9 de maio de 2011

Papiro do dia (67)

«Num TGV, derrubando sucessivas muralhas de chuva erguidas sobre uma região de colinas que deveria ser Beaujolais, ou o Mâconnais, enfim, mais ou menos isso, uma mulher jovem sentada à minha frente não demora muito – circunstância muito rara, verdade seja dita – a dirigir-me a palavra, colocando-me uma questão extremamente inesperada: a literatura interessava-me? Nem mais… O que a levara a pensar isso foram os livros de e sobre Michaux colocados sobre a mesinha que nos separava. A sua curiosidade era tanto mais audaciosa na medida em que nunca tinha ouvido falar deste escritor, partindo do princípio de que se tratava de um, apesar de ser uma assídua frequentadora da livraria do seu bairro em Paris. Confirmei-lhe que era um “escritor”, e não dos menores, de tal maneira que recusara esse nome, e que de momento me interessava um pouco, na medida das minhas capacidades, por este famoso e antigo assunto das letras. Quanto a ela, contou-me que trabalhava para uma empresa belga (não há nada a fazer…) que alugava tudo o que pudesse ser alugado, “desde mamógrafos a semi-reboques”, foram as suas palavras. Como me pediu que lhe mostrasse do que se tratava, estendi-lhe a Pléiade, aberta na página de A Noite dos Búlgaros, também porque tudo isto se passava num comboio. Cadáveres lançados pela janela, cabeças batendo contra o tejadilho da carruagem, etc. Ela leu com atenção. Não era alegre, disse-me. Sim, realmente não era, mas a literatura, ou a arte em geral, tentei (não sem falta de graça) explicar-lhe, nem sempre fora obrigada a estar ligada à paródia. Além do mais, este Michaux de quem ela nunca tinha ouvido falar, também era, esforcei-me para que o soubesse, um autor terrivelmente engraçado. E, para o provar, folheei a toda a velocidade a Pléiade, e estendi-lha na página de As Minhas Propriedades, onde se trata dos Tremes, “seres misteriosos com a cabeça semelhante à do linguado, tremendo-lhes o corpo todo para comerem, comedores de formigas e outros raviots do género”. Então, os “raviots”, que tal lhe pareciam? Ela sorriu. E, sem me deter, voltei a fazer rodopiar as páginas e coloquei-lhe debaixo dos olhos A Noite dos Embaraços: “E se se oferecessem tartes com compota de cavilhas aos pobres, quantos não se gabariam de ser ricos?”. Ah!, sempre era um pouco mais escabroso que Le Clézio, não? (Este, tinha a certeza que ela conhecia). Ela sorriu bastante divertida, e teve esta expressão que me recompensou dos meus esforços de camelot literário: “Ele sabe o que quer”. E, como eu permanecia interlocutório: “Dá a impressão de apalpar o terreno, e depois dispara uma frase, de súbito, como uma flecha…”. Esta jovem sabia ler. Para mim (entre outros autores), Michaux era isso: palavras que parecem não dizer nada, de ar modesto e quase pacóvias, que nos fulminam à queima roupa.»

[Olivier Rolin, Paisagens Originais; trad. Jorge Fallorca, colecção Pequenos Prazeres / ASA, Outubro 2000 ...]

1 comentário:

imo disse...

Início fabuloso de um capítulo :)