8 de junho de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (88)

«O normal, entre os taxistas que desempenham estas proezas é um comportamento burocrático, rotineiro. Trocam quatro palavras secas connosco e largam-nos, com a devida eficácia, no hotel, e é tudo. Mas o meu taxista parecia estar com vontade de falar e de se imiscuir nos meus assuntos. Quando viu que o meu francês era imperfeito, propôs que falássemos em português, a sua língua materna. Uma chatice, porque falo pior português do que francês.
A meio do trajecto confessou-me que não sabia muito bem como se chegava ao Hôtel des Artistes, onde eu devia ficar hospedado. Depois de me explicar que lhe tinham dado a carta de condução só há três dias, começou a aproveitar os semáforos dos subúrbios de Lyon para consultar um mapa da cidade, ao mesmo tempo que me explicava em português as suas dúvidas e grandes confusões.
De há um tempo a esta parte, nas minhas viagens ao estrangeiro para conferências ou congressos literários, gosto de jogar durante um bocado a sentir-me um homem de negócios recém-chegado a uma cidade estranha, com um horário muito apertado e uma pasta, não cheia de textos sobre literatura, mas de estudos e projectos, como por exemplo, marketing de ponta, que é uma palavra, naturalmente, que desconheço por completo. É uma maneira como qualquer outra de jogar a sentir-me outro e, além disso, de me julgar um ser ridiculamente importante durante uns minutos. Os taxistas são as minhas vítimas ocasionais dessa breve troca de personalidade. Mas nesse dia em Lyon, não contava com o lado excêntrico e a tendência para se intrometer na minha vida, do lado do taxista novato.
- E em que é que o senhor trabalha, mais exactamente? – perguntou finalmente, num português quase tão torpe como o meu.
Preferi não fingir mais. Bem vistas as coisas, no meu imaginário já tinha sido «um executivo» durante tempo mais do que suficiente.
- Escrevo – disse. Longo silêncio. - Seguramente, você julga que um escritor não trabalha – decidi-me a dar relevância à notícia. – E não só, seguramente, você julga que um executivo, por exemplo, ou um político, se dedicam a algo importante, mas que um escritor, pelo contrário, não é algo que se possa levar a sério, não é assim? Também desta vez não me respondeu. No semáforo vermelho a seguir, voltou a consultar o mapa. Era assim tão difícil encontrar o Hôtel des Artistes?
- Sabia que a literatura é uma invenção essencial dos homens? – ocorreu-me então dizer-lhe. – Na realidade, é a criação mais valiosa da humanidade na sua tentativa de se entender a si mesma.
Não pareceu surpreendido com as minhas palavras e continuou a consultar o mapa.
- Muita gente – continuei a dizer – parece não estar ao corrente disto. Mas nós, a humanidade, não seríamos nada sem a linguagem, sem a literatura.
Longo silêncio. Começou a dobrar o mapa. Deu à chave, arrancou.
- E diga-me, é bom ser-se escritor? – perguntou. Parecia querer gozar comigo. E se assim não era, parecia. Preferi não responder, mas gostava de lhe explicar sem complexos que, por exemplo, quando um escritor se isola a trabalhar em solidão está a pôr, consciente ou inconscientemente, uma grande fé na humanidade, porque crê que todos os seres humanos são parecidos e portanto devem levar dentro de si feridas semelhantes e que o compreenderão. Gostava de lhe ter contado coisas assim. Mas pareceu-me mais prudente o silêncio.»
[Enrique Vila-Matas, Perder Teorias; em tradução para a Teodolito;

2 comentários:

imo disse...

Magnífico! :)

fallorca disse...

Cá se escreven, cá se traduzem ;)