9 de outubro de 2010

Nem sempre a lápis (90)

Ontem, por volta das dez, a noite estava amena até para quem não tinha acabado de chegar de Carnaxide, mas não se via vivalma; além dos basbaques com o pescoço garrotado pelo plasma, serviço de esplanada esquecido na Casa Inglesa. Afastámo-nos da proximidade implantada de Manuel Teixeira Gomes e bebemos o café numa outra, paralela ao rio, ao lado de um insólito coreto ali instalado durante a minha ausência; cúpula de bilros. Olhando à esquerda, os pilares da ponte de ferro boiavam ao sabor dos holofotes; olhando à direita, via-se e ouvia-se a fauna lubrificada pelo bar das bombas de gasolina e seus derivados. Colchão ortopédico e regulável, um Aston-Martin, já não me lembrava como o raio do quarto é barulhento; fica dois andares ao nível da rua de trás e interpreta o solfejo do piso e a velocidade com virtuosismo, para um melómano que dorme nas nuvens de um sétimo andar suburbano. Sentado a esta mesa, da casa dos meus sogros algarvios no Porto, há nove anos passei aqui um mês e tal a traduzir Isís e Osíris (Plutarco); tinha descansado uma semana em Asilah, vindo dos confins do Sul de Marrocos. Apetrechado com as babuchas compradas em Marrakech, acabariam por entrar na capa dos Blues, saldei uns belos sapatos de vela, uns velórios, numa loja em Armação; Ocean Pacific, marca ausente em parte incerta fora do país, comunicou-me o comerciante, visivelmente entristecido com o calçado nos pés. Uma sexta-feira – como será dentro de poucas horas, para a maior parte das pessoas –, antes do almoço abri o e-mail à velocidade snail da época: Jorge Riechmann convidava-me a assistir a uma palestra e leitura com Antonio Gamoneda, numa associação com patine sindical, pareceu-me, encerrada (a palestra) com um repasto de peixe-galo grelhado, numa taberna pelas Puertas del Sol. Descartei-me do posfácio gastronómico com o argumento da directa Portimão / Madrid, para vaguear pelo Chicote, o Guijón, o Bellas Artes estava fechado, até aterrar num pronto-a-dormir da Gran Vía, nas imediações da Telefónica. Não me lembrei de Hemingway, nem de John Dos Passos, nem do Hotel Florida. De manhã, prospectei a Hiperión, entre outras, mas a memória não dá fé dos livros peneirados: José Ángel Valente? Menchu Gutiérrez? Tenho mais presente a esplanada, onde almocei o pequeno-almoço, antes do percurso inverso pelos países que tinha atravessado: dos pomares, do azeite, do queijo manchego; separação suicida ditada pela sentença, pelo tropeção geológico de Despeñaperros.
A cidade recebeu-me a dizer que o Clube Naval celebra 50 anos. Amanhã, vou até lá demolhar o olhar disposto a colher informação; espero que as parangonas não sejam decorativas, eleitorais. Por outro lado, tenciono fotografar a leitura de uma imagem adiada há tempo demais; o livro – fechado – que apresenta a Biblioteca Municipal, atirado para cima da relva. Anotado o alvo e nem uma semana decorrida desde que comecei, entrego-me a Piglia; foi a vez do último leitor voltar ao Algarve.

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