«A dureza das minhas circunstâncias empurrava-me para a máquina de escrever. Sentava-me à frente dela, esmagado de compaixão por Arturo Bandini. Por vezes uma ideia flutuava, inofensiva, pelo ar do quarto. Era como um pequeno pássaro branco. Não me desejava mal nenhum. Só me queria ajudar, o amável passarinho. Mas eu golpeava-o, martelava-o com as teclas e morria-me nas mãos.
Não me lembro do que fiz a seguir. Talvez tenha ido visitar o Benny Cohen, que vivia num quarto por cima do Grande Mercado. O Benny tinha uma perna de pau com uma portinhola, onde guardava cigarros de marijuana. Vendia-os a quinze cêntimos cada um. Vendia também jornais, o Examiner e o Times. No quarto de Benny havia pilhas de exemplares da The New Masses. É possível que dessa vez, como de costume, ele me tenha angustiado com a sua negra e terrível visão do mundo futuro. Talvez me tenha admoestado, agitando sob o meu nariz os dedos manchados, por eu ter traído as minhas origens proletárias. Talvez, como de costume, eu tenha saído de lá a ferver de indignação, descendo as escadas poeirentas até ao nevoeiro da rua, cheio de vontade de esganar um imperialista. Talvez sim ou talvez não; não me recordo.
Dirigi-me ao Bairro Mexicano com uma sensação de náusea sem sofrimento. Eis a Igreja da Nossa Senhora, muito antiga, o adobe das paredes enegrecido pelo tempo. Por razões sentimentais, entrei. Apenas por razões sentimentais. Não li Lenine, mas já o ouvi citado, a religião é o ópio do povo. A falar comigo próprio nos degraus da igreja: sim, o ópio do povo. Sou ateu: li O Anti-Cristo, que considero uma obra capital. Acredito na transmutação dos valores, meu caro senhor. A Igreja tem de ser eliminada, é o refúgio da burgessia, a classe dos burgessos e dos casca-grossa e dos charlatães de segunda.»
[John Fante, Pergunta Ao Pó; trad. Rui Pires Cabral, Ahab, Outubro 2009;
2 comentários:
Este excerto está repetido no papiro do dia (12) ;-)
Pois está, baralhei-me...
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