20 de dezembro de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (60)

«Obrigado ou atraiçoado por mim mesmo a dizer como faço os meus contos, recorrerei a explicações que lhes são exteriores. Não são completamente naturais, no sentido de não intervir a consciência. Isso ser-me-ia antipático. Não são dominados por uma teoria da consciência. Isto ser-me-ia extremamente antipático. Preferiria dizer que essa intervenção é misteriosa. Os meus contos não têm estruturas lógicas. Apesar da vigilância constante e rigorosa da consciência, também ela me é desconhecida. Num determinado momento, penso que num recanto de mim nascerá uma planta. Começo a espreitá-la acreditando que nesse recanto se produziu algo estranho, mas que poderia ter um amanhã artístico. Seria feliz se esta ideia não fracassasse de todo. No entanto, devo esperar um tempo ignorado: não sei como fazer germinar a planta, nem como favorecer, nem cuidar do seu crescimento; apenas pressinto ou desejo que tenha folhas de poesia; ou algo que se transforme em poesia quando olhada por certos olhos. Devo procurar que não ocupe muito espaço, que não pretenda ser bela ou intensa, mas que seja a planta que ela mesma esteja destinada a ser, e ajudá-la a que o seja. Ao mesmo tempo, ela crescerá de acordo com um contemplador a quem não ligará muita importância se ele lhe quiser sugerir demasiadas intenções ou grandezas. Se é uma planta dona de si mesma terá uma poesia natural, desconhecida por ela própria. Ela deve ser como uma pessoa que não sabe quanto irá viver, com necessidades próprias, com um orgulho discreto, um pouco torpe e que pareça improvisado. Ela própria não conhecerá as suas leis, embora profundamente as tenha e a consciência não as alcance. Não saberá o nível e a maneira como a consciência irá intervir, mas em última instância, imporá a sua vontade. E ensinará a consciência a ser desinteressada.
Na verdade, eu não sei como faço os meus contos, porque cada um deles tem a sua vida estranha e própria. Mas também sei que vivem em luta com a consciência, para evitar os estrangeiros que ela lhes recomenda.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em revisão final para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;
via Nico]

2 comentários:

miguel. disse...

já estive com o livro na mão... promete. será certamente uma das próximas leituras, por enquanto não consigo deixar de ler os "contos carnivoros", muito bons.

abraço

fallorca disse...

Quanto a esses, é canibalismo que ainda não deu sinal ;)