«Dave tinha sempre uma folha de trabalho na frente, na qual praticava a arte da caligrafia. Estas folhas constituíam um registo cronológico dos acontecimentos quotidianos no departamento dos boletineiros. No canto superior da folha desenhava à régua um pequeno quadrado, onde elaborava em fiel boletim do estado do tempo. A inclusão do boletim meteorológico não era uma simples idiossincrasia de Dave. Era o grande álibi do departamento dos boletineiros… Dave considerava estas folhas com o mesmo fervor com que um lama venera a sua caixa de orações.
Outro curioso hábito de Dave era o seu costume, logo que chegava de manhã, de afiar os seus lápis. Por mais chamadas que viessem pela linha, Dave tinha de afiar primeiro os seus lápis. O seu argumento era que, se adiasse essa importante tarefa, os lápis nunca seriam afiados. E, na ideia de Dave, inscrever os seus caracteres numa delicada, legível e ornamentada caligrafia era uma questão da maior importância. Tratava-se da sua orgulhosa contribuição para o serviço dos boletineiros, o registo que permaneceria depois de ele se ir embora, a atestar em símbolos doirados a sua indústria e meticulosidade.
Alguns dos boletineiros eram mulheres. A estas, submetia-as a um rígido escrutínio quando se candidatavam a emprego. Guardava as moradas das bonitas numa agenda. Quando as coisas ficavam monótonas, consultava essas moradas e começava a telefonar-lhes – primeiro às que tinham uma estrela a seguir ao nome.
Registava os resultados destas observações e experiências com elaborados e diligentes esforços num diário de folhas soltas que guardava no gabinete. Este diário continha também excertos dactilografados das obras dos autores que admirava com um fervor quase idolátrico. Confiava à secretária o trabalho de transcrever esse material. Não se podia propriamente dizer que não se apercebesse do efeito que essas revelações provocavam na mente da esperta e lasciva virgem que lhe servia de secretária. Ela aceitava a tarefa com a serenidade de um censor. Moloch contemplava-a com o interesse que um criador poderia dedicar a uma novilha premiada.»
[Henry Miller, Moloch; trad. J. Teixeira de Aguillar, jornal "Público", Colecção Mil Folhas, Março 2004]
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