8 de novembro de 2010

Nem sempre a lápis (102)

«Diários daqueles em que se anotam minuciosamente os sentimentos, até agora só tive um. Na adolescência. Quando o meu pai o descobriu e julgou encontrar nele a provável razão de, com os meus amores, eu ter descurado o estudo, obrigou-me a ouvir a leitura irónica e declamada que dele fez. Eu tinha dezasseis anos, a humilhação deixou marcas. Hoje, as ameaças desse dia e os insultos e bofetadas que me deu depois, já não contam. Mas mais que a dor e a humilhação física, o ele ter violado os meus pensamentos e anseios íntimos foi das coisas que nunca consegui esquecer ou perdoar.»
E é assim, lida a contracapa – à lupa, à Joyce – com um indisfarçável nó na garganta, que me ponho a pensar: anda toda a gente aos gritos, toda a gente indignada (o toda, é da hora) com o descrédito em que caiu a edição do livro e o livro por arrasto (o toda, é indissociável da generalização), mas ainda ninguém se lembrou que há males que podem vir por bem. Neste momento, o que mais me apetecia era pegar no telefone e ligar para uma book-hut, uma livro-na-brasa e encomendar uma dose de Tempo Contado. «Deseja o seu pedido em link ou em papel?», ficciono para ver se estimulo o interesse de algum jovem empresário. Não, homem, com contracapa. Ah, e basta tocar a campainha só uma vez; depois das oito da noite, tenho de descer para abrir a porta da rua. «Número quatro, sétimo esquerdo?», rebobina a gravação para, enquanto confirmo o endereço, inserir os dados no GPS. «O seu pedido será satisfeito dentro de meia hora.» Era mesmo o que me apetecia para ir nadar no conforto do leito, enquanto ouço uma motoreta às voltas na praceta, a entregar pizzas.

6 comentários:

sonia disse...

Só de pensar no que seu pai fez, fico indignada. Como tenho Vênus em Escorpião, guardaria uma raiva eterna que nem com vingança se aplacaria. Imperdoável o que ele fez! Foi pior que um estupro. Ele estuprou sua alma. (desculpe o desabafo, mas quando li parecia que foi comigo).

fallorca disse...

Sónia, há um equívoco: o texto transcrito da contracapa de «Tempo Contado», foi uma experiência vivida por J. Rentes de Carvalho; poucos anos depois, com a mesma idade (16 anos) vivi uma semelhante, e não foi só o meu pai que «estuprou a minha alma», como disse... e, infelizmente, bem.
Mas já que está nessa, nós, os Gémeos, «voamos» sobre as ruínas. Pode ser de lado, voos curtos e atordoados, mas voamos!

Cristina Torrão disse...

Lol!

Sim, para aguentar o barulho da motoreta, mais valia ser por causa de livros...

fallorca disse...

Aproveite a ideia, prometo ser um cliente fiel ;)

redonda disse...

Este foi o livro que trouxe hoje comigo da Bertrand para aproveitar a 2ª Segunda feira :)

fallorca disse...

Conto apanhá-lo (entre outros, estes catálogos desgraçam-me!!!) esta semana :)