«O que faz a ligação transversal entre quase todos os escritores nascidos há um século, a curiosidade do jogo, é a obra-prima do mais velho. É Ulisses que navega entre eles. A admiração (muitas vezes perplexa) que suscita entre escritores tão diferentes como Hemingway, Borges ou Nabokov, ou Kawabata, revela experimentalmente (àqueles a que a leitura não convenceu) a força do livro que, mais do que qualquer outro, criou a gravitação literária do século XX: esta enciclopédia de todos os géneros (desde a epopeia à laracha escatológica), este formidável poço de energia verbal, esta massa de língua incontestável e paródica. É o grande pau-de-virar-tripas semi-cego, de chapéu mole, James de Dublin, Trieste, Zurique e Paris, é o protegido de Sylvia Beach e de Adrienne Monnier (uma edita-o em inglês, em Paris, proibido pela censura em Inglaterra e nos Estados Unidos; o outro tradu-lo em francês: glória à rue de l’Odéon!), que desbrava as vias do século. (…) Hemingway é o único dos cinco, se não me engano, que conheceu um pouco Joyce, em todo o caso o suficiente para o ter levado a casa, na rue Galilée, aos ombros como um grande saco de ossos. Põe-no em cena várias vezes em Paris É Uma Festa. Em As Verdes Colinas de África, é encostado a uma árvore, rodeado de pegadas de leões e de rinocerontes, pensando na guerra e na escrita, e no que faz um grande escritor, que lhe ocorre com toda a naturalidade lembrar-se de Joyce: “Era agradável”, solta ele com esta simplicidade e quase inocência que por vezes tem, “ver um grande escritor da nossa época”. Num pequeno texto intitulado Sur l’écriture, espécie de meditação sobre a verdade na literatura que originalmente terminava La Grande Rivière…, é a pescar à truta que ele evoca Ulisses… O que torna as coisas reais, pensa ele, é tirá-las de nós mesmos, inventá-las – nada de as reproduzir: “Em Ulisses, Dédalo é o próprio Joyce, e é muito mau. Joyce era de tal maneira romântico e intelectual quando comparado com ele. Bloom, pelo contrário, inventou-o, e Bloom era maravilhoso”. O que é necessário é “escrever como Cézanne pintava: sem truques”. “Joyce inventou centenas de novas maneiras. Pelo facto de serem novas, isso não as impedia de serem truques, e não melhores do que os outros. Transformaram-se todas em tiques”.»
[Olivier Rolin, Paisagens Originais; trad. Jorge Fallorca, colecção Pequenos Prazeres / ASA, Outubro 2000]
[Olivier Rolin, Paisagens Originais; trad. Jorge Fallorca, colecção Pequenos Prazeres / ASA, Outubro 2000]
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