«Chove. À mesa do restaurante, um homem explica qualquer coisa a uma mulher, qualquer coisa de inexplicável. Ele gostaria de abandonar os ensaios de felicidade que encalham regularmente. Sente-se cansado de ir atrás do prazer pelas falsas estradas das promessas, que não conduzem a lado nenhum. Não é outra mulher, ora essa, nem pensar. A liberdade. Regressar à superfície, sair do turbilhão confuso das relações que se arrastam há anos. Está farto de reconhecer em cada uma das relações as suas próprias insuficiências. Vislumbra uma vida breve, intensa, criativa. A fidelidade, os deveres cumpridos a contragosto alimentam o fogo de uma depressão permanente. Este fogo é frio como o gelo, mas animado por uma grande satisfação. “Was wussten sie, wer er war” – ninguém sabe quem ele é, e deseja que o deixem sozinho com este segredo. O rosto da mulher, que o ouve. Agora, ela deveria levantar-se, endireitar-se orgulhosa, afastar-se com um soluço a custo reprimido. Não se levanta. Então, bem, é ele que se ergue de um salto, terna e furtivamente beija os olhos da mulher, e sai do café. Não, não sai. Acena, paga. Levantam-se ao mesmo tempo. Através do vidro fustigado pela chuva, ver como saem para a rua. O homem abre o guarda-chuva. Dão alguns passos assim, lado a lado; depois, a mulher toma o braço do homem, e, após algum desacerto, corrigem o passo. Vem da porta uma leve corrente de ar que varre a sala, como o sarcasmo fugaz da inutilidade.»
[Imre Kertész, Um Outro – Crónica de uma metamorfose; trad. Ernesto Rodrigues, Editorial Presença, Junho 2009;
[Imre Kertész, Um Outro – Crónica de uma metamorfose; trad. Ernesto Rodrigues, Editorial Presença, Junho 2009;
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