até Jajouka
(2006)
3. (...) Não escrevo e não me parece que venha a escrever num moleskine. Sinto-me tão saturado com a necessidade de se sublinhar que se escreveu, o que se lê, no que não passa de um simples bloco – com história, eu sei, com demasiada história – que, além da censura do preço, também a bravata exibicionista acabou por me inibir o (possível) prazer de gatafunhar num moleskine. (...) Gosto do texto limpo, de perceber o que escrevi quando me leio. (...) Mas, se os processadores de texto resolveram o dilema de decifrar a minha caligrafia (...) assim que deixei de malhar na velha Hermes 2000 passei a desconfiar das mudanças que George Steiner textualmente me confirma: «A computação, a teoria da informação e o acesso à mesma, a ubiquidade da Internet e da rede global envolvem muito mais do que uma revolução tecnológica. Implicam transformações de consciência, de hábitos de percepção e de expressão, de sensibilidade recíproca, que mal começámos a avaliar. […] O software tornar-se-á, por assim dizer, interiorizado, e a consciência poderá ter de desenvolver uma segunda pele.»
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(...) Esta noite dormi com a janela aberta num quarto cheio de brinquedos. Num quarto semelhante àquele onde escrevi um dos meus mais difíceis regressos de Tânger, no Natal de 1974 [cf. Fruta da Época, frenesi 2001], espiado pela minha sobrinha, que não entendia o egoísmo do meu ensimesmamento paranóico e a minha indiferença aos seus desafios para brincar. (...) Entretanto, apanho-me a considerar se esta estadia em Mortágua – que se espreguiça há quase oito dias, a pretexto de coisas tão insignificantes e irrecusáveis como uma matança de porco numa aldeia da serra; uma ida a Salgueirais, à terra do meu pai, para lhe alimentar a saudade de ir buscar queijo e encher garrafões de água, a uma centena de quilómetros –, se esta demora não será uma espécie de teste. Decorridos três anos sem sair do Monte Alto, inconscientemente não estarei a aproveitar a oportunidade da vinda a Mortágua, com o argumento de treinar a ida até Jajouka? (...) passei uma manhã em Salgueirais, a fotografar cães vadios e escadas para o passado, sugeridas por Sebald.
«Partilhávamos tacitamente a ideia de que, em parte, aprendemos ou procuramos aprender a viver nos livros. A aprendizagem começa quando se olha para o primeiro abecedário ilustrado e só acaba no dia em que morremos.» (...) na noite anterior, antes de adormecer, John Berger já tinha sugerido: «Se tiveres de chorar, e às vezes não se pode evitar, se tiveres de chorar, chora depois, nunca durante. Nunca te esqueças. A menos que estejas com quem gosta de ti, só com quem gosta de ti e, nesse caso, já és um felizardo, porque nunca há muitas pessoas que gostem de nós. Se estás com elas, podes chorar. Se não, chora depois.»
4 comentários:
Uma das raras vezes em que a minha aversão a textos longos na blogosfera não se manifestou :)
Interpreto o comentário como homenagem aos textos que não leu.
Tens favas?
:)
Deixa, que não perdes pela demora ;)
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