«Lembro-me de ter encontrado, há já muitos anos, Jorge Luis Borges. Na porta da sua casa, na rua Maipú, uma pequena placa de cobre: “Borges”. La mucama, a governanta que, tenho quase a certeza, se chamava Fanny, como a avó inglesa, abriu-me a porta e conduziu-me ao salão. Ele estava ao fundo, sentado num sofá, com as mãos apoiadas na bengala, a conversar com um indivíduo. Ao longo da parede, sentados em cadeiras, outros esperavam a sua vez: um pretendia o seu patronato para um centro cultural de bairro, outro uma dedicatória, e por aí fora. Qualquer pessoa tinha acesso à casa dele, e mais tarde até me contaram que turistas americanos chegaram ao ponto de se fotografarem ao lado dele. Dir-se-ia a sala de espera de um dentista, embora no dentista não se assista aos tormentos do cliente que nos precede. Fiquei horrorizado. Não tinha qualquer espécie de pergunta para lhe fazer. Tinha lido a maior parte dos seus livros, nomeadamente o Elogio da Sombra, em cujo prólogo ele escreve: “Sem o ter planeado, consagrei a minha já longa vida às letras (…) ao misterioso hábito de Buenos Aires e às perplexidades a que, não sem alguma soberba, chamam metafísica.” Era sobre este “hábito misterioso”, e a sua ligação com as letras, as suas letras, que pretendia questioná-lo. Mas fazê-lo em público, espicaçando a impaciência dos solicitadores, nunca. Senti-me verdadeiramente arreliado quando me lembrei de que, sendo Borges cego, ele não daria por nada se eu me eclipsasse em bicos dos pés. Não seriam os outros, demasiado felizes por terem ganho um lugar, que iriam denunciar-me. Quando me retirei, fui extremamente cauteloso para não fazer ranger o soalho. Lembro-me também de que, já na rua, comprei o jornal La Razón. Noticiava que um tigre aterrorizava os habitantes dos arredores da cidade de Rosario (a palavra “tigre”, na América do Sul, emprega-se frequentemente para designar vulgares jaguares). Um tigre, ou mais provavelmente as suas acções, porque ninguém tinha visto o animal em si, ao ponto de alguns se interrogarem se não se trataria de uma brincadeira. Tinham-me dito que Borges acabava de proferir uma conferência em Rosario; eu conhecia o seu gosto por tigres e mistificações, e agradou-me imaginar que tinha sido ele, às apalpadelas no pó, quem deixara as temíveis peugadas. Nunca mais voltei a ver Jorge Luis Borges e, apesar de tudo, creio que neste caso estava inocente. Hoje tentarei responder por ele à questão que pretendia colocar-lhe.»
[Olivier Rolin, Paisagens Originais; trad. Jorge Fallorca, colecção Pequenos Prazeres / ASA, Outubro 2000]
[Olivier Rolin, Paisagens Originais; trad. Jorge Fallorca, colecção Pequenos Prazeres / ASA, Outubro 2000]
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