«Nevoeiro. Ao longe, os Alpes, monstros brancos, que ora surgem, ora desaparecem no ar escuro.
Quando começo a escrever, impõe-se-me partir da hipótese da integridade mental (o que quer dizer, simplesmente, que me será cada vez mais difícil escrever).
Em Feldafing, não escrevo. Não trabalho, não sei se trabalharei, sequer, um dia, já nem sei como trabalhar o Kaddish… [Kaddish para Uma Criança Que não Vai Nascer, Editorial Presença 2004], esse romance de que leio excertos em alemão um pouco por todo o lado, e nem sei se fui eu a escrevê-lo, e, se sim, como fiz – deixei de saber escrever. Sabiam que Lenine caçava rouxinóis à pedrada? É verdade, vi num filme de um jovem realizador russo que passou na televisão. Imagens de um Lenine de traços rígidos, apopléctico. Levaram-no para um sítio qualquer, na Crimeia, na Primavera, para a beira de um lago, ao sol, esperando que, aí, se sentisse bem. Mas os rouxinóis roubavam-lhe o sono todas as manhãs. Então, certa manhã, precipitou-se para o jardim e começou a perseguir os rouxinóis. Agarrou em pedras, que lhes atirava. De súbito, sentiu que já não era capaz de levantar mais pedras: paralisara. Era a vingança elegante, leve como um sopro, mas implacável, dos rouxinóis sobre o grande revolucionário, que não podia suportar o seu canto.
Uma vingança de artista.»
[Imre Kertész, Um Outro – Crónica de uma metamorfose; trad. Ernesto Rodrigues, Editorial Presença, Junho 2009;
Em Feldafing, não escrevo. Não trabalho, não sei se trabalharei, sequer, um dia, já nem sei como trabalhar o Kaddish… [Kaddish para Uma Criança Que não Vai Nascer, Editorial Presença 2004], esse romance de que leio excertos em alemão um pouco por todo o lado, e nem sei se fui eu a escrevê-lo, e, se sim, como fiz – deixei de saber escrever. Sabiam que Lenine caçava rouxinóis à pedrada? É verdade, vi num filme de um jovem realizador russo que passou na televisão. Imagens de um Lenine de traços rígidos, apopléctico. Levaram-no para um sítio qualquer, na Crimeia, na Primavera, para a beira de um lago, ao sol, esperando que, aí, se sentisse bem. Mas os rouxinóis roubavam-lhe o sono todas as manhãs. Então, certa manhã, precipitou-se para o jardim e começou a perseguir os rouxinóis. Agarrou em pedras, que lhes atirava. De súbito, sentiu que já não era capaz de levantar mais pedras: paralisara. Era a vingança elegante, leve como um sopro, mas implacável, dos rouxinóis sobre o grande revolucionário, que não podia suportar o seu canto.
Uma vingança de artista.»
[Imre Kertész, Um Outro – Crónica de uma metamorfose; trad. Ernesto Rodrigues, Editorial Presença, Junho 2009;
2 comentários:
Muito bom este bocadinho. Confirmam-se as minhas expectativas.
Nem duvide :)
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