15 de maio de 2011

Papiro do dia (70)

«Todos nós, seres humanos, passamos a vida à procura do nosso ponto particular de equilíbrio com o poder. O que acontece é que, nos escritores, costuma notar-se mais esse conflito. Em primeiro lugar, porque a crítica ou a análise honesta das relações de poder faz parte do nosso ofício, da mesma forma que construir bons móveis faz parte do ofício do marceneiro. Por isso, quando nos atraiçoamos, quando nos enxovalhamos, quando nos vendemos, as nossas porcarias são duplamente notórias. Porque, além disso, todos os poderes precisam de arautos e de porta-vozes; todos eles precisam de intelectuais que inventem para eles uma legitimidade histórica e uma justificação moral. Esses, os intelectuais orgânicos, são, do meu ponto de vista, os piores. São os mandarins, e esse papel pançudo de grande Buda não se exerce impunemente. Paga-se em criatividade e em graxa literária, como talvez se possa comprovar no trajecto de um Cela, por exemplo. Mas os outros também não são puros. Mais, desconfio dos puros, aterrorizam-me. Dessa pureza fictícia nascem os linchadores, os inquisidores, os fanáticos. Não se pode ser puro sendo humano. De modo que nós, os restantes, cá nos vamos arranjando, na nossa relação volúvel e escorregadia com o poder. Vamos procurando o nosso equilíbrio, como patinadores num lago congelado e pejado de perigosas placas de gelo muito fino. Às vezes, uma mesma pessoa pode manifestar comportamentos diversos: pode ser heróico diante de alguns desafios e canalha diante doutros. O celebérrimo manifesto de Zola a favor do judeu Dreyfus é sempre citado como exemplo do comportamento social e moral do escritor, e, sem dúvida, Émile teve de ser corajoso para redigir o seu iracundo Eu Acuso quase em absoluta solidão contra os bem pensantes. Mas esquecemo-nos de que, três anos antes, esse mesmo Zola se recusou a assinar o manifesto de apoio a Óscar Wilde, condenado a dois anos de cadeia nas inumanas prisões vitorianas apenas por ser homossexual. Mas, claro, nessa altura defender um sodomita, como os denominavam, era ainda mais difícil do que defender um judeu e revelava uma liberdade intelectual muito maior.»

[Rosa Montero, A Louca da Casa; trad. Helena Pitta, ASA, 3.ª ed. Abril 2008]

2 comentários:

Marta disse...

adorei lê-la neste livro; o primeiro que li dela.

fallorca disse...

Também eu