31 de agosto de 2011
Às vezes, lá calha...
«Podemos tratar dos dói-dóis, mas não há cura para o facto de termos nascido; há que tirar o máximo partido dessa constatação, talvez até a possibilidade de se ser feliz.»
(Michel Crépu)
Nem sempre a lápis (205)
Papiro do dia (121)
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[George Steiner, O Silêncio dos Livros (seguido de Esse vício ainda impune, de Michel Crépu); trad. Margarida Sérvulo Correia, Gradiva, Junho 2007;
30 de agosto de 2011
29 de agosto de 2011
Às vezes, lá calha...
«A oralidade exige a verdade, a honestidade necessária à autocorrecção, e a democracia enquanto partilha comum. O texto escrito, o livro, tornará tudo isto caduco. O recurso à escrita debilita o poder da memória.»
(George Steiner)
Nem sempre a lápis (204)
Quando o tempo permite que retome o casaco com um livro no bolso, levo-os até à esplanada: Benjamin, Steiner, Bloom. A Angústia da Influência tornou-se presente ao arrumar O Silêncio dos Livros. Não vou muito em histórias e ainda menos em contos, se não forem bonitos e merecedores de atenção oral. Dispenso-a a ouvir Rum, contado por Blaise Cendrars. Acordei com vontade de conduzir até Mortágua, para ver a última morada no curso do rio. Limpei o ambiente de trabalho e fechei o blogue, decidido a ir à consulta. Mas pareceu-me mais saudável retirar um livro do bolso; o medo é uma doença mortal.
Papiro do dia (120)
Porém, há duas matérias de reflexão que vêm complicar ainda mais esta análise um tanto sombria. Em primeiro lugar, a relação entre censura e criatividade pode revelar-se estranhamente produtiva. O milagre literário do período isabelino ou o da França de Luís XIV, como a história gloriosa da poesia e da ficção russas de Púchkin a Pasternak e a Brodsky parecem articular-se, numa dialéctica complexa, com as pressões que na altura se faziam sentir e com a ameaça da censura. O que quer que faça com que uma grande literatura seja subversiva, que diga “não” à barbárie, à estupidez, àquela ética capitalista, degradada, do consumo massificado que desvaloriza o nosso trabalho e as nossas vidas, essa qualquer coisa brotou sempre, como reacção, do território da censura e da opressão. “Esmaguem-nos”, dizia Joyce à censura católica, “que nós somos como as azeitonas.” Ou, como sussurrava Borges: “A censura é a mãe da metáfora.” Quando o aparelho de repressão cede aos valores veiculados pelos mass media ou ao matraquear da publicidade, como acontece hoje em dia na Europa ocidental, assistimos ao triunfo da mediocridade.»
[George Steiner, O Silêncio dos Livros (seguido de Esse vício ainda impune, de Michel Crépu); trad. Margarida Sérvulo Correia, Gradiva, Junho 2007]
27 de agosto de 2011
Às vezes, lá calha...
«Os poetas enquanto poetas não podem aceitar substituições e lutam até ao fim para ter a sua primeira oportunidade a sós.»
(Harold Bloom)
Nem sempre a lápis (203)
Tomei o chá do crepúsculo a matutar numa afirmação de George Steiner lida em O Silêncio dos Livros. O original é de Janeiro de 2005, leio na edição portuguesa só dois anos mais velha. Em traços gerais, decorridos quatro anos sobre a primeira leitura, surge a divergência quanto à conclusão de um estudo: «uma considerável percentagem de adolescentes é incapaz de ler sem música de fundo»; a prótese electrónica. Quando ainda havia cafés – precisamente os referidos por Steiner em Uma Ideia da Europa –, a maior parte deles oferecia o jornal da casa; hábito que em alguns dos estabelecimentos que os substituíram subsiste, deturpado pela imprensa desportiva e de nem por casa se trazer. Os cafés possuíam um barulho de fundo, rádio e bilhares incluídos, propício ao silêncio da leitura e da intimidade da escrita. Como o movimento das esplanadas, estáticas, e a ilusão veiculada pelas carruagens de comboio, em andamento. Escrevo, anoto, por vezes leio, mas perdi a necessidade de lugares públicos, à medida que conquistava e moldava ao silêncio criado pela leitura; a casa.
[tásse]
[tásse]
Papiro do dia (119)
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Vinham lá representados todos os tipos de carros e carruagens e num apêndice também o carro-barco – o carrus navalis, donde muitos pensam que deriva a controversa palavra “carnaval”. Esta origem parece ser mais aceitável do que a etimologia monacal de trazer por casa que encontra na palavra uma alusão à quaresma e lê aí carne vale! Olá, carne. Mais tarde, quando se aprofundaram mais as coisas, recordou-se o antigo costume de festejar com um alegre cortejo a devolução dos barcos à água, a seguir às intempéries do Inverno, e foi então que se pensou nos carros-barcos latinos.»
[Walter Benjamin, Historias e Contos; trad. Telma Costa, Teorema, 1992]
25 de agosto de 2011
23 de agosto de 2011
19 de agosto de 2011
Nem sempre a lápis (202)
É tão breve a alegria e a liberdade do Verão. Assalta-nos entre Abril e Maio; entregamo-nos até Outubro ridicularizar a roupa e a atitude. Passo os olhos pelas bancas com cabeleiras de echarpes, T-shirts irónicas, túnicas e bombachas à Sudoeste, a oferta trepidante de artesanato de couro e de pedra e de prata martelada, sem as sandálias de Asilah. Doença prolongada é metáfora para abreviar a dor de uma vida desnecessariamente longa.
Papiro do dia (118)
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Pouco sabemos acerca desses primeiros passos. Na China, textos de natureza ritual ou didáctica remontam com certeza ao segundo milénio anterior à nossa era. Quer os escritos administrativos e comerciais produzidos na Suméria, quer os proto-alfabetos e alfabetos nascidos no Mediterrâneo oriental são testemunhos de uma evolução complexa, cuja cronologia rigorosa ainda está por determinar. Na nossa tradição ocidental, os primeiros “livros” foram tabuinhas de leis, registos comerciais, prescrições médicas, ou previsões astronómicas. As crónicas historiográficas, intimamente associadas a um tipo de arquitectura triunfalista e a comemorações de vingança, precederam, com toda a certeza, tudo aquilo a que chamamos “literatura”; ou seja, a epopeia de Gilgamesh, já que os mais antigos fragmentos datados da Bíblia dos Hebreus são tardios, muito mais próximos do Ulisses de James Joyce do que das suas próprias origens, que se relacionam com o canto arcaico e a narrativa oral.
A escrita constitui um arquipélago na imensidade oceânica da oralidade humana. A escrita – e não vale a pena determo-nos nos diferentes formatos que o livro foi assumindo – configura um caso à parte, uma técnica específica entre um todo semiótico maioritariamente oral. Milhares de anos antes do processo de desenvolvimento das fórmulas escritas já se contavam histórias, já se transmitiam por via oral ensinamentos de carácter religioso e mágico, já se compunham e se transmitiam fórmulas encantatórias de amor, ou então anátemas. Chegou até nós, alheia a toda e qualquer forma de alfabetização, uma multidão de sonoridades vindas de comunidades étnicas primitivas, de mitologias elaboradas, de saberes tradicionais relativos à natureza. Não existe neste planeta um único ser humano que não mantenha com a música um qualquer tipo de relação. A música, sob a forma do canto ou da execução instrumental, parece ser de facto universal. É a linguagem fundamental para comunicar sentimentos e significações. A maior parte das pessoas não lê livros. Porém, canta e dança.»
[George Steiner, O Silêncio dos Livros (seguido de Esse vício ainda impune, de Michel Crépu; trad. Margarida Sérvulo Correia, Gradiva, Junho 2007]
17 de agosto de 2011
Nem sempre a lápis (201)
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Papiro do dia (117)
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Minos ainda não sabe que a conspiração, para a qual o magnífico labirinto foi criado, é uma forma de agradecimento dos partisans. Que para os fazer sair do seu esconderijo, dos seus disfarces de doninha, tem de apelar à crueldade da qual deriva a sua força. Intui, graças a esta seita apócrifa de pensamentos, que a análise da ferocidade, o corpo moroso das suspeitas, o acabou por obrigar a erigir-se numa pura forma de domínio e de destruição física. Não basta ter dado um filho bastardo à causa (Astério, fruto do desejo de uma rainha que combinou a luxúria dos homens com a dos animais, não tem causas própria): o pensamento do exército tem de condescender à sua forma física. Entretanto, no centro do labirinto e através da espessura dos dias e dos túneis, em cada um dos seus meandros, os muros rezam: Quando o Estado se vir obrigado a erigir-se numa pura forma de domínio e de destruição física, as condições para a vitória da revolução estarão reunidas. Os muros, mas mais ninguém reza, estão todos mortos.»
[Pola Oloixarac, As Teorias Selvagens; trad. Margarida Amaro Acosta, Quetzal, 2011;
15 de agosto de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
«Tentamos dar o máximo de visibilidade aos catálogos das pequenas editoras, a edições de autor e a textos esquecidos. Privilegiamos, sem nenhum pudor de o expressar, as editoras e chancelas de qualidade. Somos particularmente exigentes na selecção dos livros da secção infantil e juvenil, tanto em termos da qualidade gráfica como pedagógica. Afinal de contas, é quase sempre nestas faixas etárias que se ganha o apetite, ou não, pela leitura.»
Às vezes, lá calha...
«Em certas épocas de crise, qualquer anão míope
é substituível por um clérigo leitor de Céline.»
Nem sempre a lápis (200)
A loucura é um cão rafeiro. Se fareja medo, aproxima-se; ataca. Às vezes, paro e encaro-o de frente, como se desse uns passos em toda a extensão do passado. E então a loucura foge, aninha-se na memória com o rabo entre as pernas.
[rafeiro]
[rafeiro]
Papiro do dia (116)
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Que é, precisamente, o que eu andava a fazer e pretendo fazer ainda mais.»
[Pola Oloixarac, As Teorias Selvagens; trad. Margarida Amaro Acosta, Quetzal, 2011]
14 de agosto de 2011
13 de agosto de 2011
Às vezes, lá calha...
«No meu pied-à-terre cultivei uma expansiva autoridade. Pilhas de livros e de papéis convivem lado a lado com o meu computador e outras biologias dependentes da electricidade.»
Nem sempre a lápis (199)
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A minha mãe teve o cuidado de avisar muito cedo, quando me fechava no sótão de castigo, por exemplo. «O mundo é violento», dizia, naquele ancestral tom fallorquiano que não contemplava dúvidas nem certezas. Durante umas insuportáveis férias na quinta de Baratã, nas Mercês, quando descobri uma escrivaninha nas águas-furtadas, com vista para o pomar e o pinhal, todo entretido a dar cabo de uma rotring, devem ter dito qualquer coisa que não me soou bem e nunca mais esqueci: «Não se lhe pode dizer nada; é um vidrinho». Ora, eu nessa altura ainda não usava óculos e, por acaso, até tenho pena de não poder perguntar a esse meu segundo-primo, ao senhor engenheiro sem filhos e a ressacar um espectacular par de cornos, soube mais tarde, se ele não estaria a chamar-me paneleiro quando eu tinha seis ou sete anos.
Não posso, o homem já não atende.
Entretanto, «aprendera através das minhas leituras que as pessoas quando estão aborrecidas podem fazer coisas horríveis. Na verdade, fazem-nas para se sentirem infelizes e não aborrecidas» (Sam Savage).
Papiro do dia (115)
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[Pola Oloixarac, As Teorias Selvagens; trad. Margarida Amaro Acosta, Quetzal, 2011;
12 de agosto de 2011
11 de agosto de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
«Enquanto tenho de estar e presenciar, incomoda-me a passividade daquela massa que, espichada ao sol, involuntariamente provoca a imaginação de horrendas cópulas, hábitos vis, atitudes indecentes, satisfações alvares, peidos e arrotos.»
Papiro do dia (114)
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No blogue dele tinha uma lista atualizada de recursos para partilhar software pirata e uma interessante coleção de pornografia macabra. Não porque os seus interesses acalentassem com idêntica fruição a guerrilha informática ou o abuso sistemático de mulheres grávidas, mas porque a sua mente contaminada de obsessões próprias de uma autoestima incorrigível compreendera que o regime de acesso à empatia contemporânea se acha vinculado ao uso inteligente, glamoroso, da crueldade.
Nos anos 70, pelo contrário, não havia como ser pioroso. Podias bradar aos quatro ventos que o teu objectivo na vida era ser poeta maldito, que ninguém se ria na tua cara. Agora é diferente. O sentido estético da nossa faixa etária evoluiu.»
10 de agosto de 2011
9 de agosto de 2011
Nem sempre a lápis (197)
Creio que continuo à espera de encontrar o djin, todo vestido de branco e a acariciar um ouriço-cacheiro na palma da mão, com que me cruzei a primeira vez que saí do ferry, encaminhando-me ao longo da avenida do porto de Tânger com a mochila às costas. Fitou-me nos olhos à medida que me aproximava e, quando nos cruzámos, escangalhou-se a rir.
Como continuo a vê-lo rir-se, passei a apanhar um táxi e a ficar no Hotel Rembrandt; talvez apoquentado com o que não me disse e ainda não sei se quero ou já sei saber.
Papiro do dia (113)
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Chegado à clareira, pousou os varais da carroça e contornou os vestígios de uma fogueira do seio da qual assomava uma esguia haste de fumo, semelhante ao pistilo de uma flor queimada, com o fino nariz franzido e olhos cautelosos. Os contornos de homens que ali tinham dormido recortavam-se na erva calcada e empeçonhada. Ele pôs o menino no chão e apanhou lenha e tornou a atear o lume. As trevas tombaram e os morcegos vieram caçar no aceiro, voando para trás e para diante como pequenas almas sem voz acima da silhueta ali cabisbaixa, de ar soturno, apoiada nas canelas magras. Depois foram-se embora. Uma raposa parou de regougar. O bufarinheiro, envolto na sua manta roída das traças, cabeceava. O menino dormia.
Os três homens, ao surgirem, quase pareceram ter assomado da terra. O bufarinheiro não foi capaz de explicar aquela aparição. Reuniram-se em volta do fogo e olharam-no de alto. Um deles trazia uma espingarda e sorriu. Viva, saudou o bufarinheiro.»
[Cormac McCarthy, Nas Trevas Exteriores; trad. Paulo Faria, Relógio D’Água, Junho 2011;
quinquilharia]
quinquilharia]
8 de agosto de 2011
7 de agosto de 2011
Às vezes, lá calha...
«Gosto de saber o nome dum homem quando o tomo ao meu serviço. Gosto de saber isso, antes de mais nada. O resto consigo descobrir sozinho.»
[via Net]
Nem sempre a lápis (196)
À medida que o tempo se aproxima, algo me leva a sair de casa para descer na colina das Amoreiras e seguir pela cumeeira do Príncipe Real; a pé. Teve dois residentes, que eu saiba: um banco de jardim e Agostinho da Silva, além do passeante John Berger. Eu fui sempre uma sombra, igual à que perdi em Tânger.
Papiro do dia (112)
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Caminhou para oeste pela estrada enquanto o céu se ia tornando mais pálido e o mundo das formas a despertar crescia gradualmente à sua volta. Precipitando-se assim, com o nascer do Sol nas suas costas, tinha a aparência de uma refugiada daquele acontecimento, transtornada pelo alvorecer. Ainda não se tinha afastara muito quando ouviu um cavalo na estrada atrás de si e fugiu para o seio do bosque, com o coração nas mãos. O animal irrompeu do sol num galope vagaroso, uma silhueta torturada de contornos liquefeitos. Ela agachou-se nos arbustos e observou-o, um enorme cavalo a emergir, cauterizado e ileso, do olho do Sol, para depois passar como uma caravela naufragada, de costelas descarnadas e negro e louco, com a sela esfiampada e os estribos a baloiçar e os cascos a ressoar suavemente na poeira e assim passou, enorme e esquelético e esbraseado, e o som do seu passo dissipou-se estrada fora até só restar o eco distante de aplausos num salão para sempre vazio.»
[Cormac McCarthy, Nas Trevas Exteriores; trad. Paulo Faria, Relógio D’Água, Junho 2011;
olho do Sol]
olho do Sol]
6 de agosto de 2011
5 de agosto de 2011
Às vezes, lá calha...
«Qualquer agrupamento secreto, quer seja doutrinário quer voltado para a acção, uma seita ou uma conspiração – a fronteira entre estes dois tipos de agrupamento é, aliás bastante difícil de traçar, sendo o agrupamento de acção, ou nisso se tornando quase sempre, um agrupamento doutrinário –, é um agrupamento com um segredo, ou segredos.»
«É bom trabalhar nas Obras» (96)
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Todas as noites de insónia e de fúria contra o piano para parir "alegria", conduziram apenas a sorrisos irónicos dos homens que o tinham contratado.
Se o super-inimigo ministro do Interior conseguiu que lhe partissem a clavícula, os seus próprios clientes tinham-lhe partido a alma.
Sentiu um soluço no estômago. Os olhos inchados. A morrinha era o cão fiel acompanhante dos mendigos. Condoeu-se de si. Abraçou-se à sua auto-compaixão.
Este "Não", que seria o seu reencontro com a criação, começava a ser uma carta de despedida. O pai tinha-lhe ensinado a não depositar demasiadas esperanças em nada, a não fazer depender a vida actual do eventual resultado de alguma iniciativa. "Pensa sempre que vais perder." Uma filosofia completamente alheia à praticada pela sua mulher Magdalena e as suas amigas: conselhos para beneficiar a digestão, auto-ajuda, budismo na vida quotidiana, zen para aqui, zen para ali. Se tivermos maus pensamentos, convocamos a sua realização. Se tivermos pensamentos positivos, a felicidade vem ter connosco a abanar o rabinho. Tinha acreditado no fucking "Não", como no anjo-da-guarda quando era criança. Delegou nele a sua protecção, os seus anseios. Tinha ido contra a sensatez e a certeza de que, desta vez, David não ia vencer Golias. Que a poesia não tinha sequer a força do pulmão de um canário para incomodar o papão.
O pensar poético de Magdalena era puro whisful thinking. Tudo o que a vaga da ditadura tinha lançado sobre os roqueiros e as praias, não passava de detritos de naufrágios: Raúl Alarcón e o seu partner Strauss, Olwyn, convencido pela sua boa-fé de que poderia vir a ser o rei da liberdade, e o seu sonho – aquele arco-íris caído do céu – era a premonição de um cataclismo e não um hino de vitória.
Pôs a chave na ignição do carro e sentiu que o gás do tubo de escape entrava no habitáculo por algum dos vários orifícios da sua antiga carroçaria. O cheiro a Santiago estava ali, um animalejo indefinido a duplicar-se na morrinha, animado pelos faróis dos carros que avançavam com dificuldade à hora de ponta, a morder os pneus recauchutados até à ignomínia.
Não tardaria a Primavera, mas não a dos poetas. A maldita Primavera da canção na rádio.»
Papiro do dia (111)
«Os dois podengos ergueram-se a uivar do alpendre, com cerdas eriçadas de javali e os olhos revirados, e desceram ao encontro das trevas exteriores. O velho pegou na caçadeira e espreitou através da vidraça deformada da sua janelinha. Três homens subiram os degraus e um bateu à porta. E quem ‘tá aí? Um ministro do Senhor. O ténue clarão da cadeia a derramar-se ao longo da porta, o rosto sorridente, a barba negra, o fato negro muito justo e coberto de poeira. Num bruxulear prolongado e vivo, a luz percorreu a lâmina da faca no momento em que esta se lhe enterrou no ventre com um sopro abafado de gás. Sentiu subitamente um grande frio a invadi-lo. Os cães tinham desaparecido e não havia réstia de som em nenhum recanto da noite. Ministro?, disse ele. Ministro? O assassino sorriu-lhe com dentes cintilantes, os rostos dos outros dois a espreitarem-lhe por cima dos ombros numa perversidade consubstancial, uma trindade lúgubre que o observava sem palavras, afável. Ele baixou o rosto para o punho do homem, fechado em concha contra o seu próprio estômago. O punho subiu numa erupção de vísceras retalhadas até a lâmina se prender na junção do esterno, e ele ficou ali de pé, esventrado. Estendeu o braço e apoiou a mão na ombreira da porta. Deu um passo atrás, como que para lhes dar passagem.»
[Cormac McCarthy, Nas Trevas Exteriores; trad. Paulo Faria, Relógio D’Água, Junho 2011;
com licença]
com licença]
4 de agosto de 2011
3 de agosto de 2011
Às vezes, lá calha...
«Não deixes entrar nenhum estranho enquanto eu ‘tiver fora.
Ela soltou um fundo suspiro. Não há uma só alma neste mundo que não seja um estranho para mim, disse.»
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