1 de maio de 2011

Nem sempre a lápis (157)

Há muito que não me dava uma destas; acordar e levantar-me às seis e meia da manhã, são que nem um pêro, fazer um café e sentar-me a trabalhar como se tivesse dormido horas seguidas. Sempre que me dão estas espertinas, faço-o com uma determinação semelhante à descrita por Nicholson Baker num pequeno livro inesquecível, A Caixa de Fósforos: «Um homem levanta-se todos os dias cada vez mais cedo, veste-se às escuras, faz café e acende a lareira com uma caixa de fósforos.»
Exceptuando continuar a fazer uma chávena de café, não conto levantar-me todos os dias cada vez mais cedo, nem acender a lareira com o que quer que seja, pela simples razão de não ter lareira. A última vez que risquei um fósforo, foi para tentar reacender o cachimbo, em Porto Covo; sem resultado, sem convicção. Mas, ao contrário do personagem que acordava progressivamente mais cedo «para esquadrinhar pensamentos que lhe povoam a cabeça e o preocupam», ou não se tratasse «de um homem domesticado, de meia idade, cujos pensamentos se desviam brilhantemente do amor e do casamento para acendalhas e suicídio num abrir e fechar de olhos», levantei-me cedo, tão cedo como a hora a que me tenho deitado frequentemente aos fins-de-semana, talvez por ter vencido o jugo de me poder sentir «um homem domesticado», e já não poder ser considerado como alguém «de meia idade». A única coisa digna de nota é a violência da luz que entra pela varanda e fere o lado esquerdo, distraindo-me suficientemente o olhar para acertar com as teclas, com o meu tronco nu e as minhas mãos, que escrevem, reflectidas no monitor; tatuagem.
Comprei o livro – acidentalmente, a capa foi determinante pela semelhança com as caixas de fósforos, Golondrina, compradas há dez anos em Bolonia – para me entreter durante o regresso de uma vinda a Lisboa no autocarro que fez Sete Rios / Lagoa (Algarve, perfilado entre parêntesis, para que os Correios não confundam com o lugar homónimo da Ilha de São Miguel, Açores), e terá sido a minha última ida ao Algarve a sonhar com cerros; com o Rif (até Jajouka). Consulto o Google para confirmar o título do livro e o nome da ilha onde fica Lagoa; meto horas extraordinárias para procurar saber um pouco mais do que uma caixa de fósforos sobre o autor: Nascido em 1957, Nova Iorque, estudou uns tempos na Eastman School of Music e recebeu o bacharelato em filosofia, tendo-se tornado conhecido e premiado com o James Madison Prémio da Liberdade, em 1977, como um fervoroso crítico «à destruição de mídia baseada em papel pelas bibliotecas. Escreveu artigos veementes no The New York Times onde criticava a San Francisco Library por ter enviado milhares de livros para um aterro sanitário, a eliminação do cartão de catálogos, bem como a destruição de antigos livros e jornais, em favor do microfilme.» Palavras da Wikipédia.
Entretanto, passaram duas horas e acabou-se o café doméstico, a violência matutina do Sol levantou-se o suficiente para desfocar a nitidez do meu tronco nu e das minhas mãos a escrever reflectidas no monitor; Olivier Rolin considera que «esta maneira um pouco sonâmbula de escrever, acontece. Não se deve abusar, mas enfim, acontece.»
Antes Paisagens Originais do que correr o risco de ir parar a um aterro sanitário. Deve cheirar muito mal, tresandar a «erudição».

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