«Uma senhora muito rica foi a uma festa, e entre outras coisas usava uns brincos com quatro esmeraldas cada um, grandes como chávenas de café. De repente deu-se conta de que lhe faltava um; apesar de procurarem em todos os divãs e tapetes, não o encontraram. Como custava milhões, e as senhoras ricas são muito apegadas às suas coisas, que custam sempre milhões, houve um grande escândalo, que até veio nos jornais. Os convidados concordaram em ser revistados ao sair, mas o embaixador do Paraguai, que estava presente, negou-se, e não se fez a revista. Claro, ele foi o principal suspeito. A chancelaria tomou conta do assunto, e o embaixador foi chamado ao seu país e demitido. Um ano depois, a senhora foi a uma festa no Palladium. Qual não foi a sua surpresa ao ver Sergio Vicio na pista de dança, com as quatro esmeraldas penduradas numa orelha. Os seus guarda-costas foram logo buscá-lo e trouxeram-no em ombros. Ela estava com um coronel, com o ministro do Interior, com Pirker e com a senhora Miterrand. Colocaram uma cadeira extra e sentaram Sergio Vicio. Como a conversa na mesa fora em francês, a senhora perguntou-lhe se falava essa língua. Sergio disse que sim. “Há uns tempos – contou-lhe ela –, perdi um brinco semelhante ao que usas. Pergunto-me se será o mesmo.” Sergio olhava para ela, mas não a via (nem ouvia). Estivera duas ou três horas a dançar sem parar, coisa que faz com frequência pois adora dançar, e a interrupção súbita do movimento provocou-lhe uma descida de tensão. Era a primeira vez que lhe acontecia pois sempre, por instinto, deixava de dançar gradualmente, e depois saía para passear até amanhecer. O efeito deste acidente foi ter perdido a visão; tudo se foi cobrindo de pontinhos vermelhos, e não via nada. Isso chama-se “hipertensão orto-estática”, mas ele não sabia. Outros sintomas que acompanham a perda da visão são a náusea, que ele não sentiu porque havia dois ou três dias que não comia nada, e a vertigem, à qual estava tão habituado devido à sua experiência da indolência, que longe de o incomodar ou alarmar, entreteve-o durante o resto da cena, que passou para o espaço cósmico. A senhora, um ás no manejo dos dedos, desprendeu-lhe o brinco da orelha de uma maneira que pareceu um passe de magia. Ora bem, nessa noite, nessa festa, em honra dos músicos da ORTF de visita ao país, o Palladium inaugurava um sistema de luzes de radiação de quark, o mais moderno da tecnologia. E acenderam-nos precisamente nesse momento. Na mesa estavam tão distraídos com a presença de Sergio Vicio que não ouviram o anúncio feito através da instalação sonora. Quando a senhora tirou o brinco da orelha e o levantou pelo ganchinho para que todos o vissem, começou a dizer “Estas esmeraldas…” Foi tudo o que conseguiu pronunciar pois as novas luzes, trespassando as pedras, tornaram-se transparentes como o mais puro cristal, sem o menor rasto de verde. Ficou boquiaberta. “Esmeraldas? – disse a senhora de Miterrand –, mas são diamantes! E que água! Nunca vi semelhantes.” “Ora, diamantes! – disse Pirker –, onde os iria buscar este vadio. São bugigangas da avó atadas com arame.” A dona, paralisada, abria e fechava a boca como um peixe sem cauda. Nesse momento, já soavam as primeiras notas de Pierrot Lunaire. Boulez, nem menos, estava no palco, e a fantástica Helga Pilarczyk como recitadora. A atenção dos personagens deslocou-se para a música. Nenhuma esmeralda tornada diamante podia comparar-se com as notas lívidas da obra-prima. A mais elementar elegância ditava a supremacia da música sobre as pérolas. A senhora, com movimentos de autómato, movimentos que duplicavam e invertiam os anteriores, pendurou a jóia no lóbulo de Sergio Vicio e viu, em angustiado silêncio, como os seus guarda-costas, interpretando mal as coisas o levantavam em braços e levavam de volta para a pista de dança, onde começou a mexer-se, indiferente à música, até recuperar a visão e sair, sempre com o piloto automático. E ela nunca voltou a ver as suas esmeraldas.»
[César Aira, Como Me Tornei Monja; trad. José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, Novembro 2005]
[César Aira, Como Me Tornei Monja; trad. José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, Novembro 2005]
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