14 de janeiro de 2012

Papiro do dia (172)

«A tolice não é o meu forte. Vi muitos indivíduos; visitei várias nações; tomei parte em cometimentos vários de que não gostei; quase todos dias comi; e de mulheres também tenho que contar. Revejo agora as centenas de caras, dois ou três espectáculos, e talvez a substância de vinte livros. Não retive o melhor nem o pior das coisas: ficou como pôde.
Esta aritmética poupa-me o espanto de envelhecer. Poderia igualmente contar os vitoriosos momentos do meu espírito, imaginá-los juntos e isolados, a formarem uma vida feliz… No entanto, estou em crer que me julguei sempre bem julgado. Raramente me perdi de vista; detestei-me, adorei-me; – depois envelhecemos juntos.
Supus muitas vezes que tudo estivesse acabado para mim, eu estivesse a terminar-me com todas as forças, ansioso por esgotar, esclarecer, qualquer dolorosa situação. Fez-me isto saber que apreciamos muito excessivamente o nosso pensamento, segundo a expressão do pensamento alheio! Desde aí, os biliões de palavras que andaram a zumbir-me nos ouvidos muito raro me abalaram por aquilo que se queria fazê-las dizer; e as que eu próprio disse a outros senti sempre que se faziam distintas, todas, do meu pensamento; – por ficarem invariáveis.
Decidisse eu como decide a maior parte dos homens, e não só haveria de julgar-me como parecer-me superior a eles. Preferi-me. Ser superior chamam eles a um ser que se enganou. Para nos causar espanto há que vê-lo – e para ser visto tem de se mostrar. E mostra-me então que é invadido pela mania simplória do seu próprio nome. Por isto, cada grande homem fica maculado com um erro. Todo o espírito que achamos forte começa pelo erro que o revela. Em troca da gorjeta pública concede o necessário tempo para se fazer perceptível, transmitir-se a energia dissipada e preparar a satisfação alheia. Chega ao ponto de comparar os informes jogos da glória com a alegria de sentir-se único – grande, singular volúpia.
Divertia-me apagar a história conhecida por baixo dos anais do anonimato. Invisíveis na sua vida límpida, quem sabia sempre antes dos outros eram pessoas solitárias. Parecia-me que duplicavam, triplicavam, multiplicavam na escuridão cada pessoa célebre – elas, desdenhosas de revelarem a sua boa sorte e os particulares resultados que tinham obtido. Ao que sinto, teriam recusado tomar-se por outra coisa que não coisas…
Estas ideias vinham-me à cabeça em Outubro de 93, nos momentos de ócio em que o pensamento se entretém, apenas, a existir.
Eu já começava a não magicar muito nisto quando conheci o Sr. Teste.
[Paul Valéry, O Senhor Teste; trad. Aníbal Fernandes, Relógio d’Água, 1985]

2 comentários:

ZMB disse...

Gostei muito,
é este um texto com o qual eu me consigo identificar.
hoje, sábado às 15h ao ler esta posta, fico a pensar que há memes que navegam e que se transformam sem explicação científica em sincronicidades.
não soubesse eu já o que sei e sucumbiria uma vez mais à loucura. estas pequenas coisas rodeiam-me e já não são especiais, já não cismo com elas, são pormenores de uma versão muito pessoal de um livro de Charles Fort
obrigado por partilhar e se a sua visita futura se confirmar no mesmo local no porto, tentarei ir à sua nova festa.

fallorca disse...

A verificar-se, gostarei de o conhecer
Abraço