«… arregaçarei os braços, reúno facas e cordas, amarro, duas a duas, suas tenras patas, imobilizando a rês assustada debaixo dos meus pés; minha mão esquerda se prenderá aos botões que despontam no lugar dos cornos, torcendo suavemente a cabeça para cima até descobrir a área pura do pescoço, e com a direita, grave, desfecho o golpe, abrindo-lhe a garganta, liberando balidos, liberando num jorro escuro e violento o sangue grosso; tomarei a ovelha ainda fremente nos meus braços, faço-a pendente de borco de uma verga, deixando ao chão a seiva substanciosa que corre dos tubos decepados; entrarei na sua pele um caniço resoluto que comporte, duro e resistente, um sopro forte, aplicando nele meus lábios e soprando como meu velho tio soprava flauta, enchendo-a de uma antiga canção desesperada, estufando seu tamanho como só a morte de três dias estufa os animais; e esfolada, e rasgado o seu ventre de cima até em baixo, haverá uma intimidade de mãos e vísceras, de sangues e virtudes, visgos e preceitos, de velas exasperadas carpindo óleos sacros e muitas outras águas, para que a Tua fome obscena seja também revitalizada; um milagre, um milagre, eu ainda suplicava em fogo quando senti assim de repente que uma mão anémica que eu apertava era um súbito coração de pássaro, pequeno e morno, um verbo vermelho e insano já se agitando na minha palma! cheio de tremuras, cegado de muros tão caiados, esmaguei a água dos meus olhos e disse sempre em febre Deus existe e em Teu nome imolarei um animal para nos provermos de carne assada, e decantaremos numerosos vinhos capitosos, e nos embriagaremos depois como dois meninos, e subiremos escarpas de pés descalços (que tropel de anjos, que acordes de cítaras, já ouço cascos repicando sinos!) e, de mãos dadas, iremos juntos incendiar o mundo!»
[Raduan Nassar, Lavoura Arcaica; Relógio D’Água, Outubro 1999;
3 comentários:
O livro, não li, mas o filme, já vi!
BELO. Muito belo! Todo ele, belo!
Mandaste um Tubo, parabólica :)
My One Thousand Movies!!!!
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