunda das humilhações, não imaginou que o inferno tem sempre outro subsolo, outro circulozinho, companheiro de Dante, sob o qual se pode continuar a descer infinitamente.
Carrasco agora tão amável em subir ainda mais o volume do amplificador para que pudesse ouvir “ao vivo e em directo”, o comentário do próprio ministro do Interior aos seus versinhos. Que veio precedido por um riso despreocupado.
- Na verdade, material muito interessante, Carrasco.
- Sob o ponto de vista policial ou poético, senhor ministro?
- De ambos. Diga-me, capitão, como se chama esse Neruda que meteu dentro?
O oficial tapou o auscultador do telefone e levantando o queixo, dirigiu-se ao publicitário.
- Com’é que te chamas, artolas?
- Bettini, Adrián Bettini.
- Diz que se chama Adrián Bettini.
Do outro lado da linha fez-se silêncio e depois explodiu uma alegre gargalhada.
- Não me diga que tem aí o próprio Adrián Bettini!
- Quem é ele, senhor ministro?
- O chefe da campanha do “Não a Pinochet”.
- É perigoso?
- Qual quê! Com versinhos desses não vai aquecer ninguém.
- Embora aqui no panfleto fale de insurreição. Amanso-o um pouco?
- Não, homem. De maneira nenhuma. Não lhe toque nem com a pétala de uma rosa. Estamos em democracia. Bettini pode escrever os disparates que quiser.
- Mas, é contra o meu general!
- Mesmo que seja contra o nosso general. A democracia, capitão! Um simples exagero das estatísticas. Os votos dos cabeludos valem tanto como os nossos votos.
- E então?
- Devolva-lhe os seus papelinhos e ele que se vá embora.
- E o que é que fazemos com o automóvel dele? Enfiou uma bruta marrada no furgão da esquadra.
- Mande-o arranjar na oficina do grupo móvel na calle Cármen. Têm lá um bate-chapas que faz maravilhas.
- E a conta?
- Envie-a para o ministério, Carrasco. Diga a Bettini que é uma atenção da casa.»
[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em breve na Teodolito]

Papiro do dia (128)

«- Está a ver, comandante, como discordamos nisto: você não dá valor à insegurança e eu não tenho grande opinião da segurança: quanto mais pequenas forem as nossas probabilidades aos seus olhos, mais estarei disposto a apostar nelas. Até certas experiências o demonstram. Uma vez tive um contrabandista entre os meus clientes, um homem que continuou a exercer a sua profissão perigosa mesmo durante a guerra; e então procurava atravessar a fronteira sempre nos pontos da frente onde o fogo era mais intenso. Escapou sempre, enquanto o companheiro, que escolhia os pontos mais sossegados, foi morto a tiro por uma sentinela nervosa. Creio que nos entendemos como sempre, e agora suponho que você não está à espera de que vamos desistir de uma probabilidade cujo valor está justamente em ser tão pequena. Espero que mande consertar o seu barco imediatamente e que o ponha à nossa disposição. Freytag tirou o cigarro apagado da boca, esmagou-o e triturou-o entre os dedos e depois perguntou:
- Foi advogado?
- Sou advogado entre outras coisas – disse o doutor Caspary e fez uma estranha e irónica vénia para Freytag.»
[Siegfried Lenz, O Barco-Farol; trad. Inês Madeira de Andrade, Fragmentos, Setembro 1987;

13 de setembro de 2011

Lá tive de me impor...

o Tolstoi preparava-se para "encadernar" o Proust

12 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

«Un hombre lleva toda su obra, que es toda su vida, dentro de una vieja valijita de cuero comprada en la India, en un tren que va de Moreno a General Rodríguez, por el conurbano bonaerense. Son los originales únicos de sus películas, todas en super-8, un formato obsoleto, en vías de extinción, que no permite copias. Esa valija es como el manuscrito de su autobiografía. Se trata de Claudio Caldini, cuidador de una quinta de los suburbios, cineasta secreto.»

Às vezes, lá calha...

«Freytag lembrou-se do mercado em Djibuti, onde duas pessoas que têm alguma coisa a resolver se retiram para debaixo de um pano preto e continuam em silêncio o que tinham começado a discutir com palavras.»
(Siegfried Lenz)

«É bom trabalhar nas Obras» (98)

«Sentiu familiaridade com o catálogo dos “detidos”. Um bêbado ao longo do banco de madeira, um estudante a sangrar vítima de uma bastonada, a vendedora ambulante sem licença, o dirigente sindical algemado.
Duas horas sem que nenhum funcionário desse início a qualquer tipo de diligência. De vez em quando, assomava um oficial, lançava uma vista de olhos ao grupo e desaparecia numa divisão traseira. A prisão era sempre assim. A sensação de um tempo infinito, inútil. Uma antessala para o incerto. Esse interlúdio que incha com a desolação. A humilhante espera. Tempo para se imaginar os entes queridos preocupados com a nossa ausência. O agente de serviço a teclar numa velha máquina Remington um relatório que, meses mais tarde, talvez um juiz local viesse a ler.
A última vez que o prenderam, quiseram dar-lhe uma tareia exemplar. Tinha participado num protesto de rua contra o aumento dos transportes, para resgatar uma jovem arrastada para o furgão policial por uns agentes à civil. Sem estar organicamente ligado a esse acto, seguiu o impulso do seu coração, e no interrogatório não soube dar o nome de contactos, nem a direcção dos revoltosos do movimento, simplesmente porque os ignorava.
Às vezes, o seu maldito coração fazia-o agir imprudentemente mais depressa do que a cabeça.
Outras vezes, a língua saía-lhe disparada com as verdades a arder na ponta. Dizia-as, mesmo sabendo que viria a sofrer as consequências. Em todas essas ocasiões tinha sido ele, somente o seu corpo quem estava em jogo. Mas agora tudo podia desembocar numa catástrofe que implicaria muita gente: se as imagens da campanha do “Não” chegassem às mãos do ministro do Interior, não só iria pôr em risco as pessoas que tinham emprestado os seus rostos para cantar e contestar o ditador, como denunciaria o carácter da sua campanha aos seus rivais do "Sim a Pinochet": iria dar-lhes tempo para desenharem um antídoto e criarem uma estratégia que anulasse as improváveis virtudes de comunicação que a sua ingénua obra pudesse ter.
Sentiu-se um traidor por ter bebido álcool na embaixada, sabendo que levava a fita U-Matic no automóvel.
Era compreensível, porque estava nervoso, irritado, inseguro. Ia mostrar pela primeira vez a sua obra-prima aos dirigentes políticos do "Não" e temia o seu veredicto. Tão brutalmente fora de training. Maldita a hora em que tinha sucumbido, contra toda a análise ou lógica, à vaidade de assumir a tentação de… salvar o Chile! Corrigiu esse pensamento patético. O Chile não tinha sido salvo pelos mártires dos movimentos de resistência, nem pelos militares disciplinados, nem pelas centenas de milhares de amantes da liberdade que, aqui e ali, enfrentavam a repressão, e ele, sumo pontífice dos néscios, tinha aceitado dirigir essa campanha que, em vez de o levar à glória, o iria conduzir ao inferno.
Carente de ideias, entregara-se aos delírios do meia-leca: o tal Raúl Alarcón, com a sua Valsa do Não. Agora o seu vídeo desastroso podia cair nas mãos do inimigo.
E o factor azar. Bateu. Mas bateu contra um furgão de carabineiros! Com um bocadinho de má vontade, ao inspeccionarem a sua ficha de detenções e invocando a sua incendiária Valsa do Não no vídeo, os carabineiros podiam entregá-lo aos agentes da secreta, que lhe aplicariam a Lei Anti-terrorista.
A outra clavícula.
Talvez o fémur.
E isto, com sorte.
Vindo da rua, entrou um oficial superior que fez soar as chaves do seu automóvel como castanholas.
- Bettini! – chamou.»
[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em breve na Teodolito;
catálogo]

Papiro do dia (127)

«- O barco é velho mas é de confiança – disse Freytag. – Passou por mais tempestades do que qualquer outro barco que eu conheça.
- Mas está amarrado – disse o doutor Caspary. – Está fundeado e não se consegue libertar, e fica aqui no Verão e no Inverno enquanto os outros navegam. Mas um barco tem de estar a caminho entre os portos, tem de estar ausente e regressar, tem de ter alguma coisa para contar. Com um barco tem de se encontrar o desconhecido. Este barco foi, desde o princípio, concebido para a amarra, construído para ser um prisioneiro responsável para quem todos os portos estão fechados.
- Como alguém condenado a prisão perpétua – disse o gigante.
- Os outros estão a caminho e o senhor está seguro à amarra – disse o doutor Caspary. – Talvez seja por causa disso que os seus antecessores têm caras tão tristes: este cativeiro sob o mesmo horizonte, na mesma costa.
- Os prisioneiros também têm algum poder – disse Freytag. – Os carcereiros dependem muito mais dos seus prisioneiros do que os prisioneiros dos seus carcereiros: se não fossemos nós, haveria aqui um cemitério de barcos bem cuidado, e poderiam ver-se por toda a parte da costa os ferros de barcos afundados, como pregos numa tábua de faquir. A costa inteira estaria cheia de cascos de navios, e lá fora, onde havia zonas minadas, estariam ao lado uns dos outros, ou então mesmo uns em cima dos outros. Os outros só podem navegar porque nós estamos seguros à amarra e podem ter confiança nos sinais de luz que emitimos. Onde há um barco-farol significa que se passa alguma coisa. Eles sabem isso e prestam atenção assim que dão por nós.
- Mas os outros são livres – disse o doutor Caspary.
- Os outros dependem de nós – disse Freytag. – Dominamo-los e, se quisermos, podemos mandá-los para os bancos de areia ou para as zonas minadas, ou então para um canal onde, passada uma noite, ficam com o valor de sucata. É assim – disse Freytag – e não de outra maneira.»
[Siegfried Lenz, O Barco-Farol; trad. Inês Madeira de Andrade, Fragmentos, Setembro 1987]

11 de setembro de 2011

Mr. Vonnegut



10 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Escrever sobre tudo, tudo ao mesmo tempo, é não escrever. Não é nada. E é uma leitura insustentável, do mesmo modo que uma publicidade.»
(Marguerite Duras)
[pub]

«É bom trabalhar nas Obras» (97)

«Ao chegar à esquina, levou instintivamente a mão ao nariz para tapar o espirro. Bastou esse segundo para o seu automóvel se enfaixar contra o veículo da frente. Não tinha sido grande coisa, apenas mais uma ferida no velho Fiat, mais um rasgão na sua vida, nada comparável com a amolgadela maior que lhe ia na alma.
Saltou da resignação fatalista para o pânico quando descobriu que o veículo contra o qual se tinha enfaixado, era um furgão de carabineiros. Num lampejo de lucidez, escondeu a fita U-matic com a campanha do "Não" debaixo do assento do condutor e, resignadamente, accionou o manípulo que a abria a janela do lado dele.
As buzinadelas dos condutores, impacientes com este novo engarrafamento, aumentou através da janela aberta. Faziam-lhe ranger os nervos, precisamente neste momento em que necessitava de calma, delicadeza, esperteza. Moderação. Bom ânimo.
Ali estava agora o carabineiro e o seu característico excesso de formalidade a ordenar-lhe com azedume:
- Os seus documentos.
Quando enterrou a mão no bolso, veio junto com a carteira o convite para o acto cultural da embaixada da Argentina. Sentiu que havia ali a possibilidade de um refúgio, um breve estratagema para amortecer a pancada que viria a seguir.
Estendeu-lhe o convite com o escudo transandino. Depois de o olhar sem interesse, o polícia devolveu-lho, indiferente.
- Os seus documentos, senhor.
- Sim, sim, meu tenente – disse Bettini, a procurar na carteira. Enquanto o fazia, como se exibisse um absurdo salvo-conduto, acrescentou –: Fique o senhor a saber que venho de uma recepção na embaixada da Argentina. Perto daqui. A dois quarteirões. Em Vicuña Mackenna. Uma recepção do senhor embaixador. O agente pegou nos documentos protegendo-os da morrinha com a mão esquerda.
- O seu nome é Adrián Bettini?
- Sim, meu tenente. Venho de uma recepção na embaixada da Argentina. A embaixada da irmã República Argentina.
- Desligue o motor e saia.
- Com muito gosto. Não sei como aconteceu este lamentável acidente. O asfalto molhado…
- O asfalto está molhado para todos. Só o senhor é que se estampa.
- Sim, meu oficial. É que eu vinha de uma recepção da embaixada da Argentina…
- Consumiu álcool?
Absurdamente, agora procurou tapar o hálito. Absurdamente também, respondeu:
- Não me parece.
- Vai ter de me acompanhar à esquadra, cavalheiro. O seu colega desviou o trânsito para um lado e indicou a Bettini que estacionasse o automóvel em cima do passeio.
- Vai dentro. Condução sob o efeito de álcool e danos num veículo oficial das Forças Armadas e da Ordem.
Assim que deixou o automóvel à beira de um plátano oriental, Bettini desceu do veículo e, depois de o fechar, quis guardar as chaves no bolso. O carabineiro segurou-lhe o pulso.
- Eu fico com as chaves.
- É que… - É que, o quê?... Acha que os carabineiros lhe vão roubar o seu automóvel?
Não podia dizer que o quê.
Estava ali a campanha do "Não", que dentro de poucos dias ia ser apresentada diante do Chile inteiro. Para sua humilhação. Para seu funeral. O seu apocalipse.
Para quê dizer, nada?
- Venho de uma recepção na embaixada da Argentina…»
[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em breve na Teodolito;
esbirro]

Papiro do dia (126)

«Escrevia todas as manhãs. Mas sem nenhum horário. Nunca. A não ser para a cozinha. Eu sabia quando era preciso vir para que isto fervesse ou aquilo não se queimasse. E para os livros também o sabia. Juro. Tudo, juro. Nunca menti num livro. Nem mesmo na minha vida. Excepto aos homens. Nunca. E isto porque a minha mão me tinha metido medo com a mentira que matava os meninos mentirosos.
Creio que é isso que eu censuro aos livros em geral: o facto de não serem livres. Vemo-los através da escrita: são fabricados, são organizados, regulamentados, poderíamos dizer, conformes. Uma função de revisão que o escritor tem muitas vezes em relação a si próprio. O escritor, então, torna-se no seu próprio chui. Quero dizer com isso a procura da boa forma, quer dizer, da forma mais corrente, mais clara e mais inofensiva. Há ainda gerações de mortos que fazem livros pudibundos. Mesmo os jovens: livros encantadores, sem qualquer prolongamento, sem noite. Sem silêncio. Por outras palavras: ser verdadeiro autor. Livros diurnos, de passatempo, de viagem. Mas não livros que se incrustem no pensamento e que digam o luto negro de todas as vidas, o lugar-comum de todos os passatempos.
O outro trabalho, para os escritores, é aquele que por vezes envergonha, aquele que provoca, a maior parte do tempo, o mais violento remorso de natureza política. Sei que permanecemos inconsoláveis. E que nos tornamos maus como os cães da sua polícia.
O alívio dá-se quando a noite começa a instalar-se. Quando o trabalho cessa lá fora. Resta o luxo que temos, nós, de podermos escrever de noite. Nós podemos escrever a qualquer hora. Não somos sancionados por ordens, horários, chefes, armas, multas, insultos, chuis, chefes e mais chefes. E das galinhas-chocas dos fascismo de amanhã.»
[Marguerite Duras, escrever; trad. Vanda Anastácio, Difel, Outubro 2001;

9 de setembro de 2011

Agora a sério,

faz de empresário em nome individual com vivenda em Porto Covo
e prometo aquecer-te os pneus no regresso a casa.

8 de setembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«Estar só com o livro ainda não escrito é estar ainda no primeiro sono da humanidade. É isso. É, também, estar só com a escrita ainda em fase de pousio. É tentar não morrer dela.»
(Marguerite Duras)