25 de janeiro de 2013

Nem sempre a lápis (343)

até Jajouka
(2006)
 
3(...) Não escrevo e não me parece que venha a escrever num moleskine. Sinto-me tão saturado com a necessidade de se sublinhar que se escreveu, o que se lê, no que não passa de um simples bloco – com história, eu sei, com demasiada história – que, além da censura do preço, também a bravata exibicionista acabou por me inibir o (possível) prazer de gatafunhar num moleskine. (...) Gosto do texto limpo, de perceber o que escrevi quando me leio. (...) Mas, se os processadores de texto resolveram o dilema de decifrar a minha caligrafia (...) assim que deixei de malhar na velha Hermes 2000 passei a desconfiar das mudanças que George Steiner textualmente me confirma: «A computação, a teoria da informação e o acesso à mesma, a ubiquidade da Internet e da rede global envolvem muito mais do que uma revolução tecnológica. Implicam transformações de consciência, de hábitos de percepção e de expressão, de sensibilidade recíproca, que mal começámos a avaliar. […] O software tornar-se-á, por assim dizer, interiorizado, e a consciência poderá ter de desenvolver uma segunda pele.»
(...) Devo ainda dizer que não escrevo numa pensão perdida no Rif, num quarto com açoteia para estender uma esteira e vista para a praça de Asilah. (...) Na realidade, comecei a escrever há dois ou três dias no Monte Alto, e agora encontro-me sentado à velha mesa de pedra do quintal da casa onde nasci, de costas para o barracão, onde se cozia o pão e o meu pai organizava monumentais patuscadas com os companheiros de caça. (...) foi aqui, na chamada casa do forno, que comecei a escrever e a pintar. Era o meu refúgio de adolescente – a minha Patagónia, de que desconhecia a existência quanto mais a pretensão metafórica – (...) Foi também aqui, em finais de Outubro de 1969, que recebemos o Zeca Afonso chegado ao lusco-fusco de um dia de feira, como um proscrito. Recordo que ouvimos, e se gravou num doméstico gravador de bobine, a maior parte dos temas que viriam a compor os Cantares de Andarilho, enquanto os frangos e ovos caídos dos aviários da zona eram cozinhados e regados com vinho novo na lareira, onde mal nos conseguíamos movimentar. No final, discretamente entregámos-lhe um envelope com a colecta feita entre as dezenas de convidados e amigos dos convidados que foram aparecendo. Mas o melhor viria no dia seguinte, quando soubemos que a GNR tinha passado o serão muito sossegadinha encostada ao muro do quintal, também a ouvir o Zeca a cantar Os Vampiros, acompanhado à viola pelo Rui Pato.
(...) Esta noite dormi com a janela aberta num quarto cheio de brinquedos. Num quarto semelhante àquele onde escrevi um dos meus mais difíceis regressos de Tânger, no Natal de 1974 [cf. Fruta da Época, frenesi 2001], espiado pela minha sobrinha, que não entendia o egoísmo do meu ensimesmamento paranóico e a minha indiferença aos seus desafios para brincar. (...) Entretanto, apanho-me a considerar se esta estadia em Mortágua – que se espreguiça há quase oito dias, a pretexto de coisas tão insignificantes e irrecusáveis como uma matança de porco numa aldeia da serra; uma ida a Salgueirais, à terra do meu pai, para lhe alimentar a saudade de ir buscar queijo e encher garrafões de água, a uma centena de quilómetros –, se esta demora não será uma espécie de teste. Decorridos três anos sem sair do Monte Alto, inconscientemente não estarei a aproveitar a oportunidade da vinda a Mortágua, com o argumento de treinar a ida até Jajouka? (...) passei uma manhã em Salgueirais, a fotografar cães vadios e escadas para o passado, sugeridas por Sebald.
«Partilhávamos tacitamente a ideia de que, em parte, aprendemos ou procuramos aprender a viver nos livros. A aprendizagem começa quando se olha para o primeiro abecedário ilustrado e só acaba no dia em que morremos.» (...) na noite anterior, antes de adormecer, John Berger já tinha sugerido: «Se tiveres de chorar, e às vezes não se pode evitar, se tiveres de chorar, chora depois, nunca durante. Nunca te esqueças. A menos que estejas com quem gosta de ti, só com quem gosta de ti e, nesse caso, já és um felizardo, porque nunca há muitas pessoas que gostem de nós. Se estás com elas, podes chorar. Se não, chora depois.»

4 comentários:

alexandra g. disse...

Uma das raras vezes em que a minha aversão a textos longos na blogosfera não se manifestou :)

fallorca disse...

Interpreto o comentário como homenagem aos textos que não leu.

Ana Cristina Leonardo disse...

Tens favas?
:)

fallorca disse...

Deixa, que não perdes pela demora ;)