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Conhecia o apartamento de Bluma, a comida dietética que guardava no frigorífico, o cheiro dos seus lençóis, o perfume da sua roupa interior. Nós, dois subchefes do departamento, e um estudante que se tinha colado à lista, compartilhávamos a sua cama. E tal como os demais, eu estava a par da sua viagem a um congresso em Monterrey, onde deve ter mantido um daqueles romances fugazes com que Bluma se presenteava para conservar a sua vaidade, ameaçada pelo abandono da juventude, dos seus dois maridos e do sonho de percorrer de canoa o rio Macondo, uma obsessão que Cem Anos de Solidão lhe legara. Mas porque retornava o livro a Cambridge, dois anos depois? Onde estivera? E que deveria ler Bluma nos restos do cimento?
Tive nas mãos esses maravilhosos contos de fadas irlandeses, os Irish Fairy and Folk Tales, com prólogo de William Butler Yeats e as ilustrações originais de James Torrance, a Correspondance inédite du Marquis de Sade et de ses proches et de ses familiers, tive a oportunidade de segurar em incunábulos por breves minutos, de lhes abrir as páginas, de lhes sentir o peso, esse solitário privilégio, mas nenhum outro livro conseguiu perturbar-me tanto quanto aquele exemplar brochado cujas páginas, humedecidas e arqueadas, reclamavam só por si uma leitura.»
[Carlos María Domínguez, A Casa de Papel; trad. Henrique Tavares e Castro, ASA, (2.ª ed.) Maio 2010;
3 comentários:
imagem soberba, com excerto igualmente soberbo. há muito que um livro não me deixava tão submersa.
Lembras-te da «aventura» para o encontrar, depois de lido «Bibliotecas Cheias de Fantasmas» :)
verdade :)
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