29 de outubro de 2010

Nem sempre a lápis (99)

«Os gaúchos não comiam churrasco… – disse, de repente, Croce. – Pois se eles não tinham dentes… Imagina-os, sempre a cavalo, a fumar tabaco preto, a comer bolachas, a seguir ficavam sem dentes e já não conseguiam mastigar a carne… Só comiam língua de vaca… e, às vezes, nem isso.» Graças à palmada nas costas que Piglia me deu para me animar, a meio da tradução de Alvo Nocturno, desta vez pondero, seriamente, ir até ao Sul da província de Buenos Aires; devolver memórias que me emprestaram na infância, sem o meu avô paterno saber. Não irei motivado nem pela Capital, nem com a mira apontada para a Patagónia; é possível que tenha lido demais sobre a cidade e a extensão literária desse destino. A ideia de apanhar um comboio, um autocarro, e apear-me na primeira terra sugerida pelo mapa, que não conheço, tornou-se tão recorrente como ir à procura de Vila-Matas, no bairro tornado familiar pelos livros que lhe traduzi e onde já não vive. Mas, se a viagem de avião deve ser um suplício suspenso sobre a incerteza da mudança de hemisfério, não me parece que a vida em Barcelona ainda permita pausadas deambulações por um bairro imaginado; assistir à primeira sessão num cinema que não existe; sentar-me à janela de um café com os olhos postos na esquina de Carrer Verdi com Travessera de Dalt, entregue ao mal da espera. Chegado o momento oportuno, suponho que acabarei por me retirar para Essaouira - a antiga Mogador, em África - pela estrada litoral a partir de Tânger. Fora de época e a conduzir com o ombro de fora, sem relógio; tenho um mês para escrever, e é tudo.

4 comentários:

Anónimo disse...

"devolver memórias que me emprestaram na infância, sem o meu avô paterno saber."


por isto, o post melhor de ler na última semana.


maria

fallorca disse...

Não exagere...

maria disse...

Teria escolhido a medicina de Nem Sempre a Lápis 98, não fora o exagero tenaz da ilustração :)

fallorca disse...

Ahah :)