3 de maio de 2011

Papiro do dia (64)

«Hemingway não gostava de Oak Park. “Os relvados eram desafogados e os espíritos atrofiados”, supõe-se que teria afirmado um dia. Numa carta de 1952, a um universitário que pesquisava os seus anos de aprendizagem, escreveu: “Risquei Oak Park do mapa e deixei de fazer dele um alvo de críticas. Como deve calcular, não faz sentido bombardearmos a nossa terra natal, não é verdade? Mesmo que ela tenha deixado de ser a nossa terra natal no dia em que conseguimos deixá-la? Creio que uma pessoa não deve rentabilizar o suicídio do pai, nem a mãe que o levou a isso…”. Esses subúrbios chiques não têm a menor importância na sua obra – a não ser, talvez, pela negativa, a sua obra e ainda mais o seu personagem (a sua rábula) de “duro” eram uma negação do conceito oak-parquiano de uma história “dotada de todas as comodidades domésticas”. Nada impede de imaginar que o jovem Ernest encontrou pela primeira vez os animais de As Verdes Colinas…, de Francis Macomber e de As Neves do Kilimanjaro, na casa do pai de Tarzan, quando ganhava a mesada a entregar de porta em porta o Oak Leaves, uma semanário local furiosamente bem-pensante: mas isto não passa de pura especulação de romancista. Também não parece que tenha sido particularmente sensível à arquitectura de Frank Lloyd Wright, nem à dos seus antecessores da “escola de Chicago”, nomeadamente Louis Sullivan, o criador dos primeiros arranha-céus. No entanto, a invenção de um estilo moderno, depurado, despojado das referências europeias, correspondentes às realidades de um país novo e imenso, não deixava de ter as suas relações com o que ele mesmo tentava fazer na literatura. Quanto a Wright, que vivia e trabalhava a uma centena de metros da segunda casa dos Hemingway, no N.º 600 de North Kenilworth, e que construiu uma villa do outro lado da rua, é inevitável que os seus caminhos se tenham cruzado muitas vezes, mas a única vez que Hemingway, entretanto tornado escritor célebre, evoca aquele que era apesar de tudo um velho mestre (e um genial comediante), não o faz de maneira particularmente iluminada nem generosa: nos princípios dos anos cinquenta encomendaram ao arquitecto um pequeno palazzo no Grand Canal, mas um burburinho de protestos tradicionalistas impediu este “sacrilégio”, e entre eles o de Hemingway, que declarou que preferia ver Veneza arder; como emitiu esta opinião a partir de África, onde caçava, Wright retorquiu, com piada, que não se sentia na obrigação de comentar “aquilo que não passava de uma voz vinda da selva”. Como se não bastasse, enviou a Ernest o homem-macaco de Rice Burroughs.»
[Olivier Rolin, Paisagens Originais; trad. Jorge Fallorca, colecção Pequenos Prazeres / ASA, Outubro 2000;

2 comentários:

Primavera disse...

...já eu não gosto de Hemingway.
Mas gosto deste post! :)

fallorca disse...

Haja bom senso :P