«O meu conhecimento dos escritores de que tratam os artigos deste volume conta já uns bons trinta anos. Vejo-me ainda, no princípio do Outono de 1966, quando fui da Suíça para Manchester, a meter na minha mala de viagem Grünen Heinrich, Schatzkästlein dês rheinischen Hausfreunds [Henrique Verde, arca do tesouro do amigo da casa renano] e um exemplar meio esboroado de Jakob von Gunten. Os milhares de páginas que li desde então não alteraram a minha bagagem. Esta predilecção, que sempre se manteve constante, por Hebel, Keller e Walser deu-me a ideia de lhes prestar homenagem, antes que seja demasiado tarde. Outras circunstâncias estão por trás dos dois artigos sobre Rousseau e Mörike, que mostraram não ficar mal no conjunto. O período abrangido passou a ser de quase duzentos anos e assim se pode ver que durante tanto tempo não mudou muito esses distúrbio do comportamento que consiste em passar a letra de forma tudo o que se sente e, com espantosa precisão, falhar o alvo da vida. O que mais que tudo me espantou nas minhas reflexões a este respeito foi a tremenda teimosia dos literatos. Parece não haver mezinha que cure o vício da escrita: aqueles que lhe sucumbiram continuam a entregar-se-lhe mesmo quando o desejo de escrever já desapareceu há muito tempo, mesmo na idade crítica em que podemos, a cada dia transcorrido, como observa Keller de passagem, tornar-nos imbecis e não querermos senão parar, enfim, as engrenagens que giram na nossa cabeça. Rousseau, que no seu refúgio da ilha de Saint-Pierre – tem então cinquenta e três anos – tanto gostaria de deixar de estar constantemente a reflectir, continuou a escrever até à sua morte. Mörike melhora ainda o seu romance quando já de nada vale esse esforço. Keller despede-se da função pública aos cinquenta e seis anos para se consagrar inteiramente ao trabalho literário e Walser não consegue libertar-se do império da escrita a não ser internando-se. Tendo em conta esta decisão tão drástica, foi para mim particularmente comovente ver, há um par de meses, um telefilme francês em que um antigo enfermeiro do sanatório de Herisau, chamado Josef Wehrle, afirmava que Walser, se bem que se tivesse afastado totalmente da literatura, trazia sempre no bolso do colete um lápis e uns papelinhos cortados e não raro anotava uma coisa ou outra; e mais contava Josef Wehrle que Walser, quando se julgava observado, logo tratava de fazer desaparecer as folhinhas, como se estivesse a fazer uma coisa proibida ou mesmo vergonhosa. A escrita é claramente uma actividade de que não nos libertamos com facilidade, mesmo quando se nos torna detestável ou impossível. Do ponto de vista do indivíduo que escreve, quase nada há que possa alegar em defesa dela, de tal modo é pouco gratificante. Talvez seja realmente melhor escrever sem mais, como era originalmente a intenção de Keller, um pequeno romance sobre a carreira de um jovem artista e a sua trágica interrupção, com um fim, da negrura do cipreste, em que tudo é sepultado, e a seguir pousar a pena. Os leitores por certo perderiam muita coisa se assim fosse, pois muitas são vezes em que os pobres escritores prisioneiros do seu mundo de palavras lhes abrem perspectivas de uma beleza, de uma intensidade que nem a própria vida oferece. E é por isso que, nas páginas que se seguem, é sobretudo como leitor que pretendo prestar o meu atributo aos colegas que me precederam sob a forma de marginália algo dilatada, mas sem particulares intenções. Forçoso é que no final se encontre um ensaio sobre um pintor, não apenas porque Jan Peter Tripp e eu andámos bastante tempo juntos na escola de Obserstdorf e temos em comum o mesmo apreço por Keller e Walser, mas também porque os seus quadros me ensinaram que a arte requer trabalho e que quem quiser contar coisas deve esperar grandes dificuldades.»
[W. G. Sebald, O Caminhante Solitário; trad. Telma Costa, Teorema, Lisboa Setembro 2009;
4 comentários:
:)
Conhecia?
Nao, nao li o livro, mas tenho o Sebald em lista de espera
Fiquei na dúvida se era (a obra) de Sebald ou a «vinheta» de Jan Peter Tripp
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