«Infelizmente prosseguiu Moloch –, para a maioria de nós a Índia não tem mais realidade do que um sonho de ópio. Quando o débil Mahatma se lança no seu miado com uma barrigada de revelações estatísticas, provoca no mundo um choque distinto. Quem é que quer saber dos milhões de Intocáveis, das quarenta e nove seitas e línguas antagónicas, do interminável esquema de castas e faquires, de sujas cavernas e templos de devassidão? Não, o prefere acreditar que a Índia não é apenas uma terra, noventa por cento de cuja população está continuamente à beira da inanição, uma terra assolada pela cólera e pelo escorbuto, mas algo mais, algo que está bem para além da confusão de massacres, vício, legislação e ignorância crassa. Quando os inchados bois brancos castrados de Shiva se tiverem sumido, quando as panças dos brâmanes, retesadas como tambores, tiverem desaparecido, juntamente com os seus eruditos tractos nos órgãos digestivos, o que restar da Índia continuará a constituir, quer-me parecer, um teatro-piolho de mistério, horror e fanatismo. A Índia será sempre o lugar onde a religião constitui o primordial constituinte diário do homem. Os filhos da Índia nunca permitirão que a religião se torne a coisa reles e fraccionada com a qual os europeus se satisfazem. Nas suas mãos manter-se-á sempre um singular e intangível produto da terra, algo que sobreviverá às nossas “quadrigas de luta” e “coches de vento”, ao altifalante e ao fórceps. Daqui a dez anos mil anos, quando o mundo estiver doente e seguro para a democracia, e todo o Manel tiver a sua Maria, o alvorecer continuará a erguer-se como um trovão vindo da China pela baía fora. E pelos flancos virgens do Monte Evareste correrão riachos de safiras! Quanto a isso, os vossos mandriões cósmicos acertaram na profecia. Nessa altura poderemos efectivamente passar sem automóveis urbanos e Grande Ópera, sem elevadores e metropolitanos, sem fábricas de cimento e arquitectura babilónica, sem quartetos vocais masculinos e anticoncepcionais que não anticoncepcionam… Palavra de honra, não restará nada deste mundo moderno a não ser um fedor.»
[Henry Miller, Moloch; trad. J. Teixeira de Aguillar, jornal “Público”, Colecção Mil Folhas, Março 2004]
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