25 de julho de 2010

À mão de ler (64)

«Andrea dividiu o armário em dois, concedeu a Bevilacqua a secção mais ampla (embora ela tivesse dez vezes mais roupa) e montou-lhe uma mesinha a um canto para que pudesse enfiar comodamente as suas sementes coloridas. Discretamente, junto à caixa de ferramentas, colocou-lhe um candeeiro de leitura, uma resma de papel e uma Olivetti portátl.
Porque, desde o primeiro dia que Bevilacqua lhe foi apresentado, Andrea tinha-se proposto que o escritor (de fotonovelas, pouco importava) voltasse a escrever. Seria essa a sua missão: resgatar da ociosidade bartlebiana o seu amado génio. Andrea acreditava fervorosamente nessa obra magnífica, avassaladora, que Bevilacqua sem dúvida transportava nos abismos da alma, aterrado pela ideia de trazê-la ao mundo. Andrea seria a sua parteira, a sua guardiã, a sua tutora.
Vila-Matas assegura-me que, nos casos de escriores que não escrevem, costuma aparecer uma personagem que se recusa a aceitar esse silêncio criativo e que se empenha em provocar a eclosão do que nunca consegue expressar-se. Em lugar de entender que esse escritor existe justamente por causa do que não produz, acredita, pelo contrário, discernir na ausência a promessa de uma obra vindoura. A relação de Andrea com Bevilacqua confirma a tese do mestre.
No entanto, os meses passavam e Bevilacqua não escrevia. Todas as noites enfiava sementes; todas as manhãs saía para a Calle Goya, onde desdobrava a sua mantinha. Algumas tardes acompanhava Andrea a alguma leitura de poesia ou a alguma inauguração de quadros, onde se aborrecia resignadamente. Porém, para grande mágoa de Andrea, a resma continuava incólume e a Olivetti por abrir.
Um dia, quando Bevilacqua tinha saído para vender as suas bugigangas, Andrea decidiu fazer limpeza ao apartamento e, ao tirar uma pilha de malas e caixas do armário, notou no fundo um velho saco da Pluna que Bevilacqua tinha carregado desde Buenos Aires e do qual assomava a manga de uma camisa. Pensando que Bevilacqua se esquecera ali de alguma roupa que precisava de ser lavada, Andrea esvaziou o saco e descobriu no fundo um embrulho rectangular envolto em plástico. Abriu-o. Era uma pilha de folhas escritas à mão; a primeira tinha por título: Elogio da Mentira. Nem essa nem a última página tinham assinatura.»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Abril 2010]

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