4 de dezembro de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (56)

«- A Joana disse-me que tenho expressões tuas e que esse é o primeiro capítulo do amor.
- A Joana só não é mais idiota por falta de treino.
Isso já fora há demasiado tempo e, agora, Ignacio, enquanto descansava aquele misto de triste tensão, indiferença e cobiça que o possuía nos contornos das pinturas rupestres (podiam representar a caça ao bisonte ou uma estranha alegoria do que lhe poderia acontecer se saísse sem pagar), pensava se as expressões próprias conseguiriam transmitir-se a desconhecidos como uma doença venérea, se aquela expressão alguma vez tinha pertencido a alguém, se algum cretino poderia fazê-lo só por beijar aqueles lábios que apontavam para ele.
- Essa expressão é minha – disse Ignacio, e, logo a seguir, arrependeu-se de o ter dito.
Vicky estava quase a chorar, pegou no saco e levantou-se em direcção aos lavabos. Alguns olhares seguiram-na e ela, apesar do drama, controlava a situação. Ignacio sentiu-se estupidamente orgulhoso: com a saia comprida, o casaco curto de couro preto e a melena castanha, tinha um aspecto encantador; parecia como se deslizasse pelo chão e não necessitasse de imprimir esforço às pernas num caminhar que, de tão repetido, nunca era monótono. Sensualidade calculada, construída com esforço mal recompensado pela sensação de fastio que o hábito fomentava. Estava a perdê-la, definitivamente. Ela acabava sempre por conseguir o que queria, era um facto. Sem agressividade. Tudo, graças a uma estranha e persistente lógica, um mosaico de evidências, uma férrea constelação de razões. E, agora, Vicky empenhava-se para que tudo terminasse. Ignacio sabia que ia sentir a falta dela, não só do seu corpo e do seu carinho, como da maneira que tinha de agachar a cabeça para beijá-lo, do despertador em forma de boneca gorda com o mostrador encaixado na grande pança azul, do copo de água que trazia para a cama todas as noites que dormiam juntos. E essa malograda sensação de estabilidade; ontem, foi agora, e será sempre se fizermos e não pensarmos, se sorrirmos.»
[Francisco Casavella, Um Anão Espanhol Suicida-se em Las Vegas; em tradução para a Minotauro;

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