2 de janeiro de 2012

Papiro do dia (166)

«O mundo de Kafka é um Teatro Universal. Para ele, o homem encontra-se naturalmente em cena. E a prova é que todos são aceites no teatro natural de Oklahoma. É impossível compreender os critérios que regulam as admissões. À aptidão declamatória que em princípio poderia parecer importante, não se atribui qualquer importância: só se pede aos candidatos que representem o papel de si próprios. Que possam ser seriamente o que dizem ser, é coisa que sai do campo do possível. Os actores com os seus papéis procuram asilo no teatro natural, tal como as seis personagens de Pirandello procuram um autor. Em ambos os casos, o que procuram é o refúgio derradeiro, e isso não exclui que esse lugar seja a redenção. A redenção não é um prémio atribuído à vida: é antes o último refúgio de um homem que, como dizia Kafka, tem “o caminho bloqueado pelo seu próprio osso frontal”. A lei deste teatro está contida numa frase da Comunicação a uma academia: “Imitava-os porque procurava uma saída; por nenhuma outra razão”. Um presságio de tudo isto parece aflorar em K. antes do fim do seu processo. Volta-se imprevistamente para os dois senhores de chapéu alto que vêm buscá-lo e pergunta-lhes: “Em que teatro trabalham?” – “Teatro?”, admira-se um deles, enquanto se volta para o outro, como que a pedir-lhe conselho. Depois ficam ambos mudos. Não respondem à pergunta, mas tudo leva a crer que os deixou impressionados.»
[Walter Benjamin, Kafka; trad. e intrd. Ernesto Sampaio, Hiena, Novembro 1987;
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