28 de junho de 2011

Papiro do dia (92)

«E eis então que senão quando: salta da mata para dentro do quintal, com a sua perna só e saído da noite que há para além do muro, o Saci Pererê da lenda nacional. Vem dar encontro com Cendrars aqui, que andou na guerra e tem um braço só. Vem dizer-lhe que não ligue para esse jornalista que anda a chamar-lhe Cendrars Sans Bras, nem para as autoridades alfandegárias e a polícia de fronteiras que por duas vezes já, uma em Santos e a outra no Rio de Janeiro, lhe dificultaram a entrada por ele não ter senão um braço e querer ainda assim desembarcar no Brasil numa altura em que a propaganda do governo anda a martelar, pela imprensa, que o país precisa é de braços… E que deixe também pra lá quem proclama que nada embaraça uma imaginação como a sua, nem anacronismos e nem inverosimilhanças, para divertir a Europa com informações mirabolantes sobre o Brasil e até sobre países onde nunca esteve. As suas estórias, se ainda assim enternecem até os próprios brasileiros, é porque afinal têm muito dessa sua tão simpática espontaneidade, e um fundo sincero de inocência humana. Nem se ressinta do bom humor de alguns mestres, quando com ternura, como Manuel Bandeira, se interrogam sobre que deliciosas mentiras ele não inventaria a propósito do Aleijadinho e do santuário de Congonhas do Campo se finalmente viesse a publicar o livro que há tanto tempo promete escrever a esse respeito e que afinal não há meio de vir a lume. E nem se ofenda com aquele anónimo que num jornal de Belo Horizonte pergunta em que recanto do Brasil é ele proprietário desse fabuloso trecho de floresta que não lhe terá custado senão uns míseros 1500 francos e mede 294 quilómetros quadrados no mais belo lugar do mundo, com um lago no meio aonde, em dias muito especiais, soam os sinos de uma catedral submersa. Que retenha mas é, e se embeveça disso, o que diz quem diz que mesmo essas suas mais descabeladas imaginações partem sempre de uma base concreta mínima e que talento é isso, isso é que é génio, esse poder para descrever paisagens que nunca viu, para criar, para criar, insiste Pererê, para criar realidades.»

[Ruy Duarte de Carvalho, Desmedida crónicas do Brasil, BI. 033, Fevereiro 2008]

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