7 de setembro de 2010

À mão de ler (79)

«Instintivamente, voltei a pegar em papel e lápis, sentei-me sentei-me de modo totalmente mecânico e escrevi o ano 1848 em todos os cantos de página. Se ao menos um só pensamento fremente quisesse agora transportar-me e colocar-me as palavras na boca! Já me tinha acontecido antes; tinham-me realmente acontecido momentos desses, em que conseguia escrever sem esforço um longo parágrafo, que resultara abençoadamente bem.

Sentado num banco, escrevi "1848" vezes sem fim; escrevi o número na vertical, na horizontal, de todas as maneiras possíveis, esperando a aparição de alguma ideia aproveitável. Na minha cabeça rodopiava um enxame de pensamentos avulsos, a atmosfera do dia agonizante fazia-me sentir desalentado e melancólico. Chegara o Outono e já começara a envolver tudo na sua letargia. Moscas e outros bichinhos receberam o primeiro aviso, em cima das árvores e em baixo, no solo, ouviam-se os ruídos da luta pela vida, o rumor, o sussurro agitado do combate pela sobrevivência. Todos os seres espezinhados do mundo dos insectos se moviam uma derradeira vez, as suas cabeças amarelas emergiam do musgo, levantavam as patas, avançavam tacteando com as longas antenas e encolhiam-se de repente, rebolavam-se e viravam-se de papo para o ar. Todas as plantas receberam a sua marca, discretos cicios suaves dos primeiros frios. As palhas descoradas esticavam-se em direcção ao Sol e as folhas caídas revoluteavam pelo solo com um ruído áspero, como bichos-da-seda rastejando. Era o tempo de Outono, no meio do carnaval da morte.»
[Knut Hamsun, Fome; trad. Liliete Martins, Cavalo de Ferro, Outubro 2008;

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