«As conversas em família eram raras e as decisões dos progenitores não primavam pela racionalidade. O tédio da infância só podia ser combatido se enveredássemos pelo desporto e pela leitura. Esta última tinha qualquer coisa do rio edénico com quatro cabeças, partindo à descoberta dos quatro horizontes. Na leitura não havia distâncias. Através dela podia transportar-me instantaneamente para as regiões mais afastas, onde prevaleciam os costumes mais estranhos. A mesma coisa com o tempo: bastava abrir um livro para deambular pela Paris do século XVII, correndo o risco de levar na cabeça com o conteúdo de um penico, ou então podia defender as muralhas de uma Bizâncio prestes a cair às mãos dos Otomanos, ou passear em Pompeia na véspera do dia em que foi sepultada por uma torrente de lava e cinzas. A dada altura, apercebi-me de que os livros não eram apenas um meio de evasão salutar, mas que eles continham igualmente os instrumentos que permitem decifrar a realidade circundante. A pequena burguesia com aspirações a subir na vida quis perpetuar a sua ascensão e para isso dispôs-se a pagar os estudos aos filhos. Era o tempo de passar do comércio para a barra dos tribunais, para a medicina ou para a finança. E é aí que estão as verdadeiras raízes do Maio de 68: as crianças tornaram-se mais inteligentes, ou pelo menos mais conhecedoras, do que os seus pais (o que não era difícil) e começaram a levantar questões inéditas que nada tinham de absurdo e que só obtiveram um início de resposta quando voaram os primeiros paralelepípedos. Evasão e conhecimento, tudo isso passava pelos livros. Fiquei-lhes eternamente grato, uma espécie de dívida moral que ainda não acabei de saldar. Foi também uma forma de fugir aos trilhos familiares, e daí a ambição, que valia por muitas, de aproveitar a vida para ler todos os livros.»
[Jacqes Bonnet, Bibliotecas Cheias de Fantasmas; trad. José Mário Silva, Quetzal / textos breves, Outubro 2010;
1 comentário:
"as crianças tornaram-se mais inteligentes, ou pelo menos mais conhecedoras, do que os seus pais (o que não era difícil)" - adoro esta frase ;)
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