6 de novembro de 2010

À mão de ler (104)

«Fui encontrá-lo no seu gabinete da cave da fortaleza, onde de manhã expedia relatórios para Orsenna. Algo de preservado e de monacal flutuava naquela sala, que parecia com o tempo ter-se torcido à sua volta como a concha à volta do molusco, e à qual bastava o seu pesado perfil sentado para acrescentar um último toque de plenitude, para perfazer uma obra-prima impressionante de adequação. Ao fundo da perspectiva do corredor estreito, que era como que a sua moldura, como naquelas telas em que a magia parece surgir de um cúmulo improvável de equilibro, quase se esperava vê-lo miraculosamente mexer-se. Era efectivamente o verdadeiro Marino que eu tinha à minha frente e que ia combater: de conivência com as coisas familiares, apoiado sobre elas e sustentando-as com o seu volume protector – uma barragem de obstinação doce e tenaz contra o inesperado, o súbito, o alheio. O cachimbo, poisado em cima de uma pilha de processos, era um desafio ao barril de pólvora. A mão lenta e aplicada de lavrador bordava a tinta grossa, através das páginas o sulco quotidiano. Uma longa sequência de dias iguais, de dias sem data e sem segredo, forjara aquela armadura inalterável que ao tocar-lhe dissipava os fantasmas, calafetara aquela sineta de mergulhador onde – para sempre e suavemente – se consumava um poderoso mistério de hábito.»
[Julien Gracq, A Costa das Sirtes; trad. Pedro Tamen, Vega ISBN-972-699-035-1;
niu luque]

4 comentários:

MCS disse...

Já tanta gente me recomendou este livro... mais cedo ou mais tarde vou pegar nele.

Já agora, arranco hoje com o Cossery, "As cores da infâmia". É o último dele, eu sei, mas apetece-me começar por aqui.

fallorca disse...

MCS, o começo de (leitura) um autor é precioso ;)

Cristina Gomes da Silva disse...

As cores da infâmia são imperdíveis. Acho eu.

fallorca disse...

E acha tão bem como eu