24 de junho de 2011

Papiro do dia (90)

«Numa outra vez, junto ao riacho, olhou para cima, casualmente pensou ele, e viu um pássaro. Estava equilibrado sobre uma pedra redonda, a mergulhar o bico na água que corria, com o corpo cinzento e agachado tão indistinto e desinteressante como o de um pardal (mas aqui não havia pardais), e a cabeça cinzenta, com algumas penas encardidas.
Mas o que o seu sangue gelado viu foi o bico do pássaro a tirar longos fios prateados do meio da água, que era toda ela um emaranhado de fios, uns agrupados, outros a correr; e as botas dele não tinham peso, nem a mão dele que segurava o pedaço meio comido de pão, nem o seu coração, e foi preenchido pelo mais intenso e agradável prazer: no modo como o ar agitava as folhas sobre a sua cabeça e cada folha se ligava a um ramo, e todas rodopiavam apesar de se manterem presas; e nas camadas de penas que constituíam o cinzento da cabeça do pássaro; e em como seriam compridos os fios da água para correrem assim tão facilmente desde onde vinha até para onde iam, que nem se podia imaginar – misturando-se, separando-se, correndo à solta. E também dessa vez o prazer que sentiu tinha um lado perturbador.
As coisas de que começara a tomar conhecimento, por mais frescas e inocentes que fossem, estavam para além do que era comum, ou pelo menos ele assim pensava; e já que não encontrava forma de as comunicar, decerto que estavam para além das palavras.»

[David Malouf, Recordando a Babilónia; trad. Jorge Pereirinha Pires, Assírio & Alvim, 2009;
surpresa enviada pelo Jorge Ribau]

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