«Ora os inimigos não tinham sossego. Em sua defesa, Rousseau tem de escrever uma carta ao arcebispo de Paris e um ano mais tarde as suas Lettres de la Montagne, onde expõe que o processo contra ele levantado pelo Conselho de Genebra viola a Constituição da República e as suas tradições de liberdade. A estas missivas responde Voltaire que, em ímpia aliança com os presunçosos representantes da classe vénérable, dirige na sombra a campanha caluniosa, com um panfleto intitulado Le Sentiment des Citoyens no qual, já que não lhe foi possível levar Rousseau até ao cadafalso, o dá por mentiroso blasfemo e charlatão. E fez isto sem assinar o seu próprio nome, mas sim anonimamente, ao estilo de um fervoroso pastor calvinista. É com vergonha e tristeza, lê-se aí, que somos forçados a constatar que na pessoa de Rousseau estamos perante um homem que, disfarçado de saltimbanco, arrasta consigo de aldeia em aldeia e de monte em monte a infeliz cuja mãe mandou para a sepultura e cujos filhos depôs à porta de um asilo, e mais, que por tais actos abjurou de todo o sentimento natural ao mesmo tempo que abandonava a honra e a religião. Não é fácil compreender por que é que Voltaire, que não passou exactamente a vida a defender a verdadeira fé, se encarniçou tanto contra Rousseau e o perseguiu incansavelmente com o seu ódio. A única explicação possível talvez seja não ter podido conformar-se com o facto de a sua fama estar a empalidecer perante o brilho desta nova estrela que ascendia no firmamento literário. Uma coisa que nunca muda é a maldade com que um literato fala de outro nas costas dele.»
[W. G. Sebald, O Caminhante Solitário; trad. Telma Costa, Teorema, Lisboa Setembro 2009;
[W. G. Sebald, O Caminhante Solitário; trad. Telma Costa, Teorema, Lisboa Setembro 2009;
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