«Ele sabia o que era escrever, mas nunca aprendera aquele truque. Quando pegara nas folhas e as voltara de uma e de outra maneira, e sentira o cheiro peculiar que elas exalavam, tinha toda a sua vida na garganta – os choros, e também os risos, alguns – e ficara repleto de uma imensa gratidão. Tinha-lhes mostrado quem ele era. Era conhecido. Caso ficasse a sós com as folhas, para matutar nelas e as cheirar, tudo aquilo que ele era, Gemmy, poderia regressar a ele, e começou então a urdir, enquanto pensava na sua vida perdida de vista lá no fundo do bolso do padre, como havia de recuperá-la.
Não o surpreendeu – era essa a natureza da magia – que tudo o que lhe sucedera, toda a sua boa e má sorte, todos aqueles suores e penas, e distâncias percorridas e ossos recolhidos e noites de gélido orvalho, e sonhos e sonhos – tudo isso, que durante aquela longa tarde ele vislumbrara e reconhecera, vislumbrara e evitara, e quisera contar e não conseguira, se reduzisse agora ao que um homem podia ter na mão e enfiar num bolso; algumas folhas nas quais, se ele ao menos conseguisse identificar onde estavam por entre os rabiscos, poderia encontrar Willett e o seu hirsuto cabelo ruivo, e os ratos, e o velho Crouch, já que pensava nisso, e a sua irmã sedosa – teria falado disso? De Mosey e do Irlandês não. Não os queria no meio daquilo. A eles, não.
Estreitou-se nos seus próprios braços. Do que se recordou foi do cheiro forte, do cheiro a terra daquela coisa preta que ele farejara quando levara os papéis ao nariz.»
[David Malouf, Recordando a Babilónia; trad. Jorge Pereirinha Pires, Assírio & Alvim, 2009;
coisa farejada]
coisa farejada]
4 comentários:
o tradutor julgo que é J. Pereirinha Pires :-)
Marco, essa graduação deve estar ultrapassada. O que diz a legenda? :)
eheh, por acaso esta vista já esteve melhor calibrada, mas eu referia-me ao apelido: é Pereirinha e não Parreirinha ;-)
Afinal quem estava a precisar de mudar de vidros era eu, lol
Obg :)
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