6 de setembro de 2012

«É bom trabalhar nas Obras» (112)

Começa assim:

«Até ontem à noite, a andar pelas ruas molhadas de Vallcarca, não fazia ideia de que nascer numa família como esta tinha sido um erro imperdoável. De súbito, entendi que tinha estado sempre só, que nunca tinha podido contar com os meus pais nem com um Deus a quem pudesse encomendar a busca de soluções, embora, à medida que ia crescendo, fosse adoptando o costume de delegar a carga do pensamento e a responsabilidade dos meus actos em crenças imprecisas e em leituras muito diversas. Ontem, terça-feira, ao anoitecer, quando voltava de casa de Dalmau debaixo do aguaceiro, cheguei à conclusão de que essa carga só a mim diz respeito. E que as minhas atitudes, acertadas e erradas, são da minha responsabilidade e só minha. Precisei de sessenta anos para ver isto. Espero que me entendas e compreendas quanto me sinto só e desamparado e a imensa falta que me fazes. Apesar da distância que nos separa, sigo o teu exemplo. Apesar do pânico, agora já não aceito tábuas de salvação para não me afogar. Apesar de algumas insinuações, mantenho-me sem crenças, sem sacerdotes, sem códigos consensuais que me afastem do caminho para não se sabe onde. Envelheci e a dama da gadanha convida-me a segui-la. Reparo que moveu o bispo preto e, com um gesto cortês, incentiva-me a continuar a jogada. Sabe que estou muito mal servido de peões. Em todo o caso, ainda não é de manhã e olho para ver que peça posso mover. Estou só diante do papel, é a minha última oportunidade.»

[Jaume Cabré, Jo Confesso; em tradução para a Tinta-da-China]

7 comentários:

salamandrine disse...

\o/

fallorca disse...

Que tal? ;)

salamandrine disse...

já fiquei com a pica toda :D

Teresa disse...

Um acto de contrição impressionante.
Obrigada!

fallorca disse...

Teresa,
conhece os livros anteriores? «Sua Senhoria» e «As Vozes do Rio Pamano».
Se não estou em erro, além da Feira do Livro, creio estarem em promoção na Pó dos Livros.

(quanto a ti, salamandra... Olha, porco-espinho, fiufiu...)

salamandrine disse...

sou uma fácil :P

Ubik disse...

Que boa notícia, Fallorca! Li as "Vozes do Rio Pamano" na tua incrível tradução e tenho este em catalão para ler.