1 de outubro de 2010

À mão de ler (91)

«Muitos crêem que o Finnegans é um livro de cerimónias fúnebres e estudam-no como o texto que funda a religião na ilha. O Finnegans é lido nas igrejas como uma Bíblia e é usado para pregar em todas as línguas pelos pastores presbiteranos e pelos sacerdotes católicos. No Génesis fala-se de uma maldição de Deus que provocou a Queda e transformou a linguagem na abrupta paisagem que hoje é. Bêbado, Tim Finnegan caiu na cave por uma escada, que imediatamente passou de ladder a latter e de latter saiu litter e da desordem a letter, a mensagem divina. A carta é encontrada numa lixeira debicada por uma galinha. Está assinada com uma mancha de chá e a prolongada permanência na lixeira danificou o texto. Tem buracos e borrões e é tão difícil de interpretar, que os eruditos e os sacerdotes conjecturam em vão sobre o verdadeiro sentido da Palavra de Deus. A carta parece escrita em todas as línguas e muda continuamente sob os olhos dos homens. É esse o Evangelho e a lixeira donde vem o mundo.»
[Ricardo Piglia, A Cidade Ausente; trad. J. F., Teorema, Maio 2010;

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