23 de setembro de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (39)


«Imaginemos que uma mulher chega a casa e surpreende o marido a examinar a sua própria merda com um palito. Imaginemos que este homem nunca mais regressa do seu ensimesmamento e que ela tem de interná-lo numa clínica para doentes mentais no Norte do país. O nosso livro começa na manhã seguinte, quando essa mulher regressa a casa de comboio, depois de ter terminado o processo do internamento, e o homem que está sentado ao seu lado, um homem jovem, de nariz proeminente, olhos irrequietos e alopecia prematura, que veste um fato azul-marinho e tem em cima dos joelhos uma peculiar pasta de cor vermelha, se dirige a ela com esta pergunta tão peregrina:
- Gostava que lhe contasse a minha vida?
Que raio de pergunta. Ao ouvi-la, a nossa mulher, de aspecto mais elegante e distinto, uns anos mais velha, embora de estatura pequena e, como se costuma dizer nestes casos, de fisionomia agradável e olhos vivazes, fica petrificada. O homem ri-se de uma maneira que a ela lhe parece aberta e franca, e esclarece que é uma piada, uma maneira como qualquer outra de quebrar o gelo, porque a viagem até Madrid é muito longa.
- Chamo-me Ángel Sanagustín – diz –, sou psiquiatra e trabalho na clínica onde a senhora acaba de internar o seu marido; vi-a por lá esta manhã. Não sei se o doutor Crespo lhe falou de mim, trabalho na aplicação do discurso escrito ao diagnóstico das perturbações de personalidade; pedimos ao paciente que conte um episódio da sua vida por escrito, analisamos a sua narrativa e a seguir podemos fazer o diagnóstico. Também vamos fazê-lo com o seu marido e, além disso, com muito gosto, porque os textos dos coprófagos são muito divertidos e acabam sempre por me fazer rir. Esta pasta tão atraente é um livro que estou a preparar sobre a esquizofrenia e as perturbações paranóicas, que incluirá textos dos meus pacientes. Por isso, tenho de lhe pedir autorização para acrescentar algo do seu marido; as narrativas dos coprófagos são as mais curiosas; já agora, se quiser, leio-lhe uma.»
[Antonio Orejudo, Vantagens Em Viajar de Comboio; em revisão para a Minotauro;

2 comentários:

sonia disse...

Primeiro não me cheirou bem....rsrs ao final do texto já fiquei curiosa em ler esse livro. Deve ser, no mínimo, instigante a criatividade desse autor!

fallorca disse...

É que nem lhe passa pela cabeça o que sejam «Vantagens em Viajr de Comboio» ;)