«Vejo, vivo a pavorosa degradação deste país, o seu naufrágio suicida na paranóia. Todos os dias me afastam dele os campeões nacionais do ódio e as minhas próprias recordações. Como cresce a minha indiferença em relação a ele! Como procuro, a pouco e pouco, separar-me dele! A língua – sim, a única coisa que a ele me liga. Que singular. Esta língua estranha é a minha língua materna. Língua materna, na qual compreendo os assassinos. Agora, dizem-me repetidamente que “mudei”. Para melhor? Para pior? Tenho a impressão de que é para melhor, e também que me recebem mal. Há dias, V. repreendeu-me: “eu perdera a minha profundidade”, falo de direitos de autor e de questões materiais. Mas como? Dever-se-á ao estatuto de prisioneiro e ao infantilismo da ditadura a minha “profundidade”? Terei vivido quarenta anos contra a minha própria natureza e, no fundo, contra a natureza? Não é de excluir… Até eu dou conta da minha mudança, embora, é verdade, de outra maneira. Agora, distingo-me mais claramente dos que me rodeiam, dou ares de quem se eleva acima deles, quando só me agarro, imóvel, não me abismo como eles nas águas profundas da depressão, como até aqui, e isso é visto como um desafio, mesmo como falta de solidariedade, uma traição. No horizonte, a chama vacilante e mal perceptível de uma vela iluminou-se para mim, e consideram-na já como anúncio de luto, o limiar da minha decrepitude. É um momento estranho, uma paragem estranha, antes que os caminhos se bifurquem, e, se eu não receasse a fadiga, podia, aqui, estabelecer algumas correlações místicas e enfaixá-las em ramo, como flores multicolores apanhadas à beira da estrada. Antes de mais, uma coincidência temporal: o Gályanapló [Diário da Galera ou das Galés, 1992] foi redigido e apareceu no momento em que a mudança de um modo de ser particular (a minha) foi de encontro à mudança de um modo de existência mais geral (a do país). Sei que esta coincidência não pode jogar a meu favor: enquanto, na grande galeria do mundo, cai o véu a aparece uma paisagem devastada, ergue-se, num canto pequeníssimo, saído dos escombros (ainda que frágil, talvez, e longe de ser perfeito), um edifício; uma tal criatividade – sei bem, também sinto – não tem desculpa. Eu podia continuar, mas uma espécie de incerteza vacila em mim, uma espécie de nostalgia irreprimível. Pois eu também receava pela minha solidão, pelas horas íntimas de leitura e de mortificação, pela força haurida no isolamento, por esta resistência que é, há muito, a minha maneira de ser, isto é, de viver constantemente face a forças de destruição, digamos: vivia, enfrentando-as, qual flecha retesa… Isso era uma grande aventura, uma alegria que eu vivia, resolutamente, sem alegria, e, agora, é assim que a vejo, como um velho vê a juventude.»
[Imre Kertész, Um Outro – Crónica de uma metamorfose; trad. Ernesto Rodrigues, Editorial Presença, Junho 2009]
[Imre Kertész, Um Outro – Crónica de uma metamorfose; trad. Ernesto Rodrigues, Editorial Presença, Junho 2009]
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