12 de novembro de 2010

Nem sempre a lápis (104)

Este livro – O Americano Tranquilo (Graham Green) – não é meu; veio integrado no recheio de uma prateleira. O registo de propriedade é uma foto da Nico, adolescente, utilizada como marcador na página 106, a participar numa récita, num sarau do colégio da Covilhã. Traduzido por P. J. Morais e capa e fotografia de Licínio de Melo, «Esta edição Unibolso – Biblioteca Universal foi realizada por acordo com a Editora Ulisseia». Quando, não se sabe; na penúltima página, consta a discrição de ter sido «Composto e impresso por Gris Impressores, S. A. R. L. (Lisboa-Cacém) para os Editores Associados, Lda.»; no canto superior direito da primeira página, figura o preço 20.00 escudos, marcado a lápis. «Sentada no chão, uma mulher amparava no colo os restos do seu filho: por uma espécie de modéstia, cobria-o com o seu chapéu de palha de camponesa.», lê-se na contracapa sob o canto oposto à foto do autor, Graham Green. No verso do marcador fotográfico, tecnicolor, anotaram um surpreendente 25.00, também a lápis e que se adivinham escudos contemporâneos da edição do livro; na frente, quatro meninas levantam a pernoca com os bracinhos no ar, vigiadas por um friso de seis vestais, estáticas e vestidas com longas túnicas cinzentas, como se acautelassem o decoro entre as ceroulas no palco e a comoção paternal na plateia. Detestei sempre essas cenas, festas de finalistas, jogos florais – a menos que metessem baile, quando o público se fosse embora –, mas passo-me, entrego-me a conversas com leituras vadias; encontre-as eu. Comecei a apreciá-las na Trama, até uma noite dar por mim a ler à desgarrada com o Miguel Manso, acompanhado por um espontâneo à guitarra portuguesa; depois, puxei pelas cordas vocais e paguei também umas rodadas de um Curso Intensivo de Jardinagem, no Bar da Barraca, até chegarmos ao fim do livro e voltarmos ao princípio, porque «o princípio de um livro é precioso»; finalmente, assisti a duas leituras no extinto Bar na Cave do Miguel Martins, uma (Marta Chaves) com público que excedeu a dimensão íntima da mesa junto ao balcão, onde decorreu a última (Renata Botelho). Há uns dias atrás, despertou-me a curiosidade que uma das fontes de tráfego fosse o blogue de um Clube de Leitura do Colégio de Nossa Senhora da Boavista, em Vila Real; e que bons olhos o vejam. Fui ver do que se tratava e esperava-me um vídeo clipe pronto a utilizar, onde creio ver no início da sequência dos diaporamas a preto e branco, o sereno perfil de Pires Cabral. Embalado pelo som eléctrico do cravo, da espineta, o que mais me fascina, o que mais me comove, são as expressões; de quem lê e do público, que muitas vezes ouço como marcador de leitura do blogue.

6 comentários:

maria disse...

Passaram já 3 anos. Completamente à rasca com contas para pagar, a única coisa que tinha à mão, para venda, eram os livros. Comecei a empilhá-los no chão e não aguentei nem 3 pilhas até desatar num pranto. Ainda cheguei a propôr à biblioteca local uma aquisição, que não teve resposta.

Uma espécie de verdade veio à tona poucos dias depois, com o secar do pranto. O que me custava era vendê-los, porque dá-los e vê-los chegar às mãos certas é do melhor que há.

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Bai de uei: de ilustrachon iznótane égzagerachon, nótedizetaime :)

fallorca disse...

Até sou muito comedido, e a prova encontra-se sobre a prata ao lado do cinzeiro. Fiufiu...

Bárbara disse...

Quando se lê poesia a alma levemente se vai transformando a cada palavra proferida; os nossos olhos passam a ver mais que um simples bocado de papel rabiscado: contemplam as planícies cobertas de arco-íris, o azul do mar ou o negro céu coberto de estrelas. Podemos retirar os mais variados significados do que vamos observando. Gostamos daquilo que fazemos, de escrever, ler e fazer teatro.
E por isso adoramos tanto o nosso pequeno grande Clube de Literatura (:

(Ao ler a publicação deu-me um "ataque momentâneo" de inspiração)

Cumprimentos (:

A Bárbara do Clube de Literatura "Cronópios e Famas"

fallorca disse...

Que o «ataque» lhe tenha sabido bem :)

MCS disse...

Eu tenho essa edição do G. Green :-)

E o precioso que é voltar ao início de um livro quando chegamos ao fim... principalmente quando gostámos desse livro.

fallorca disse...

Um «fantasma» teve a gentileza de me levar, pelas linhas, palavra a palavra, até «A Casa de Papel»; terminada a leitura e obtida a «licença de habitação», agora ando às voltas sem saber onde tenho «A Linha de Sombra» (J. Conrad) ;)
Os livros falam para caraças, são uns «desordeiros»; as voltas que já dei às estantes e caixotes