31 de julho de 2010

À mão de ler (69)

«Nunca tive sorte com as mulheres, suporto com resignação uma penosa corcova, todos os meus familiares mais próximos morreram, sou um pobre solitário que trabalha num escritório pavoroso. Quanto ao resto, sou feliz. Hoje mais que nunca porque começo – 8 de Julho de 1999 – este diário que vai ser ao mesmo tempo um caderno de notas de rodapé sobre um texto invisível e que espero que demonstrem a minha solvência como rastreador de bartlebys.
Há vinte anos, quando era muito jovem, publiquei um romancezinho sobre a impossibilidade do amor. Desde então, por causa de um trauma que já explicarei, não tinha voltado a escrever, pois renunciai radicalmente a fazê-lo, tornei-me um bartleby, e daí o meu interesse, desde há algum tempo, por eles.
Todos conhecemos os bartlebys, esses seres nos quais habita uma profunda negação do mundo. Tomam o seu nome do escrevente Bartleby, esse empregado de escritório de um conto de Herman Melville que nunca foi visto a ler, nem sequer um jornal; que, durante períodos prolongados, fica de pé a olhar para a rua, através da pálida janela que existe atrás de um biombo, na direcção de um muro de tijolo de Wall Street; que nunca bebe cerveja, nem chá, nem café como toda a gente; que nunca foi a parte nenhuma, pois vive no escritório, inclusivamente aos domingos; que nunca disse quem é, nem donde vem, nem se tem parentes neste mundo; que, quando lhe perguntam onde nasceu ou o encarregam de um trabalho ou lhe pedem que conte alguma coisa sobre ele, responde sempre com:
- Preferia não o fazer.»
[Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia; trad. José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, Março 2001]

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