23 de maio de 2011

Nem sempre a lápis (167)

Saí convicto de ter metido no bolso o lápis acabado de afiar, pelo sim, pelo não. Dei uma voltinha pelos arredores do Sol, que se põe sempre para o mesmo lado, visto pela porta de Duchamp. Chegado à esplanada, não o encontrei e tive de recorrer a uma esferográfica para anotar como ando a apreciar, mais do que esperava, o que chamo a inocência da escrita de Rosa Montero, descoberta em A Louca da Casa. Não era o livro que me levou à abertura da Feira, mas é o primeiro que leio dos quatro adquiridos; creio ficar por aqui. Em 2004, desencontrámo-nos na Póvoa de Varzim e não me lembro se assisti à mesa em que Rosa terá, por certo, participado. Sempre prestável, o Google informa que o tema foi «Escrever porquê? Escrever para quê?», mas não ofereceu César Aira disponível em português*. Como se continuasse a palestra que terá tido origem, divago, na presença da autora no lançamento do livro, desconcertam-me as opiniões, bem fundamentadas, sobre o acto e o ofício de escrever e os seus protagonistas, os escritores; a atitude recta, tão humanamente falível quanto possível, e isto, não é corrente. Daí que me deliciem, por exemplo, as referências a Walser – não é autor de que Rosa goste em particular, preferindo Naipul, Theroux, Aira, mas eu aprecio e fiquei a babar pelo último –, posteriores às afirmações sobre o autor de Bartleby; terreno literário movediço. Um pouco mais adiante, ainda vou a meio e com receio de terminar o livro, Rosa detém-se sobre a ambição da imortalidade como uma doença que ataca todos os escritores; parece não admitir excepções, o que é estranho para uma regra. Conta o caso do repórter do Daily News de Nova Iorque – colega da autora de A Casa da Louca, que trabalha exclusivamente para o El País desde 1977, embora não faça a necrologia –, Lowell Limpus redigiu a sua própria: «Esta é a última das 8700 histórias escritas por mim que aparecerá no News. Tem de ser a última porque faleci ontem… Escrevi a minha própria necrologia porque conheço melhor do que ninguém o sujeito em questão e prefiro que seja mais sincera do que florida.» Rosa duvida sobre a justeza do que é afirmado, se nos conhecemos melhor do que ninguém, para terminar o saboroso capítulo 12 da seguinte forma: «Se pensasse [escreve] hoje no que gostaria que pusessem na minha necrologia, creio que me bastaria [pensa] que pudessem dizer: “Nunca se contentou com o que sabia.”». A autora de A Casa da Louca continua a revelar desconhecimento da presença de anões, numa escrita monumental e límpida. Se isto não é inocência, eu não passo de um fingido. Quanto ao lápis, recordo, como não estava deitado quando saí, ficou em casa enfiado no seu território; a afiadeira, aguçadeira, apara-lápis, depende.
* [«O Google é mentiroso» (Vila-Matas). Como Me Tornei Monja e Aventuras de Um Pintor Viajante; col. Outros Lugares / Assírio & Alvim.]

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