«Às vezes, a minha cabeça era como uma taberna pobre no meio de uma feira; e enquanto eu olhava distraído através das janelas, entrava toda a sorte de palavras.»
31 de março de 2011
30 de março de 2011
Às vezes, lá calha...
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Aguardando atenciosamente a sua resposta, defiro-me com as maiores saudações, saudades e salvações – para si e para toda a sua criação.
A sua infiel, Joana [Serrado]»
Nem sempre a lápis (146)
Papiro do dia (48)
Os desejos deste mundo são como uma caldeira, e os temores aqui em baixo, são como um banho. Os homens piedosos vivem acima da caldeira, na indigência e na alegria. Os ricos são os que trazem excrementos para alimentar a caldeira e para que o banho se mantenha quente. Deus deu-lhes a avidez.
Mas, abandona a tua caldeira e mergulha no banho. Os do banho reconhecem-se pela cara, que é pura. Mas o pó, o fumo e a sujidade são os sinais dos que preferem a caldeira.
Se mesmo assim não vires o suficiente para os reconheceres pelo rosto, reconhece-os pelo cheiro. Os que trabalham na caldeira, dizem: “Hoje trouxe vinte sacos de bosta para alimentar a caldeira.”
Estes excrementos alimentam um fogo destinado ao homem puro e o ouro é como esses excrementos.
Quem passa a vida na caldeira não conhece o cheiro do almíscar. E, se por acaso o sente, adoece.»
[Rumi, Parábolas Sufis; trad. Jorge Fallorca, Fim de Século, Fevereiro 2000;
29 de março de 2011
Nada como uma sms e 6,78 €
se entretanto encontrar o meu,
não falta quem salive por este
[aceitam-se propostas; moderadas nos comentários, fiufiu...]
28 de março de 2011
«É bom trabalhar nas Obras» (82)

Chamou a atenção de Olga um pormenor que ainda hoje, tantos anos depois, passa despercebido aos transeuntes: as árvores desse lugar têm formas estranhas, encontram-se como que esmagadas por um peso invisível. Isto não se pode atribuir aos caprichos do terreno nem à antiguidade. O administrador do Bosque informou que não são árvores vetustas como os ciprestes pré-hispânicos das redondezas: datam do século XIX. Quando actuava como presidente do México, o arquiduque Maximiliano mandou semeá-los, tendo a paisagem da zona ficado muito danificada em 1847, em consequência dos combates em Chapultepec e do assalto ao Castelo pelas tropas norte-americanas.
O menino estava cansado e deitou-se de costas no chão. A mãe sentou-se no tronco de uma daquelas árvores que, se o senhor me permite, qualificarei de sobrenaturais. Passaram vários minutos. Olga tirou o relógio, aproximou-o dos olhos, viu que eram duas da tarde e tinham de ir a casa da avó. Rafael suplicou-lhe que o deixasse ficar mais um pouco. A senhora aceitou contrariada, inquieta porque no caminho se tinham cruzado com vários aspirantes a toureiro que, já nessa altura, treinavam ao pé da colina num tanque seco, próximo do sítio que se afirma ter sido o balneário de Moctezuma.
À hora do almoço, o Bosque tinha ficado deserto. Não se escutava o rumor de automóveis nas ruas, nem a azáfama de lanchas no lago. Rafael entretinha-se a dificultar o caminho de um caracol com um raminho. Nesse instante, abriu-se um rectângulo de madeira escondido debaixo da erva rala do cerro e apareceu um homem que disse a Rafael:
- Deixa-o. Não o incomodes. Os caracóis não fazem mal e conhecem o reino dos mortos.
Saiu do subterrâneo, dirigiu-se a Olga, estendeu-lhe um jornal dobrado e uma rosa com um alfinete:
- Tome lá para se entreter. Tome lá para a usar.
Olga agradeceu-lhe, surpreendida com o aparecimento do homem e a amabilidade das suas palavras. Imaginou-o como um vigilante, um guardião do Castelo, e de momento não reparou no seu vocabulário nem no cheiro a humidade exalado pelo seu corpo e pela sua roupa.
Entretanto, Rafael tinha-se aproximado do desconhecido e perguntava-lhe:
- Vives ali?
- Não: mais abaixo, mais no fundo.
- E não tens frio?
- A terra está quente no interior.
- Leva-me a conhecer a tua casa. Mamã, dás-me licença?
- Menino, não sejas maçador. Agradece ao senhor e vamos embora: a tua avó está à nossa espera.
- Senhora, permita-lhe que se abeire. Não o deixe com a curiosidade.
- Mas, Rafaelito, esse túnel deve ser muito escuro. Não tens medo?
- Não, mamã.
Olga anuiu com expressão resignada. O homem pegou na mão de Rafael e disse, ao começar a descida:
- Voltaremos. A senhora não se preocupe. Vou só mostrar-lhe a boca da gruta.
- Tenha cuidado com ele, por favor. Fica entregue a si.»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;
Papiro do dia (47)
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Deixamos fechado para trás das costas o portãozinho da infância… – e entramos num jardim encantado. As próprias sombras do jardim esplendem de promessa. A cada curva da vereda está uma nova sedução. E não é por se tratar de um país ainda por descobrir. Sabemos perfeitamente que toda a espécie humana tem corrido no leito desse caminho. Trata-se do encontro próprio de uma experiência universal, de que esperamos uma impressão rara ou íntima… – um pouco de nós mesmos.
Avança-se então, reconhecendo os marcos erguidos pelos que antes passaram por ali, avança-se excitado, divertido, acolhendo igualmente a boa sorte e a má – as pancadas e as carícias, como se costuma dizer –, o variegado destino comum que tantas possibilidades traz dentro de si para os que as saibam merecer ou, talvez, para aqueles a quem a fortuna sorri. E continua-se para diante. O tempo também continua para diante – até que avistamos, mergulhando mais fundo, uma linha de sombra que nos previne de que o país da adolescência terá igualmente que ser deixado para trás.»
[Joseph Conrad, A Linha de Sombra; trad, Maria Teresa Sá e Miguel Serras Pereira, Colecção Mil Folhas / jornal Público, 2003]
27 de março de 2011
26 de março de 2011
Nem sempre a lápis (145)
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24 de março de 2011
Às vezes, lá calha...
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«Alto! Façamos uma pausa de conveniência. Os escritores que entendem do seu ofício levam-no com toda a calma que é possível. Pois escrever constantemente fatiga tanto como o trabalho da terra.»
(Robert Walser)
«É bom trabalhar nas Obras» (81)
«Sem dizer uma palavra, vai levar-me até ao estacionamento onde guardei o meu carro. Vamo-nos despedir. Vou conduzir até à casa onde vivo sozinho. Vou subir para o meu quarto. Antes de me deitar, vou tomar um sonífero. Vou dormir uma hora ou duas. A música vai despertar-me. Vou pensar: devo ter deixado o rádio ligado nalgum lado. No entanto, a música virá da sala nas trevas, a inconfundível música do cravo da minha infância, a sonata de Bach cada vez mais próxima, agora que desço as escadas a tremer.»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]
Papiro do dia (45)
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Hoje tenho os nomes para tudo: escrava, castração, comércio, cidade costeira, mar, trabalho forçado. Sim, agora tenho-os todos. Tenho os nomes e ninguém me ouve. Nada posso fazer com os nomes. Nada mais são do que chocalhos.»
[Wilma Stockenström, Viagem ao Baobá; trad. Fernando Luís Sampaio, Assírio & Alvim, col. Outros Lugares, Lisboa 2006]
23 de março de 2011
Meditação na confraria
[reportagem: Patrícia Rodrigues]
22 de março de 2011
Às vezes, lá calha...
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«É sempre preciso escolher entre o erro e a vida que se confunde com o papel de parede. Partir vem de dentro do inconciliável. É outra coisa.»
Nem sempre a lápis (144)
Fiquei tão esmalmado que não encontro nada susceptível de alegrar a situação; mercado resguardado do Sol à volta da praça, alcofa na mão. No sábado, cheguei tarde e já não havia os brócolos minúsculos do senhor António, condenando-me aos bonsai assustadores das grandes superfícies, expostos a meias com obras de Saramago e oferta de auto-ajuda. Enquanto escolhia batatinha olho-de-perdiz, ainda tive coragem para perguntar à mulher como fazia o arroz de brócolos. Apanhada desprevenida com a intimidade, olhou para o marido, que lhe terá feito sinal para dizer que faz um refogado normal, cebola e alho. Imaginada a cozinha na fazenda, permiti-me sugerir umas rodelas de chouriço, de porco preto cevado com bolota e amêndoa abandonadas nos cerros, e respondeu que sim, mas do nosso. Invejosos de merda; é que tiram logo o apetite a uma pessoa. Ora, Há muitos, muitos anos, era eu uma criança (José Cid), enchido caseiro só feito pela minha mãe e as vizinhas, às corridas; de então para cá, tem sido só salsicharia.
Papiro do dia (44)
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Encontrei, digo. Aterrador.
O bem mais importante, a água, não tive de a procurar. Há em abundância. É visível e audível. Escavo a ondulação do rio com a concha de ovo de avestruz que me foi oferecida. Levo a concha à límpida curva da água que escorre sobre uma pedra áspera, de modo a apanhar a luz e o som. Tiro com a concha repetidamente, e verto o espírito da água tremeluzente e murmurante dentro do pote de argila que me foi oferecido. Depois ergo devagar o pote cheio, com ambas as mãos, por cima da minha cabeça, dobro os joelhos para apanhar a minha concha, e regresso pelo caminho da água até ao baobá.
Encontrei: toda a espécie de alimentos da estepe; e apercebi-me também que ao arrancar, escavar e colhê-los, eu entrava em competição com os animais, que as árvores não cresciam, floresciam e davam frutos para saciar a minha fome, e que os tubérculos e as raízes não cresciam debaixo da terra para mim, que o ébano verde não gotejava o seu néctar em minha honra, que não era para me refrescar que estendia a sua sombra em lugares estratégicos, que não era para me agradar que as orquídeas salpicadas se exibiam, que não era para mim que a árvore violeta levantava as suas tendas de perfume no início do Verão.
Depois dos javalis terem pastado, uma novata vasculha o pedaço de estepe onde os experientes tinham esquadrinhado, ajoelha-se como eles, tenta perfurar o chão duro com um pau, porque lhe faltavam as presas, tenta usar a visão para procurar, porque não era dotada de um faro apurado para as raízes e bolbos comestíveis, e afasta-se, triste, com um punhado apenas. Depois dos babuínos terem pastado, o mesmo procedimento, excepto que se assegura de que eles estão longe, antes de se aventurar no território deles.
Eu tenho mais receio das caretas do babuíno do que das presas do javali e do porco-espinho. Ele é muito parecido comigo. Tenho receio de me reconhecer na sua cara feia. Sou forçada a recordar a minha posição inferior, aqui onde estou, e do meu pouco conhecimento. Sinto-me vexada por os meus desejos e humores se reflectirem na monstruosidade deles, e sinto que o meu refinamento é ridículo, porque esta vulgar criatura de quatro patas prova-me que é supérfluo. Desprezo-os, à sua força, à sua astúcia, o seu auto-evidente poder neste mundo. Desprezo os babuínos, sem excepção. Estes comilões de bochechas gordas revoltam-me. A sua horrível cópula pública, o rebaixamento das fêmeas ao implorar, a submissão delas às pesadas mãos dos machos e a rouca repreensão, e os olhos muito juntos como se vê nos animais irracionais, e que penso ser também um sinal de cupidez. Conheço-os demasiado bem para meu gosto. Dentro de uma jaula seria bem capaz de me rir deles. Quanto ao que eles sabem sobre mim, nada revelam naqueles olhares de soslaio. Suponho que para eles não passo de um estorvo. Uma estranha, afastada do seu mundo de actividades.»
[Wilma Stockenström, Viagem ao Baobá; trad. Fernando Luís Sampaio, Assírio & Alvim, col. Outros Lugares, Lisboa 2006]
20 de março de 2011
Às vezes, lá calha...
Nem sempre a lápis (143)
Falávamos de palavras e do som, por baixo; a pontuação latejava no olhar, irreconciliável. Não procures o sorriso onde lavra o brasido. E se julgas que o Sol, de repente, se abre e te recebe, não esqueças a boca e as pronúncias ouvidas.
«É bom trabalhar nas Obras» (80)
«Seja como for, à noite Andrés dizia a Hilda, a minha vocação era escrever e de uma maneira ou de outra estou a cumpri-la. / Ao fim e ao cabo, as traduções, os folhetos e até mesmo os ofícios burocráticos podem estar tão bem escritos como um conto, não achas? / Só por um conceito elitista e arcaico se pode julgar que a chamada “literatura de criação” é a única coisa válida, não te parece? / Além disso, não quero entrar em competição com os escritorzecos mexicanos inchados pela publicidade; romancezecos como os que os pseudo-críticos que padecemos agora tanto elogiam, eu podia fazer dez deles por ano, não é verdade? / Hilda, quando todos os livros que têm êxito no México estiverem feitos em pó, alguém irá ler Fabulaciones e então… /
E agora, por um conto – o primeiro numa década, o único posterior a Fabulaciones – estava pronto para receber o que ganhava durante meses de tardes inteiras em frente da máquina a traduzir o que definia como ilegivros. Ia pagar as dívidas da secretária, comprar coisas que lhe faziam falta, comer em restaurantes, ir de férias com Hilda. Graças a Ricardo, tinha recuperado o seu impulso literário e deixava para trás os pretextos para esconder o seu fracasso essencial a si mesmo:
Não se pode ser escritor no subdesenvolvimento. / Estamos em 1971: o livro morreu: nunca mais ninguém voltará a ler: agora o que me interessa são os mass media. / Bom, quando se trata de escrever tudo serve, não há trabalho perdido: com a minha experiência burocrática, vais ver, vão sair coisas. /
Com o indicador da mão esquerda escreveu “os arrozais flutuam no ar” e prosseguiu sem se deter. Nunca antes o tinha feito com tanta fluidez. Às cinco da manhã, pôs o ponto final a seguir a “entre os dois vulcões”. Leu as suas páginas e sentiu uma plenitude desconhecida. Quando foi dormir, tinha fumado um maço de Viceroy e bebido quatro coca-colas, mas acabava de escrever A FESTA BRAVA.»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]
18 de março de 2011
Às vezes, lá calha...
Já se ouvem as estevas a estrelar as primeiras flores à beira da estrada; reabertas as áreas de serviço para o olhar.
«É bom trabalhar nas Obras» (79)
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Como tantos que prometeram tudo, Ricardo estatelou-se contra o muro do México. Voltou por algum tempo para Havana e depois obteve um lugar como professor de espanhol na Checoslováquia. Estava em Praga quando se deu a invasão soviética de 1968. A última coisa que Hilda e Andrés sabiam era que tinha emigrado para Washington e trabalhava para a OEA. Os anos sessenta passaram num segundo, o mundo mudou, Andrés fez trinta anos em 1966, o México era diferente e outros jovens enchiam os sítios onde, entre 1955 e 1960, eles escreveram, leram, discutiram, aprenderam, publicaram Trinchera, amaram-se, afastaram-se, seguiram o seu caminho ou frustraram-se.»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;
phantom staircase]
Papiro do dia (43)
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Aceitando o desafio, Mauricio susteve-lhe o olhar. Podia ver o movimento do seu corpo a respirar, parecia que lhe custava fazê-lo. O sol destacava as manchas cinzentas sobre o seu corpo cinzento. A língua pendia-lhe de um lado, escura, e o focinho pareceu-lhe demasiado negro. Mauricio, de repente, estremeceu ao pensar que o cão estava prestes a colocar-lhe uma perguntar. Mas o cão continuava quieto, mudo, como se estivesse a avaliar se valia a pena perguntar a esse homem o que tinha de perguntar.»
[Ricardo Romero, Nenhum Lugar; trad. Patrícia Louro, Deriva, Setembro 2010]
17 de março de 2011
Meditação na peixaria
16 de março de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
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«Há poesia em tudo – na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade – não o neguemos – facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro.»
Às vezes, lá calha...
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(Tanizaki)
Nem sempre a lápis (142)
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Ler Tanizaki estimula a minha intransigência ao contacto com a qualidade do papel, à impessoalidade da luz crua. Seria impensável o próprio livro acompanhar-me há mais de dez anos, noutro formato e com outra paginação. Um pouco como a densidade da luz da sala, a pairar no momento em que apago as luzes e o velho candeeiro e eu perdemos a noção do tempo. «O termo “biblioteca” provém do que outrora, como indica o nome, era um lugar para ler.»
Papiro do dia (42)
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O miúdo saiu da loja. O saco cheio, o corpo inclinado para equilibrar o peso. Ao atravessar a praça cruzou-se com um charco que parecia não ter visto antes. Parou. Hesitava entre atravessá-lo ou dar-lhe a volta. Olhou o saco e voltou a olhar o charco que mais parecia um lamaçal. Da torneira continuava a sair água aos borbotões. Pegou numa pedra e atirou-a para o meio do charco. No final, decidiu dar-lhe a volta.»
[Ricardo Romero, Nenhum Lugar; trad. Patrícia Louro, Deriva, Setembro 2010;
14 de março de 2011
Às vezes, lá calha...
«Para quem comeu haxixe,
Versalhes não é grande o bastante,
e a eternidade dura um átimo.
As cortinas são intérpretes da linguagem dos ventos.»
(Walter Benjamin)
«É bom trabalhar nas Obras» (78)
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Arbeláez passou umas semanas em Cuba para fazer um livro, que não chegou a escrever, sobre os primeiros meses da revolução. Insinuou que tinha sido apresentado a Ernesto Guevara e a Fidel Castro e como agradecimento, ambos o convidavam para festejar o triunfo. Esta mentira, pensou Andrés, comprovava que Arbeláez era um mitómano. Durante a sua ausência, Hilda e Quintana viram-se todos os dias e a toda a hora. Convencidos de que não conseguiriam separar-se, decidiram falar com Ricardo quando voltasse de Cuba.
Na mesma tarde da conversa no café Palermo, no dia 28 de Março de 1959, as forças armadas desmantelaram a greve ferroviária e detiveram o seu líder, Demetrio Vallejo. Arbeláez não colocou obstáculos à união dos seus amigos, mas afastou-se deles e não voltou a Filosofia nem a Letras. Os amores de Hilda e Andrés marcaram o fim do grupo e a morte de Trinchera.
Em Fevereiro de 1960, Hilda ficou grávida. Andrés não hesitou um instante em casar-se com ela. A mãe (que o marido tinha abandonado com duas filhas pequenas) aceitou o casamento como um mal menor. Os senhores Quintana consideraram-no um equívoco: à beira de fazer vinte e cinco anos, Andrés deixava os estudos quando já só lhe faltava apresentar a tese e não iria conseguir sobreviver como escritor. Ambos eram católicos e membros do Movimento Familiar Cristão. Estremeciam só de pensar num aborto, numa mãe solteira, num filho sem pai. Resignados, presentearam os novos esposos com algum dinheiro e uma casinha pseudo-colonial das que o arquitecto tinha construído em Coyoacán, com materiais das demolições na antiga cidade.
Andrés, que ainda continuava a trabalhar todas as noites nos seus contos e se recusava a publicar um livro, nunca escreveu notícias nem resenhas. Já que não podia dedicar-se ao jornalismo, enquanto tentava abrir caminho como guionista de cinema teve de redigir as memórias de um general revolucionário. Nenhum script satisfez os produtores. Pelo seu lado, Arbeláez começou a colaborar todas as semanas em Mexico en la Cultura. Durante um tempo, as suas críticas ferozes foram muito comentadas.
Hilda perdeu a criança ao sexto mês de gravidez. Ficou incapacitada para conceber, abandonou a Universidade e nunca mais voltou a fazer poemas. O general morreu quando Andrés ia a meio do segundo volume. Os herdeiros cancelaram o projecto. Em 1961, Hilda e Andrés mudaram-se para um sombrio apartamento interior da colónia Roma. O aluguer da sua casa em Coyoacán era tanto como o que Andrés ganhava a traduzir livros para uma empresa que fomentava o pan-americanismo, a Aliança para o Progresso e a imagem de John Fiztgerald Kennedy. No Suplemento de referência naqueles anos, Arbeláez (sem mencionar Andrés) denunciou a casa editorial como tentáculo da CIA. Quando a inflação lhe pulverizou o orçamento, as amizades familiares obtiveram o lugar de revisor na Secretaria de Obras Públicas para Andrés. Hilda ficou empregue, como a irmã, na boutique de Madame Marnat, na Zona Rosa.»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;
Papiro do dia (41)
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Maurício abriu a boca para dizer alguma coisa, mas não soube que responder à distraída irreverência do condutor. Acabou por morder o lábio inferior, arrependido logo por ter falado, como se ao fazê-lo tivesse quebrado um pacto óbvio e necessário entre os dois homens que sulcam a noite na surda profundidade do deserto, como se o deserto fosse o caminho certo que os libertava de qualquer desvio do qual, suspeitava, não havia regresso, por não haver a onde regressar.
Depois disso, não se atreveu a dirigir-lhe a palavra, e limitou-se apenas a insistir uns minutos mais com o olhar no espelho retrovisor. Contudo, o taxista não voltou a procurá-lo. Imutável, olhava em frente, para a estrada interminável. Finalmente, Maurício desistiu e ocupou-se a observar o céu rígido e abundante através da janela. Não queria pensar em nada. As distâncias absorviam-no, como se o facto de tudo estar ou parecer distante o situasse num desterro intransitável entre ele e os seus pensamentos. Sem esforço foi-se deixando estar, inclinado sobre a janela, a olhar as fugidias figuras dos arbustos e das pedras e a sentir o frio da noite na testa apoiada no vidro.»
[Ricardo Romero, Nenhum Lugar; trad. Patrícia Louro, Deriva, Setembro 2010]
12 de março de 2011
Às vezes, lá calha...
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Confiei que o frio da tarde e véspera de Carnaval tivessem libertado a esplanada de militares. Às vezes, sofre-se, impõem um tom de messe de oficiais. E estava certo, posso deixar arrefecer o chá da mudança de atitude: jovens mães puxadas pelos filhos, sem que se distinga a máscara de quem, enfiado o boné que nunca aqui usei. Já passei dez anos sem escrever. Sejamos francos; o que é que José Emilio Pacheco me quer contar em O princípio do prazer?
«É bom trabalhar nas Obras» (77)
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Durante alguns anos, Andrés frequentou o curso de arquitectura, obrigado a seguir a profissão do pai como filho único. À tarde, assistia como ouvinte aos cursos de Filosofia e Letras que pudessem ser úteis para a sua formação como escritor. Na Cidade Universitária recém inaugurada, Andrés conheceu o grupo da revista Trinchera, impressa em papel sobrado de um jornal de cor vermelha, e o seu director Ricardo Arbeláez que, sem o dizer, actuava como professor desses jovens.
Passados trinta e vários anos depois de se ter formado em Direito, Arbeláez queria fazer o doutoramento em literatura e converter-se no grande crítico que ia estabelecer uma nova ordem nas letras mexicanas. Na Faculdade e no Café de las Américas, falava sem cessar dos seus projectos: uma nova história literária a partir da estética marxista e de um grande romance capaz de representar para o México daqueles anos, o que Em busca do tempo perdido significou para a França. Ele insinuava que havia rompido com a sua família aristocrática, uma mentira que bradava aos céus, e portanto escreveria o seu livro com verdadeiro conhecimento de causa. Até então, a sua obra limitava-se a resenhas sempre adversas e a textos contra o PRI e o governo de Ruiz Cortines.
Ricardo era um mistério, mesmo para os seus amigos mais próximos. Murmurava-se que tinha mulher e filhos e, contrariando as suas ideias, de manhã trabalhava no escritório de um advogangster, defensor dos indefensáveis e famoso pelos seus escândalos. Nunca ninguém o visitou nem no escritório nem em casa. A vida pública de Arbeález começava às quatro da tarde na Cidade Universitária e terminava às dez da noite no Café de las Américas.
Andrés seguiu os ensinamentos do professor e publicou os seus primeiros contos em Trinchera. Sem renunciar à sua atitude crítica, nem à exigência de que os seus discípulos escrevessem a melhor prosa e o melhor verso possíveis, Ricardo considerava Andrés “o contista mais prometedor da nova geração”. No seu balanço literário de 1958, fez o elogio definitivo: “Para narrar, ninguém como Quintana”.
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;
Papiro do dia (40)
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«A investigação policial deu origem a uma descoberta sensacional. Não a do assassino, que não tardou, mas a uma descoberta de outro interesse, profundamente humana. O vendedor de hortaliça tinha sucumbido, ao que parece, sob a pressão fortíssima de um penico em terracota que lhe atirou à cabeça, da janela do seu pardieiro, Radwan Aly, o homem mais pobre do mundo. A profunda humanidade do acontecimento residia no seguinte: o penico com que Radwan Aly tinha atingido o vendedor era o único bem, o único móvel da sua casa, e não hesitou em sacrificá-lo para salvaguardar o sono todo da rua. Perante um tal sentido de sacrifício, até os próprios polícias ficaram confundidos.»
11 de março de 2011
10 de março de 2011
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