Esta história pode servir de introdução à economia do mundo de Kafka. Ninguém disse que as deformações que o Messias virá corrigir um dia, sejam apenas aleijões do nosso espaço. São-no também do nosso tempo. Kafka certamente que deve ter pensado nisso quando fez dizer ao seu avô: “A vida é extraordinariamente curta. É tal a sua brevidade na minha memória que não compreendo como é que um jovem, por exemplo, pode decidir ir a cavalo até à aldeia vizinha sem temer que – descontado qualquer desgraçado acidente – o lapso de uma vida normal e feliz possa ser demasiado breve para uma tal viagem”.
A porta da justiça é o estudo. E no entanto Kafka não se atreve a associar a este estudo as promessas que a tradição associava ao estudo da Tora. Os seus ajudantes são sacristães que ficaram sem paróquia; os seus estudantes, escolares sem escrita. Agora já nada pode detê-los na sua viagem “alegre e vazia”. Kafka, porém encontrou a lei da viagem dele: pelo menos uma vez conseguiu adaptar o seu ritmo trabalhoso a uma cadência épica, tal como durante toda a vida o procurou, confiando tal lei a um esboço que resultou no mais perfeito, e não só pelo seu carácter de interpretação.
“Sancho Pança nunca se gabou disso, mas com o passar dos ano, consumindo as noites a devorar histórias de cavalaria e aventuras, tanto conseguiu transtornar o seu demónio que o fez sair de si e lançar-se desenfreadamente nas empresas mais loucas. Acções, aliás, que não faziam mal a ninguém, à falta do objecto predestinado que deveria ter sido precisamente Sancho Pança. Mais tarde, deu a esse demónio o nome de Don Quixote e, movido por um sentimento de responsabilidade, seguiu-o calmamente nas suas correrias e desmandos, daí extraindo, até ao fim dos seus dias, grande alívio e útil distracção”.
Louco pacífico e ajudante não ajudado, Sancho Pança mandou à frente o cavaleiro. Bucéfalo sobreviveu ao seu. Pouco monta distinguir entre homem e cavalo: o importante é tirar o peso de cima.»
Sem comentários:
Enviar um comentário